CAPÍTULO I
Por que a Necessidade de um Ministério Eclesiástico?
A autoridade civil, como a autoridade eclesiástica e, conseqüentemente, toda a economia do santo ministério tornaram-se necessárias por causa do pecado original.
Se Adão não tivesse pecado, a Humanidade fiel a Deus teria gozado de felicidade tão grande que maior não haveria, senão a felicidade da vida eterna.
O homem submisso a Deus teria haurido diretamente Dele a vida da graça, não teria havido necessidade de guia para encontrar Deus e, com Sua santa e divina graça, teria podido ir a Ele sem tropeços e vacilações.
Mas a Humanidade não se encontra mais nesse estado; o pecado penetrou no mundo e transformou de maneira espantosa todas as condições em que ele foi criado.
Para defender-nos contra os maus, quis Deus que na sociedade houvesse a autori-dade civil. Para reconduzir-nos ao bem e à vida eterna, Deus desejou uma autoridade eclesiástica, um ministério eclesiástico. Deus quis que Suas graças alcancem os homens por meios proporcionados à indigência de criaturas decaídas que são.
Esquecendo o que devia a Deus, aprouve Adão obedecer a Eva, assim como Eva aprouve obedecer a Satã; e Deus, querendo que o remédio correspondesse à natureza da falta, achou bom então que o homem fosse submisso a uma migalha de pão, a uma gota d’água.
Deus, portanto, humilhou sua criatura orgulhosa e isto é a razão de ser de nosso ministério: para sermos ministros da salvação dos homens, somos ministros da humilhação dos homens.
Estas considerações devem humilhar-nos profundamente, se tivermos sensibilidade para perceber a profundidade da queda e a natureza verdadeira dos remédios de que somos os ministros, e, portanto, a verdadeira natureza de nosso ministério.
Mas não temos por que nos gloriar da autoridade que Deus nos deu, pois que esta autoridade é uma prova sempre manifesta, um testemunho sempre irrecusável da queda da humanidade, de nossa própria queda com ela e nela. Pecadores que somos, temos dupla obrigação: de converter-nos e de trabalhar para converter os outros.
A primeira dessas obrigações está acima das forças humanas. Que diremos e que faremos, então, nós, que além dessa temos ainda o encargo da segunda obrigação?
A condição atual da humanidade, depois da queda original, eis a razão do ministério eclesiástico.
CAPÍTULO II
Natureza do Mal Presente
O mal presente é pura e simplesmente o pecado original e suas conseqüências.
Com qualquer nome por que seja chamado, o mal presente não é nem pode ser outra coisa.
O pecado entrou no mundo por Adão. O pecado de Adão tornou-se o pecado de todo o gênero humano e dessa fonte única, mas muito fecunda, por demais fecunda, de-correm todas as desgraças das almas.
O pecado original, mesmo onde limpo pelo batismo, deixa remanescente tríplice concupiscência: orgulho, avareza, sensualidade.
Pior é que essas lamentáveis concupiscências geralmente vêm a prevalecer nos batizados; e então dominam tão poderosamente que o batismo, a confirmação e a comunhão parecem hoje sem ação nas almas.
De muitos cristãos, lastimavelmente, tem-se impressão de que só foram batizados para virem a ser apóstatas; muitos parecem ter sido batizados para renunciar ao Espírito Santo, em vez de para recebê-lo, e há os que participam da Eucaristia para de fato desdenhar do Filho de Deus.
Assim, os remédios que deveriam salvar são transformados em venenos que produ-zem a morte; os sacramentos, que são os canais da graça, tornam-se freqüentemente ensejos de pecado.
Em muitos lugares, o estado comum das almas é a apostasia; freqüentemente, porém, uma apostasia antes insensata do que calculada: vive-se afastado de Deus, de Nosso Senhor, do Espírito Santo, longe de tudo que é sobrenatural.
E, no entanto, são almas batizadas. Que ultraje à graça divina! Que ultraje ao Espírito Santo! Que ingratidão para com Deus Pai, para com a adorável pessoa do Salvador, para com o Espírito Santo!
CAPÍTULO III
Como se Gera o Mal Presente
A fonte do mal, já dissemos, é o pecado original. Ora, essa fonte é muito secreta, e, em virtude do próprio segredo em que se oculta, ela tem mais facilidade de disseminar seus venenos.
O pecado original é pouco conhecido; e, freqüentemente, mal conhecido.
