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Alívios e alertas

Dom Lourenço Fleichman, OSB

Certos anos passam na rapidez vertiginosa e estranha que nos angustia. Outros teimam em não terminar. Dizem que 1968 foi um desses anos que não terminou. A Revolução mostrou sua face gélida e diabólica em diversas partes do mundo, numa tentativa desesperada de destruir de vez a Civilização Católica. Talvez tenha conseguido em parte, mas não devemos desesperar da misericórdia de Deus. Para Ele, nada é impossível.

Devemos rezar para que 2018 alcance rapidamente o seu termo e ceda o lugar para o que lhe há de seguir. No fundo, o que muda quando adentramos em 1º de janeiro? Será a noite da virada diferente de qualquer outra? Espera a Divina Providência a chegada do limiar da convenção humana para dar novas graças ou receber novas orações? Deus, que vive no presente eterno não se incomodaria com esses detalhes não fosse seu singular cuidado em agradar aos homens, esperando que assim estes se inclinem mais a agradar a Deus. Por isso podemos crer nas especiais graças de um novo ano, de um novo nascimento, de uma luz qualquer que brilhe nesse mundo dos homens.

A crise inicial

Ainda no 1º semestre, o ano de 2018 nos trouxe graves apreensões. Os caminhoneiros de todo o Brasil paralisaram nosso país de modo ilícito e irresponsável, sob o olhar conivente dos democratas de carteirinha que, por escrúpulos ou por malícia, não enviaram as tropas para livrar nossas estradas e nossa liberdade. O país ficou escravo de uma casta sedenta de privilégios.

Naquela ocasião reunimos um grupo de colaboradores da Permanência a fim de elaborar um texto explicativo da posição oficial da Permanência diante daquela situação de terríveis consequências para o Brasil. O editorial de hoje retoma partes daquele texto que ainda não tinha sido publicado.

Critérios de avaliação

O primeiro critério de avaliação dos princípios que regem a política dos povos é a própria Revelação, o que Deus revelou aos homens.

São Pedro, em sua Epístola, diz com todas as letras: “Servos, sede submissos a toda instituição humana, por amor de Deus”. Pesem as palavras do Apóstolo: há motivo sobrenatural – o amor de Deus – para critério de nossa atitude social e política. O texto continua: “... quer ao rei, como a soberano, quer aos governadores como enviados por ele para tomar vingança dos malfeitores e para louvar os bons; porque esta é a vontade de Deus, que fazendo o bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos; procedendo como homens livres, e não como tendo a liberdade por véu para encobrir a malícia, mas como servos de Deus”. 1

E o primeiro papa continua nesse tema: “Servos sede obedientes aos vossos senhores (empregados sede obedientes aos vossos patrões), com todo o temor, não só aos bons e moderados, mas também aos agressivos. Porque é uma graça o suportar alguém as contrariedades, sofrendo injustamente, pelo conhecimento do que deve a Deus”.

Dois motivos sobrenaturais são, pois, apresentados: obedecer por amor a Deus e obedecer para suportar com paciência a Cruz desta vida.

São Paulo não é menos enfático, na epístola aos Romanos:

“Não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação”. (...) “Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido; a taxa a quem é devida; a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida”. 2

Após verificar como a Revelação nos instrui, devemos procurar o pensamento da Igreja na Tradição, sobretudo no ensinamento dos papas ao longo da vida da Igreja, para discernir como aqueles princípios foram sendo aplicados com o passar dos séculos.

Ao mesmo tempo não podemos interpretar ao proveito de nossas opiniões o parecer doutrinário e moral consignado nos textos do Magistério. Esse sempre foi o erro dos modernistas, tal como aparece no pensamento do Card. Joseph Ratzinger, por exemplo, ao afirmar que os textos dos papas antigos serviam para a Igreja daquela época, mas com as circunstâncias atuais eles já não teriam valor.

Esse não é o pensamento da Igreja, que atribui aos textos do Magistério valor de verdade a ser seguida, variando apenas a gravidade do pecado no caso de se recusar essa verdade.

