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Santo Tomás e a teologia dogmática

Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX

Depois de Santo Agostinho, a Igreja assume definitivamente o papel de educadora e civilizadora que havia ficado vacante pelo desaparecimento do Império Romano. Esse movimento doutrinal, essa cultura, que se mantém durante os mil anos em que durou a Idade Média, tem um nome: escolástica. Os grandes intelectuais, pelo fato de serem igualmente sábios e cristãos, acreditam-se na obrigação de analisar sua fé em termos tão racionais quanto seja possível. É a fé que procura entender as coisas de Deus, mas é também a fé queserve para compreender o universo terrestre. Desse trabalho realizado para expressar melhor a Deus, nasce na Igreja o esforço teológico e dogmático, cujo representante em mais alto grau é Santo Tomás de Aquino. Ao descrever a gênese e o apogeu da escolástica, e ao estudar seus mais ferozes adversários, poderemos esclarecer muito bem esta nova intuição própria da verdade cristã, a saber, a harmonia que há entre a Revelação e a razão.

 

1. A escolástica e Santo Tomás

Do século VII até o XVI, os filósofos e teólogos, apesar das suas diferenças, recebem um mesmo nome, o de escolásticos (homens da escola), porque são solidários em todos os pontos nevrálgicos do conhecimento. Nessa época, a Cristandade está perfeitamente unificada no plano político e religioso. O mesmo acontece com o pensamento. Há um idioma comum: o latim eclesiástico, que permite harmonizar os esforços na busca da verdade. O método é uniforme: a demonstração racional rigorosa, tanto em filosofia quanto em sua aplicação à Revelação em teologia. As fontes são idênticas: a insuperável filosofia de Aristóteles e a fé. Deste modo, durante vários séculos, gerações de sábios anônimos apoiam-se em seus predecessores com a única pretensão de clarificar e ordenar a cultura cristã. Longe de ser um castigo, os limites tão amplos e tão saudáveis da escolástica não podiam senão alcançar resultados prodigiosos.

Os hercúleos esforços da escolástica chegariam ao coroamento no século XIII, o século mais importante da História cristã e da História como um todo. É o século de São Luis e de Dante, o século que vê o nascimento da catedral de Colônia e da Suma Teológica, o século do Poverello de Assis e de São Domingos. E, como nos tempos do apogeu da época pagã, deparamo-nos com mentes brilhantes que oferecem uma vigorosa síntese. Mencionemos, em particular, Santo Alberto, São Boaventura e, sobretudo, Santo Tomás de Aquino, o maior de todos. O auge da escolástica deve-se a três fatores simultâneos: a fundação das universidades, coroado pela de Paris; a constituição da ordem dominicana, que fornece os primeiros monges universitários; e, principalmente, a tradução das obras de Aristóteles.

Com efeito, a chegada do Filósofo às escolas foi o acontecimento capital que deu ao século XIII uma fisionomia própria. A sabedoria pagã, expressa em uma ampla síntese científica e com seu ideal próprio de vida, se realinhava em face da sabedoria cristã conservada pela corrente agostiniana. Era a primeira confrontação da humilde filosofia das realidades humanas com a elevada teologia das coisas do céu. O encontro não aconteceu sem choques.

Aristóteles faz sua entrada por intermédio de comentadores judeus e árabes da Espanha meridional, que mereciam antes o nome de corruptores, entre outras coisas, por suas concepções de  sabor panteísta. Esse tesouro da sabedoria humana estava impregnado do veneno do paganismo. Chegariam a triunfar sobre o coração cristão os deuses da antiguidade? Todo o mérito do século XIII consistiu em elaborar a síntese que as culturas seguintes não puderam jamais repetir. O Renascimento humanista e as revoluções subsequentes do protestantismo e do «século das Luzes», ao fazer do homem o centro de tudo, não conseguiram senão destruir a unidade medieval. Com efeito, esta unidade e harmonia das duas grandes sabedorias que até esse momento corriam por caminhos separados, foi alcançada durante a Cristandade medieval. Este trabalho de integração das duas verdades, humana e divina, requeria um gênio providencial. E a Providência não negaria este homem ao século da fé.