Como ele lançou as almas na ignorância, parece que deliberadamente se empenhou em ocultar sua própria malícia, a qual consiste essencialmente em duas coisas:
1) a perda da justiça original;
2) a deterioração da natureza.
Hoje, entretanto, ainda que se admita a perda da justiça original, busca-se não reconhecer que a natureza tenha sido deteriorada.
Este conhecimento assim truncado do pecado original deixa campo livre para uma multidão de erros e em todo caso ele é ineficaz para a salvação, segundo a máxima bem conhecida: Bonum ex integra causa; malum exquocumque defecta (o bem provém de uma causa sem falhas; o mal provém de qualquer falha).
Do fato de não se saber mais, de não mais se querer reconhecer a deterioração da natureza pelo pecado original decorrem as mais funestas conseqüências.
A natureza sente-se orgulhosa de si mesma, não obstante a palavra tão solene do Apóstolo: Quid habes quod non accepisti? Si autem accepisti, quid gloriaris quasi non acceperis? (O que tens que não tenhas recebido? E, se recebeste, por que te glorias, como se não tivesses recebido? — 1 Cor 4,7).
Deixando de perceber seu próprio mal, a natureza é levada a abusar dos bens que lhe foram dados, empregando-os como arma contra Deus; e, assim, produz em si própria novas chagas.
Ela possui razão, liberdade e os sentidos, mas de tudo abusa. Sua revolta insolente contra Deus precipitou-a no naturalismo; e por uma série de conseqüências inevitáveis, a razão caiu no racionalismo, a liberdade no liberalismo e os sentidos no sensualismo.
Depois de todas essas incursões espantosas no domínio do mal, a natureza, ainda insatisfeita, voltou-se contra o próprio Salvador, negando Sua divindade e negando Sua humanidade. Negou Sua graça. Negou Sua Igreja. Negou tudo. E depois disse de si própria, tal como a Babilônia de outrora: Ego sum, et nom est praeter me amplius (Eu sou, e somente eu sou — Is 47,8).
O mal não é tão grave assim em todas almas; mas nos próprios fiéis as verdades foram singularmente diminuídas. Há para eles um naturalismo atenuado que não pretende ser erigido em dogma, mas que se contenta perfeitamente em ser aceito como doutrina prática. Há um racionalismo mitigado que não condena a fé, mas que comumente se reserva o direito de julgá-la; há também um liberalismo católico; e se ainda não se ousou falar em sensualismo católico, somos entretanto obrigados a convir que o sensualismo se instalou em muitas almas católicas de tal sorte que a vida sensual chegou a extinguir nelas o conhecimento da mortificação cristã, sem a qual porém, segundo o testemunho do Apóstolo, não se vive na presença de Deus: Si secundum carnem vixeritis moriemini; si autem spiritu facta carnis mortificaveritis, vivetis (Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se, pelo espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis — Rom 8,13).
Deve-se notar aqui um ponto capital a respeito do qual o naturalismo falseou singularmente as idéias, mesmo dos bons. Estudando os Autores que até os séculos XV ou XVI trataram da graça e cotejando-os com os autores modernos, pode-se notar entre eles uma diferença considerável.
Os primeiros reconhecem a graça salvífica do Redentor, sua gratuidade, sua eficácia.
Hoje, a eficácia da graça é freqüentemente atribuída à vontade da criatura; outrora, ela era considerada como um dom da própria graça.
É de se afirmar que os homens de nossos dias, mesmo os cristãos, não estão aptos para ler o tratado de São Bernardo - De gratia et libero arbitrio - sem se pasmar ou mesmo talvez sem se escandalizar. Pois não é que o padre Rohrbacher chegou a escrever que São Bernardo não soube estabelecer distinção entre a natureza e a graça? Ó pigmeu do século XIX, dissestes isso de São Bernardo; e até de Santo Agostinho dissestes coisa semelhante!
Como os homens sem grandeza dos tempos presentes não possuem sobre a graça os sentimentos que lhe devotaram os antigos, conseqüentemente não consideram mais neces-sário rezar para pedi-la, obtê-la e conservá-la. O que é hoje a oração? Onde estão as almas que rezam? Não é verdade que a oração da maioria dos cristãos consiste apenas na recitação de fórmulas? Como estão longe do cristianismo de Nosso Senhor e de seus Apóstolos, o qual é espírito e vida!