No caso da paralisação dos caminhoneiros, em maio de 2018, chegaram a dizer que as greves condenadas por Leão XIII na Rerum Novarum seriam de outra natureza das greves atuais, e que por isso o ensinamento de João Paulo II e do Novo Catecismo seriam corretos, quando dão às greves a legitimidade recusada pelos papas antigos. Porém, não há nada na história do século XIX que indique greves mais violentas do que as atuais. Esse argumento não é válido, e o que devemos concluir é que, assim como a doutrina da Igreja foi dissolvida com o liberalismo do Concilio Vaticano II, no que toca o ecumenismo ou a liberdade religiosa, assim também os princípios católicos, que sempre nortearam a ação política, desviaram-se para uma espécie de socialização que nasce com João XXIII e continua até os dias do Papa Francisco.

De fato, quando a Igreja ensina a doutrina da Verdade, ela o faz através de princípios que são sempre verdadeiros, e devemos ter uma devoção toda especial para com essa orientação, rechaçando as inovações modernistas.

“Porquanto não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais do que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si mesmos para sua perda. ‘Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si mesmos a condenação” (Rom 5, 2)Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade por meio da sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina”. 3

Ainda Leão XIII, condenando o comunismo por desprezar a autoridade divina e humana:

“Nada deixam intacto ou inteiro do que foi sabiamente estabelecido pelas leis divinas e humanas para a segurança e honra da vidaEnquanto censuram a obediência devida às autoridades às quais o Apóstolo nos ensina que toda a alma deve ser sujeita e que receberam por empréstimo de Deus o direito de mandar, eles pregam a igualdade absoluta de todos os homens no que diz respeito aos direitos e deveres”. 4

Alguém perguntaria quando se torna lícito fazer alguma manifestação contra os governantes ou contra os patrões? O mesmo papa responde em outra encíclica;

“A única razão que os homens têm para não obedecer é quando algo demandado por eles repugna abertamente ao direito natural ou ao direito divino; porquanto não podem ser mandadas e nem executadas todas aquelas coisas que violam a Lei natural ou a vontade de Deus. Se, pois, suceder que o homem se veja obrigado a fazer uma das duas coisas, ou seja, ou desprezar os mandamentos de Deus ou desprezar a ordem dos príncipes, ele deve obedecer a Jesus Cristo, que nos manda dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (Mt. 22, 21), e, a exemplo dos Apóstolos, responder vigorosamente; ‘Importa obedecer mais a Deus do que aos homens’ (Atos 5, 29)”. 5

Mas isso não é motivo para qualquer greve ou paralisação. Muitas vezes ao trabalhador é pedida a virtude da paciência e a visão do Bem Comum, mais do que seus interesses particulares ou corporativos.

“O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves. É preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e freqüente, porque estas greves causam danos não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas vezes em risco a tranqüilidade pública.

Na mesma encíclica o papa tinha dito um pouco antes: “importa à salvação comum e particular que a ordem e a paz reinem por toda a parte (...) É por isso que os operários, abandonando o trabalho ou suspendendo-o por greves, ameaçam a tranqüilidade pública”. 6

O texto da Rerum Novarum é tão atual que parece ter sido escrito para os dias de hoje. Eles são opostos em todos os pontos às concessões admitidas pelos papas mais recentes. Vejam que a Igreja, partindo de São Paulo, considera que os homens devem ter um espírito de obediência aos governantes, quaisquer que sejam, limitando essa obediência apenas aos casos em que estes nos obrigariam a atos contrários à Lei de Deus, ou seja, o Decálogo, ou à Lei Natural, inscrita nos corações de todos os homens, de qualquer tempo e de qualquer lugar.

A noção de Bem Comum

Logo o Brasil entrou em época de campanha eleitoral, a qual, por tensa e densa que foi, parece ter levado um tempo muito maior do que os poucos meses que de fato se passaram. Procuramos, então, adaptar aquele trabalho inicial, alargando seu leque de considerações para uma visão mais geral sobre a política católica, que servisse de critério para os eleitores interessados em porem em prática os princípios da filosofia política da Igreja na sua Tradição bi-milenar.