Apelidaram-no de Boi mudo não só por seu físico e mutismo, mas também por ter sido um ruminante perpétuo. Tomás de Aquino, napolitano de gênio precoce, teve sempre a inteligência orientada para as coisas mais elevadas, desde que perguntou aos monges de Monte Cassino, quando contava com apenas cinco anos: «O que é Deus?». Esta pergunta o acompanhará até o dia de sua morte. O humilde frade mendicante, temeroso da responsabilidade de pregador, que renunciou generosamente a toda dignidade exterior, havia assimilado todos os livros acessíveis em sua época. Conhecia a Bíblia Sagrada de memória e teve acesso as melhores fontes escritas, tanto em Roma como nos demais centros universitários. Desde sua chegada a Paris, aurora borealis e capital intelectual do mundo cristão, Santo Tomás surpreende a todos os seus contemporâneos, que logo se aglomerarão ao seu redor para escutar o mestre mais famoso da Universidade de Paris. Os biógrafos não poupam elogios ao seu ensino: um novo método, novos argumentos, novos pontos doutrinais, uma nova série de problemas, uma nova luz. Executou um aggiornamento pelo simples fato de não buscar a novidade, mas a verdade apenas. Acreditava na verdade, e defendia a todo custo as verdades tiradas da experiência para fazer delas seus princípios imutáveis. Ele as hierarquizava e unia em uma síntese fecunda e de fácil leitura. Não resta dúvida que estava perfeitamente provido das armas necessárias para realizar a tarefa que lhe incumbia a escolástica de seu tempo: articular a verdade natural e a verdade sobrenatural em uma síntese harmoniosa.

 

2. O sofisma das «duas verdades» de Siger

A integração de Aristóteles na Cristandade havia de encontrar oponentes ferozes. Os agostinianos lançavam anátemas contra aquele intruso que foi apresentado com traços de panteísmo e paganismo. Seguiam a um Santo Agostinho limitado: uma teologia eminentemente espiritual e sublime, perdida em Deus, mas divorciada dos conhecimentos terrestres. Sua filosofia, inspirada em Platão, era mais angélica que humana, e mais fundada nas ideias do que na realidade. Esses agostinianos lançavam suas construções teológicas como certos arquitetos audaciosos que erguem pilares altos demais e elegantes demais. Eles construiam uma teologia sublime antes de se assegurar de seus fundamentos racionais. Eles detinham a autoridade em Paris, mas a sabedoria da filosofia eterna que fluía abundante dos escritos de Aristóteles não podia permanecer escondida debaixo do alqueire e, cedo ou tarde, haveria de impor-se aos escolásticos. O tempo e a curiosidade intelectual dos medievais ganharão a disputa contra os agostinianos, mesmo com o arcebispo de Paris fulminando anátemas contra as teorias tomistas.

Neste processo de integração se insere o episódio do turbulento Siger de Brabante. Siger, seguindo ao pé da letra o Aristóteles dos comentadores impregnados de panteísmo, ensinou graves erros dogmáticos em seus cursos na Universidade de Paris. Para ele, Aristóteles é a sabedoria natural inquestionável. A fé revela a verdade sobrenatural, também inquestionável. Ambas têm direito de ocupar um lugar no mundo, mas como? Fixando o limite de cada uma: a fé está a salvo em sua própria esfera, e a verdade filosófica na sua. Siger estabelecia o divórcio entre as duas ordens do conhecimento, entre a razão e a fé, entre o laboratório e a oratória. Chesterton, em sua biografia do Boi mudo, explica, em um estilo inimitável, a dramática crise dessa luta corpo a corpo entre as duas doutrinas:

«O demônio é o macaco de Deus. O erro nunca é mais falso do que quando está muito próximo da verdade. É quando o punhal toca o nervo da verdade que consciência cristã grita de dor … Siger de Brabante levanta-se e diz qualquer coisa de tão horrivelmente semelhante a São Tomás, e tão horrivelmente diferente, que (como o Anticristo) ele poderia enganar até os eleitos. Ele diz o seguinte: a Igreja, teologicamente, tem de ter razão,  mas, cientificamente, ela pode falhar. Há duas verdades: a verdade do mundo sobrenatural e a verdade do mundo natural, que contradiz o mundo sobrenatural. Enquanto formos naturalistas, estamos livres para supor que a Cristandade é sem sentido; mas quando nos lembramos de nossas raízes cristãs,  nós devemos admitir que a Cristandade é verdadeira, até mesmo se ela é sem sentido.

Em outras palavras, Siger de Brabante cortou a cabeça em duas, como no golpe de machado de uma velha lenda guerreira. Ele declara que o homem tem dois espíritos: um tem de ser inteiramente crente; o outro pode ser inteiramente descrente. Para muitos, isso parece uma paródia do tomismo. Na verdade, era o assassinato do tomismo. Não eram duas vias que conduziam à mesma verdade. Era uma via falsa que afirmava haver duas verdades… Aqueles que se queixam que os teólogos fazem distinções sutis dificilmente encontrariam exemplo melhor de sua própria loucura. De fato, uma distinção sutil pode ser uma contradição pura e simples. É evidentemente o caso aqui.» 1.

Santo Tomás aceitava de boa vontade a existência de dois caminhos para achar a única verdade, precisamente porque estava seguro de que havia uma única verdade. Uma vez que a fé é a verdade absoluta, nada há na natureza que possa contradizer a fé. É certo que se tratava de uma confiança total na realidade da religião. Com sua lógica concisa, o santo levantou-se com todas as suas forças contra aquela paródia sigeriana da verdade:

«É ainda mais grave, pois logo em seguida ele [Siger] diz: “Pela razão concluo necessariamente que a inteligência é numericamente uma só [para todos os homens], mas, pela fé mantenho firmemente o contrário.” Assim, pois, concede que a fé tenha por objeto coisas das quais necessariamente o oposto poderia ser concluído. Ora, como não se pode concluir necessariamente mais que a verdade necessária, cujo oposto é a falsidade impossível, resulta que, de acordo com sua declaração, a fé tem por objeto a falsidade impossível, o que entretanto nem o próprio Deus pode fazer. E isso é algo que os ouvidos dos fiéis não podem suportar»2.

Não poderia haver melhor refutação para essa «dupla verdade» aberta à contradição. Nem melhor defesa de que a verdade é una, que o Deus de Moisés é também o Criador do céu e da terra, e que o Verbo Encarnado que multiplicou os pães é o mesmo que faz crescer as espigas de trigo.

A disputa que Siger de Brabante e Santo Tomás de Aquino sustentaram na Universidade de Paris não foi uma simples discussão bizantina. Ela tocava o cerne da verdade cristã. Para um cristão, a fé é essencialmente imbuída de razão do começo ao fim.

Em primeiro lugar, o juízo da fé, como todo juízo humano, deve ser movido por motivos racionais, o que faz o santo doutor afirmar que ninguém creria se não visse que tem de crer. Por isso, nossa religião é, entre todas, a única que se dirige ao homem enquanto homem, ao homem que pensa por sua razão e que se nega a crer cegamente em algo de que não tenha nenhuma evidência. A religião cristã eleva os olhos ao céu e conserva os pés na terra. Para Siger e seus seguidores, ao contrário, a religião é um salto no absurdo, um golpe ao acaso, um tiro no escuro com toda a chance de errar o alvo.