CAPÍTULO IV
Como Pode Ser Curado o Mal Presente
Nosso Senhor é o único Salvador dos homens, portanto, fora Dele não se poderá encontrar remédio para os males que nos afligem:
Non est in alio aliquo salus, nec enim aliud nomen est sub coelo datum hominibus in quo aporteat nos salvos fieri (Não há salvação em nenhum outro, porque, sob o céu, nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos — At 4,12).
Se, portanto, a natureza está enferma desse mal chamado naturalismo, para ser curada, ela deverá submeter-se a Jesus; se não, conservará seu mal, que a perderá fatalmente e para sempre.
E note-se que a submissão necessária para a cura deve ser completa, total e do fundo do coração. É preciso entregar-se ao médico celeste para receber toda a virtude de seus remédios divinos e qualquer reserva na submissão não somente compromete a cura, mas geralmente a torna impossível. “Quero ser batizado”, dizia o eunuco da rainha da Etiópia. — “Sim, diz-lhe São Felipe, se tu crês de todo teu coração” (si credes ex toto cordo licet — se crês de todo teu coração, é possível — At 8,37). A salvação depende dessa condição.
A razão tem seu mal que é o racionalismo. Ela, também, para ser curada, deve submeter-se a fé. Nada mais justo! A razão criada deve-se inteiramente à razão incriada; a razão humana deve-se à razão divina. Se a razão humana julga que cresce ostentando independência, engana-se e tão completamente como o filho pródigo ao deixar a casa paterna. Que encontrou ele quando longe de seu pai? Só indigência e vergonha. A razão que se afasta da fé não tem outra coisa a esperar. Sua salvação está nesta palavra do filho desgarrado: Surgam et ibo ad Patrem meum (Levantar-me-ei e irei para meu Pai — Lc 15,18).
Cabe assinalar aqui uma ilusão extremamente funesta em que caíram muitos ho-mens apesar de estimáveis. Como é necessário que a razão humana não se desvie da fé, esses homens julgaram ser bom procedimento rebaixar a fé perante a razão, atenuando as divinas exigências da fé, diminuindo seus direitos imprescritíveis, a fim, segundo dizem, de torná-la mais facilmente aceitável. Mas por que querem fazer com as almas aquilo que jamais fariam, com os corpos, os médicos dignos desse nome? Estes sabem qual a dose necessária para que um medicamento seja eficaz; será que prescreverão uma dose mais fraca, a pretexto de tornar o remédio fácil de tomar? Eles sabem, porém, que por esse preço não haveria cura, e então não farão tal coisa. Por que nós, médicos das almas, haveremos de ser menos sábios do que os médicos do corpo? Filii hujus saeculo prudentiores filiis lucis in generatione sua sun (Os filhos deste mundo são mais hábeis no trato com os seus semelhantes que os filhos da luz — Lc16,8).
A liberdade tem sua doença, que é o liberalismo. A liberdade é uma bela e digna faculdade da alma. O liberalismo é um estado anormal dessa liberdade: estado falso e forçado. Pois a liberdade nos é dada para o bem e para o mérito, enquanto que o liberalismo é o estado de uma liberdade descomprometida com o bem e com o mérito. Assim como o racionalismo é um abuso da razão, o liberalismo é um abuso da liberdade: abuso que consiste em fazer da própria liberdade a regra da liberdade. Mas somente Deus é sua própria regra, e toda criatura que nisso quer imitar Deus não faz senão imitar Satanás, pioneiro dos revoltados. A razão tem por regra a razão de Deus, isto é, a fé. E a liberdade tem por regra a vontade de Deus, que é a caridade.
A caridade ilumina, dirige, contém, sustenta, fortifica a liberdade e a torna capaz de progressos maravilhosos, pois, quanto mais o homem progride no bem e no mérito, mais livre se torna. Ouçamos a grande voz da Igreja na Oração da segunda-feira de Páscoa:
Populum tuum, quaesumus Domine, coelésti dono proséquere; ut et perféctam libertátem cónsequi mereátur et ad vitam proficiat sempitérnam (Nós vos pedimos, Senhor, que continueis a cumular de dons celestes o vosso povo, para que ele mereça alcançar a liberdade perfeita e progrida no caminho da vida eterna).
Isto nos faz compreender melhor a sublime expressão de Santo Agostinho, já citada: Libertas est charitas.
Prosseguindo o estudo do mal presente, encontra-se o sensualismo, o amor do bem-estar material, o amor da satisfação dos sentidos, como o movimento de Eva em direção ao fruto que lhe parecia belo de ser visto e saboroso para comer.