Agora que a escolha do novo chefe da nação ficou definida, podemos voltar a esse estudo com mais calma para lembrarmos dos princípios católicos que regem nossos atos morais na vida individual e na vida política.

Uma das noções mais difíceis de se compreender dentro do ambiente da democracia liberal moderna é a de Bem Comum. Os liberais interpretam o Bem Comum de dois modos equivocados: em primeiro lugar consideram equivocadamente o voto como sendo o sinal mais eficaz da vontade do povo, e a partir daí, entendem “Bem Comum” como sendo essa vontade expressa pelo voto, pela maioria, pelo número. Nada mais contrário à verdadeira noção de Bem Comum, a qual, como o termo mesmo já expressa, é necessariamente o Bem. Ora, quem fixa como meta o bem, em qualquer obra que realize, considera em primeiro lugar o fim a ser alcançado. Como o fim último do homem no seu ser ou em qualquer coisa que faça é Deus, a Beatitude, todas as obras humanas necessitam dessa meta, desse fim último alcançado que gera o repouso e a felicidade eterna.

Assim, o critério para sabermos se algo, ou um ato, faz parte do Bem, é provar que ele obedece à Lei eterna de Deus, obedece aos Mandamentos de Deus e à Igreja Católica, a qual recebeu, e apenas ela recebeu, autoridade divina sobre a orientação dos homens e das nações. Esse lado prático do Bem orienta o homem na escolha dos meios a serem adotados para alcançar o bem particular que lhe é devido.

A outra interpretação equivocada de Bem Comum é vê-lo como sendo o bem pessoal ampliado ao máximo pelas liberdades totais. Quanto mais livre, mais independente e mais rico. Espalha-se a riqueza material e com isso todos ficam felizes e satisfeitos. Logicamente essa autonomia afasta drasticamente o homem do seu fim último, e o orienta a uma atuação política contrária muitas vezes ao Bem que vem de Deus e nos conduz a Ele.

Por outro lado, os socialistas e comunistas interpretam o Bem Comum com essa visão estereotipada que considera o Estado Socialista como sendo o único bem do povo, o único provedor, o único dono, o único produtor. Quanto mais Estado, mais dependência e menos necessidade de possuir. O resultado é a pobreza geral na qual todos os povos socialistas caíram.

Alívios

Cabe lançarmos um olhar para os últimos anos do nosso Brasil. Quando o sr. Aécio Neves perdeu a eleição em 2014, os liberais que adoram a democracia ficaram sem chão. Como o Brasil vivia há anos sem uma política verdadeira, dominado que estava pelas esquerdas desde Fernando Henrique Cardoso, parecia que o domínio do PT continuaria por muitos anos ainda. Não contam nunca com a vontade de Deus, não acreditam na Providência divina.

As coisas se precipitaram rapidamente e conhecemos dois anos do governo Michel Temer em que muitas coisas começaram a serem consertadas no Brasil. Pode ser que o sr. Temer seja tão ladrão quanto os demais, e que termine na prisão. Mas o trabalho que fez à frente do governo devolveu ao país um projeto sério. Enquanto o governo do PT já tinha abandonado o país ao retorno da inflação galopante, Temer conseguiu em um ano levar a inflação a percentuais espetaculares e estimulantes, além de diminuir pela primeira vez, desde o início da era PT, o desemprego no país. Além disso alavancou o cadáver da Petrobrás, nos livrou do domínio dos sindicatos, preparou a reforma da Previdência, a qual só não foi votada por causa do crime cometido pelo sr. Janot, de lançar ao ventilador da mídia as acusações contra o presidente que frearam as possibilidades políticas de Temer e do Brasil.