Em segundo lugar, não pode haver desenvolvimento do dogma se os artigos de fé nâo são ilustrados e e explicados à luz da razão. Nossa religião pretende conhecer o único Deus verdadeiro, autor da natureza e da graça, por meio da razão intimamente unida à fé. Ela está sempre disposta a se submeter à prova de teses filosóficas e científicas rigorosas, porque sabe que Deus não se contradiz. A teologia tomista é eminentemente científica, uma vez que a razão demonstra rigorosamente as conclusões teológicas fundadas na fé. Ao contrário, a teologia de Siger, não sendo ciência no sentido estrito, converte-se, ao longo do tempo, em um discurso sentimental e carregado de imagens, tirado de uma Revelação carismática e fundado nas emoções.

O divórcio que Siger estabelece conduz ao fideísmo essencialmente irracional, que encontramos na fé cega de Lutero e na fé sentimental de Kant. Todos os modernistas fizeram profissão de fideísmo: Loisy opôs o Cristo histórico ao Cristo da fé; Tyrrell disse que aquilo que é falso especulativamente (segundo a razão) pode ser verdade na prática (segundo a fé). Esse fideísmo, que nega ao homem o uso de sua razão, é uma caricatura da verdade, pois pretende que a fé em Deus pode ser absurda sob o pretexto de que Deus é misterioso. É, portanto, a caricatura modernista da fé católica.

 

3. A função do teólogo: harmonizar as duas sabedorias

Santo Tomás pôs tranquilamente mãos à obra, sem se preocupar com o que diriam seus adversários. Porém, semelhante trabalho de harmonização teria de enfrentar as dificuldades inerentes aos moldes em que essas duas sabedorias se desenvolveram. A sabedoria grega crescera segundo o molde aristotélico, mais realista e terra à terra; a cristã, segundo o molde agostiniano, mais teológico e divino, longe das questões materiais.

E, no entanto, para o ouvido afinado de Santo Tomás, estas duas melodias, elaboradas em momentos históricos distantes, emitiam sons muito similares, como se uma fuga de Bach fosse tocada separadamente em dois teclados distintos.

Como um compositor genial, ele se propõe então tocá-las simultaneamente em seus respectivos teclados, para produzir os mesmos sons e realçar a riqueza dos harmônicos e a plenitude dos acordes. Semelhante composição requeria duas coisas: era preciso purificar cada um das melodias que ainda tivessem notas discordantes, apesar da correspondência da linha geral. Em seguida, era preciso uni-las em uma síntese orgânica superior e profunda, que produzisse um som tão mais harmonioso e adequado quanto mais distinto. E então, assim como Bach teve de primeiro temperar seus teclados antes de harmonizar com êxito suas tocatas e fugas, Santo Tomás também teve de primeiro revisar suas fontes, antes de reuni-las em uma síntese teológica superior.

O imenso respeito que tinha pelas luzes do Cristianismo fez com que o santo doutor conservasse sempre uma grande veneração pelo gênio de Santo Agostinho. Na realidade, seus enfoques eram verdadeiramente distintos. Enquanto o Pai da Igreja propunha uma meditação sobre as coisas de Deus, o doutor medieval lhes buscava as causas fundadas na razão. Entretanto, apesar dos inevitáveis ajustes, pode-se dizer que a substância do agostinismo passou à Suma Teológica3.

De fato, porque era, acima de tudo, teólogo, Santo Tomás tinha de escolher o instrumento filosófico apropriado. Somente a filosofia de Aristóteles lhe servia. Por quê? Porque é a única que merece com razão o nome de filosofia eterna por seu realismo, seu rigor lógico e seu impulso em direção aos primeiros princípios das coisas. O aristotelismo é a glorificação da sensatez, a sistematização filosófica do senso comum. Fora da filosofia aristotélica, a inteligência só pode equivocar-se, como prova a história da Grécia antiga. Porém, as conclusões do filósofo pagão eram pouco claras, sobretudo no que se refere ao Além, à Criação, à imortalidade da alma e a Deus. Por quê? Porque a sabedoria de Aristóteles era mais horizontal do que vertical, mais realista do que sublime. Aristóteles se detém na substância criada; Santo Tomás tinha de levar a análise filosófica mais longe e mais alto.