O remédio para esse mal tão comum, tão profundamente enraizado na natureza, é a penitência.
Fazei penitência, eram as primeiras palavras de Nosso Senhor em suas pregações; pois a penitência é tão necessária que Ele um dia disse: Nisi poenitentiam habueritis omnes similiter peribitis (Se não fizerdes penitência, perecereis todos do mesmo modo — Lc 13,3).
A palavra penitência tornou-se desagradável de ouvir; há uma espécie de cons-trangimento de novo tipo em pronunciá-la. Nesse caminho já se chega a ir longe, tanto assim que um homem religioso do novo tipo saiu-se gravemente com esta sentença:
“O jejum não está mais no espírito da Igreja; hoje é a oração, é a oração”.
Sim, a pretexto de espiritualidade faz-se tábua rasa de uma boa parte do Evangelho e com isso ganhou, evidentemente, o sensualismo.
CAPÍTULO V
O Verdadeiro Estado das Almas
A Humanidade passou por três estados sucessivos:
o primeiro, desde a queda de Adão até Moisés, chamado estado da lei da natureza;
o segundo, desde Moisés até Nosso Senhor, é o estado da lei escrita;
o terceiro, desde Nosso Senhor até nós, é o estado da lei da graça, que durará até o fim dos tempos.
Santo Agostinho resume todo o estado do mundo nessas épocas sucessivas em três itens: Ante legem, sub lege, sub gratia (antes da lei, sob a lei, sob a graça).
· Uma alma se acha ante legem quando se encontra na ignorância, seja porque não lhe foi ministrada instrução, seja por tê-la negligenciado não sabendo seu valor.
· Uma alma está sub lege quando tem conhecimento do bem a praticar e do mal a evitar; não obstante, seja por ainda não ter recebido a fé, seja por negligenciar viver segundo a fé, ela permanece em pecado que sabe ser pecado.
· Uma alma esta sub gratia quando, junto com o conhecimento, ela recebeu também o dom da fé e a graça de viver segundo essa fé que opera a caridade: Fides quae per dilectionem operatur (a fé que opera pelo amor — Gal 5,6). Nesse feliz estado, a alma caminha em paz na via dos santos mandamentos; ela ama as leis de Deus, e Deus acima de tudo; ela é livre no bem que ama e caminha com confiança em direção à recompensa prometida por Deus.
É necessário fazer-se esse discernimento das almas a fim de proporcionar as instruções às suas particulares necessidades e não exigir delas o que seria superior a suas forças. Assim:
· uma alma que se encontra ainda ante legem tem muito mais necessidade de receber do que aptidão para dar. Para ela a boa vontade consiste em receber a luz à medida que esta lhe é apresentada, e não se lhe deve pedir mais, porque mais não é possível;
· uma alma que está sub lege precisa ser esclarecida sobre a natureza da fé, sobre os mistérios da Encarnação e da Redenção; ela tem necessidade de ser encaminhada à oração e sobretudo ao desejo de uma graça maior e mais abundante;
· uma alma que está sub gratia requer ser bem instruída sobre a natureza da graça, sobre sua gratuidade, sobre sua necessidade, sobre suas operações maravilhosas, a fim de que, a elas se entregando com amor, caminhe na trilha de todas as boas obras. Essa alma tem também necessidade de ser instruída sobre a humildade e de nela firmar-se, a fim de não se expor ao pecado: Quid se existimat stare videat ne cadat (quem se presume estar firme tenha cuidado para não cair — 1 Cor 10,12). Tu autem fides stas: Noli altum sapere, sed time (Se estás firme é por causa da fé. Mas não te sintas superior, antes teme — Rom 11.20).
Importa, por isso, necessariamente, que a instrução seja adequada ao estado da alma, e que, por sua vez, esta venha a agir de acordo com a instrução recebida. Seria desastroso exigir-se de uma alma mais do que lhe é possível perante Deus, como, por exemplo, pretender-se levar à comunhão uma alma que nem mesmo esteja ainda sub lege, uma alma que ainda se encontre talvez ante legem, em estado de deplorável ignorância.
O mal que se tem feito e que ainda se faz procedendo de tal forma, é incalculável. Especialmente lastimável nessa circunstância é fazer-se uso dos sacramentos, porque então eles são recebidos sem conhecimento, sem preparação, e, portanto, sem fruto e sem o desejo de serem novamente recebidos; em muitos casos o são por uma única e última vez.