Hoje, quando Jair Bolsonaro se prepara para assumir a presidência, deve agradecer ao seu predecessor por ter tirado o Brasil do fundo buraco em que o PT o havia precipitado. E Bolsonaro parece saber disso.

Não podemos fechar o ano de 2018 sem mencionar a mudança impressionante que tem acontecido com a política do nosso país. As multidões que se sentiam asfixiadas pelo PT, acuadas e escondidas, parecem ter despertado. Os resultados das eleições foram lições dadas aos antigos políticos que abusaram e traíram o país com seu projeto de perpetuar-se no poder. O PT sobretudo, foi rechaçado fortemente, e todas as mentiras lançadas sobre golpe e volta de suposta ditadura foram desfeitas pela verdade.

Apesar de muitas atitudes fanatizadas de certos grupos, o fato é que temos hoje um presidente da República capaz de entender o que é o Bem Comum, de estabelecer seus ministros com esse critério específico de buscar o Bem, a Lei Natural em primeiro lugar, e apesar de seus equívocos causados pelo protestantismo de sua mulher, pelo menos ele tem sabido se portar corretamente, atribuindo a Deus a orientação do Brasil no caminho da verdade e do Bem.

Alertas

Algumas das idéias levantadas nessa fase de transição do governo soam límpidas, naturais e benfazejas. Outras nos afligem e nos deixam um sabor agridoce diante do que virá pela frente. Estamos na iminência de vermos equipes técnicas e competentes darem rumos novos ao Brasil, aliviando de diversas formas as crises que se abateram sobre a nação. Ao mesmo tempo, ainda não é possível avaliar corretamente o que significa a presença tão forte dos protestantes na orientação do novo governo. Não nos iludamos. Historicamente, quando os protestantes encontram meios, fazem de tudo para denegrir, atrapalhar ou mesmo perseguir a Igreja. É verdade que a ausência de padres, bispos, autoridades católicas no apoio a Bolsonaro só contribuiu para a presença de pastores protestantes. Mas eles não são os únicos.

Há também uma nova direita chamada “conservadora” que se pretende católica, mas que segue orientações de hereges notórios, de adeptos de religiões comparadas, de seguidores de René Guénon e outros. A Permanência não poderia se alinhar com esse tipo de pensamento, pois ele rompe com a fé íntegra, falsifica a noção de Religião e conduz os homens a caminhos ruins para o pensamento e para a vida prática.

Continuamos cumprindo nosso papel de formação católica do pensamento, dentro da orientação dada pela Igreja e pelos papas até as vésperas do Concílio Vaticano II. A Tradição, para um católico, significa Revelação transmitida oralmente, verdades de fé infalível que não foram escritas, mas transmitidas pela Igreja por obra do Divino Espírito Santo. Esperamos que o novo governo de Jair Bolsonaro saiba esquivar-se de tantos enganos que o cercam tentando abocanhar poder na nova oportunidade.

Resta-nos manter nossa Esperança na Divina Providência, sabendo que Nosso Senhor é o Rei das nações, e Ele só pode abrir as portas, e elas necessariamente se abrirão; fechá-las e serão fechadas com toda a certeza. Nesse Tempo do Advento e Natal ouviremos as grandes Antífonas Ó, com que a Igreja conclama Nosso Senhor para vir, para se encarnar. Com uma delas terminamos esse Editorial, pedindo ao Menino Jesus, Rei e Senhor do Brasil, que olhe por nossos governantes e pelo povo brasileiro.

“Ó chave de Davi e cetro da casa de Israel, que abres e ninguém fecha, que fechas e ninguém abre. Vinde tirar do cárcere o prisioneiro que está nas trevas e na sombra da morte.” (Antífona do dia 20)

  1. 1. Iª Pe 2, 13 e seg. 
  2. 2. Rom. 13, 1 a 5.
  3. 3. Leão XIII, Immortale Dei.
  4. 4. Leão XIII, Quod Apostolici Muneris
  5. 5. Leão XIII, Diuturnum illud
  6. 6. Leão XIII, Rerum Novarum, 1891
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