Uma vez afinadas, as duas sabedorias, divina e humana, tinham de ser unidas em uma síntese teológica harmoniosa. Também aqui, como no caso da filosofia e da fé, na origem da doutrina sagrada encontramos em Santo Tomás uma intuição profunda.

Com efeito, as duas linhas melódicas entoam o mesmo Autor, o mesmo Criador e o mesmo Deus. Mas, em que ponto elas se harmonizam com êxito? Em que chave teológica as duas linhas convergentes da razão e da fé unem-se para se reforçar mutuamente? Qual é o ponto comum, a noção metafísica universal que corresponde à Revelação mais definitiva de Deus? Santo Tomás foi o primeiro a descobrir essa evidência, tão natural que se poderia dizer conhecida desde os primórdios da humanidade. Ele viu que tudo remete ao ser e, mais precisamente, ao ato de ser — esse — que define Deus perfeitamente. Deus, ao revelar Seu nome a Moisés, lhe diz: «Eu sou o que sou». Jesus diz igualmente: «Antes que Abraão fosse, Eu sou». Os santos não têm outra linguagem: Deus é tudo, enquanto o homem não é nada! Toda criatura tem existência, mas só de Deus pode ser dito que é. Só Deus é totalmente simples; a criatura é composta, é uma natureza, uma essência que existe. Santo Tomás acrescentou ao pensamento aristotélico o ponto de vista supremo, o binômio essência-existência, o único que permite distinguir o criado do incriado, o composto finito do infinitamente simples. O professor Gilson, especialista em Idade Média, comenta essa concepção suprema do Aquinata:

«O simples fato de conceber Deus como o Ato de ser puro e subsistente por si mesmo, causa e fim de todos os demais seres, é criar uma teologia que pode justificar tudo aquilo que há de certo nas outras teologias, do mesmo modo que a metafísica do esse [existência] tem todo o necessário para justificar tudo o que há de certo nas outras filosofias. Porque inclui a todas, essa teologia do Ato incriado do ser, ou de Deus cujo nome próprio é “Eu sou”, é tão verdadeira como todas consideradas em seu conjunto, e mais verdadeira que cada uma delas considerada separadamente. Se não me equívoco, esta é a razão secreta por que a Igreja escolheu Santo Tomás como seu Doutor comum… Para aqueles que vivem dela, a metafísica do Doutor comum, recebida em sua plenitude, é o nec plus ultra da compreensão, insuperável por direito e insondável em suas consequências»4.

A analogia do ser, pedra angular do tomismo, permite então ao olho de águia do santo doutor alçar-se diretamente à mais elevada sabedoria. Dessa maneira, são reconciliados o Evangelho e a filosofia pagã, a fé e o gênio natural, mas inspirado, de Aristóteles. Reconciliados, mutuamente reforçados e unidos para construir um estado superior do conhecimento: a teologia que fala de Deus o quanto pode fazê-lo a razão e a fé. A doutrina tomista, comparada com o simples catecismo, eleva-se como uma gigantesca catedral gótica ao lado da casa de um camponês. Ambas as sabedorias apoiam-se mutuamente para elaborar o esforço arquitetônico intelectual mais audacioso da história, a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino.

Por que a Igreja, por mais de sessenta Papas, recomenda o tomismo acima de qualquer outra doutrina? Por que, por exemplo, não se poderia seguir com a mesma segurança a síntese de um Santo Agostinho ou de um São Boaventura? Por duas razões muito simples. Em primeiro lugar, como já mostramos, porque é a teologia mais universal e mais provada. Assim como na ciência, as hipóteses que coordenam um maior número de fatos e se relacionam mais estreitamente com princípios superiores têm mais peso que as demais, do mesmo modo, um sistema teológico é tanto mais certo quanto mais provas ofereça em todos os campos5. Ora, isso é próprio do tomismo. Em nossos dias, o teólogo que queira fazer sua disciplina avançar deve se erguer sobre os ombros de Santo Tomás, como o físico sempre considera as descobertas precedentes, ou a ciência ainda estaria no tempo de Arquimedes.

A segunda razão que faz do tomismo a teologia oficial da Igreja é que ela se funda, em última instância, sobre princípios eternos e imutáveis: a Revelação e a filosofia realista. Se é verdade que só há uma Revelação, é igualmente verdade que esta só se converte em uma teologia científica quando a inteligência humana a estuda fazendo uso dos princípios do bom senso codificados por Aristóteles. Uma vez que não há mais que uma Revelação e uma filosofia eterna, tampouco pode haver, definitivamente, mais do que uma ciência teológica que reúna os dados da fé e as conclusões teológicas em rigorosa coordenação. Se a Igreja se aferra tanto ao tomismo, não é por fanatismo ou por disciplina, mas por uma necessidade lógica. Em arquitetura o estilo de construção varia de acordo com a época, mas para a construção de qualquer edifício imperam leis idênticas e invariáveis, como a gravidade e a resistência, sem as quais não haveria castelos, nem casas, nem choças Acontece o mesmo com Santo Tomás. Seu valor não reside tanto em ter elaborado uma admirável síntese teológica, mas em ter avançado mais que nenhum outro no conhecimento da teologia e na sistematização científica de princípios fundamentais que sempre servirão de base para todo aquele que queira tornar-se um teólogo, do mesmo modo que se vai à escola de arquitetura para se tornar arquiteto6. Ora, essas leis e princípios essenciais do tomismo são o que a Igreja manda seguir como diretivas certas quando ela obriga o uso de São Tomás.

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Terminaremos nosso estudo de Santo Tomás com o elogio que o Papa Pio XI lhe faz. Esta será a melhor introdução ao estudo da crise modernista.

«Se queremos evitar os erros que são a origem e a fonte de todas as misérias de nosso tempo, o ensinamento do Aquinate tem de ser mais do que nunca seguido religiosamente. Pois Santo Tomás refuta as teorias propostas pelos modernistas em todos os domínios, em filosofia, protegendo, como já dissemos, a força e o poder do espírito humano e demonstrando a existência de Deus pelos argumentos mais eficazes; em dogmática, distinguindo a ordem sobrenatural da natural e explicando as razões da fé e os dogmas neles mesmos; em teologia, mostrando que os artigos da fé não se fundam apenas na opinião, mas sobre a verdade e são, portanto, intangíveis; em exegese, transmitindo o verdadeiro conceito de intuição divina; na ciência da moral, da sociologia e do direito, estabelecendo os princípios certos da justiça legal e social, comutativa e distributiva, e explicando as relações entre justiça e caridade; no estudo do ascetismo,por seus preceitos de perfeição da vida cristã e sua refutação dos inimigos das ordens religiosas de seu tempo. Enfim, contra liberdade excessiva do espirito humano e sua independência em face de Deus, ele declara os direitos da Verdade primeira e a autoridade do Senhor supremo de todos nós. É, pois, claro que os modernistas têm todas as razões para temer Tomás de Aquino mais do que qualquer outro doutor da Igreja. Assim, como ele em outra ocasião dissera aos egípcios em tempos de fome: Ide a José, a fim de que eles possam receber dele a provisão de trigo para alimentar seus corpos, nós dizemos a todos que desejem a verdade: Ide a Tomás, e pedi a ele que vos dê em abundância o alimento da doutrina substancial para possais nutrir vossas almas para a vida eterna.”

(Cem Anos de Modernismo, tradução: Ricardo Bellei)

  1. 1. Gilbert Keith Chesterton, Saint Thomas Aquinas, pp. 106-108.
  2. 2. De unitate intellectus contra Averroistas, circa finem, em Ramírez, De fide divina, p. 108; cf. Vaticano I, Dei Filius, cap. 4.
  3. 3. Gilson, Les tribulations de Sophie, p. 40.
  4. 4. Gilson, ibídem, p. 44.
  5. 5. Gardeil, Le donné révelé et la théologie, pp. 253-284.
  6. 6. Em Labourdette, Dialogue théologique, p. 12.
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