CAPÍTULO VI
Ainda o Verdadeiro Estado das Almas
Na França, o ministério é exercido exclusivamente perante pessoas batizadas (assim se podia dizer em 1863, época em que estas palavras foram originalmente escritas), as quais poderiam então supor que deveriam ser consideradas como estando sub gratia ou ao menos sub lege. Tal suposição seria, porém, um grosseiro equívoco.
Pois existem muitíssimas almas que perderam a graça, que muitas vezes chegaram até a perder a fé. A estas seria prejudicial tratá-las como fiéis, procurando-se de imediato levá-las às práticas religiosas antes de fazer-se com que a fé nasça ou renasça nelas. Tal proceder poderia induzir a crer que a religião consiste puramente em regras e cerimônias; e, então, as faríamos cair em um estado pior que o anterior.
O Padre Faber dizia que os ingleses devem ser tratados com os mesmos cuidados que os Padres outrora empregavam para os pagãos. Entretanto, esses ingleses são batizados; e, embora protestantes, são muitas vezes mais religiosos do que os católicos franceses. Não teríamos dúvida em pedir para estes o que o Padre Faber pedia para seus compatriotas. Certamente lhes prestaríamos um grande serviço ensinando-lhes a fé, se a ensinarmos de tal modo que nunca sejam levados a crer que Deus se satisfaz com formalidades, e que a religião é apenas um conjunto de cerimônias.
O que está acima se aplica às almas desviadas.
Mas há outras. As que servem a Deus nem sempre dispõem dos socorros espirituais de que necessitam. Precisariam de luzes, precisariam ser ajudadas no discernimento de seus caminhos, nas operações de Deus nelas próprias; estas almas, porém, raramente encontram o que necessitam. Por falta de socorro, muitas almas, por exemplo, se afogam em escrúpulos, muitas perdem a coragem diante das dificuldades, muitas se estiolam por falta de instrução baseada na fé. Bem poderiam elas dizer, como o paralítico do Evangelho: Hominem non habes! (Não tenho quem me valha! — Jo 5,7).
Os padres facilmente imaginam que estão sempre suficientemente preparados para confessar os homens do campo. Enganam-se, porém; as almas dessa gente humilde se equivalem às almas dos que habitam nas cidades, e não são necessárias menos luzes e menos discernimento para ajudar uma alma de aldeão que a de um cidadão de grande metrópole. Uma alma é sempre uma alma em qualquer lugar que seja; as necessidades das almas são grandes em toda parte, e o Espírito Santo tanto opera nas maiores cidades quanto nos mais humildes rincões.
Muitas vezes, tivemos ocasião de constatar o abatimento de que padecem as almas carentes de auxílio, de luzes, de direção segura.
Há padres que julgam dar remédio a tudo isso assumindo sobre as almas um tom de autoridade: “Faça isto, eu ordeno; obedeça...”. Tais meios, porém, não constituem a luz, nem a produzem. A autocracia do sacerdote não tem cabimento quando o Espírito Santo quer ter a palavra.
Excetuado o caso, que é bastante raro, de escrúpulo proveniente de timidez, a autoridade não é um meio salutar de direção. Non dominamur fidei vestrae (Não somos donos de vossa fé — 2 Cor 1,24).
O verdadeiro meio consiste antes no cuidado de aclarar o caminho, de instruir solidamente a fé sobre as operações do Espírito de Deus, do espírito próprio e do espírito do maligno.
CAPÍTULO VII
Adoração em Espírito e em Verdade
Como já dissemos, há um imenso perigo em fazer-se consistir a religião em apenas observâncias e atos exteriores. Se a isso se reduzisse, a religião dos cristãos pouco se diferenciaria do antigo paganismo, pois seria então mero exercício corporal em vez de empenho da alma.
Nosso Senhor, tendo ensinado aos homens que Deus é espírito, quer que Ele seja adorado pelo espírito ou em espírito, e chama isso de adorar Deus em verdade.
Portanto, se o culto que prestamos a Deus não lhe for prestado em espírito ou pelo espírito, também não lhe será prestado em verdade.
Considerado desse ponto de vista, o mal atual é muito grande; e entre os cristãos de hoje é o fruto lastimável de uma funesta ignorância.
Os cristãos já não conhecem mais, ou ao menos suficientemente, três coisas que constituem o culto de Deus pelo espírito, a saber:
a fé,
a graça de Deus, e
o grande mandamento.
Embora conhecendo o objeto da fé, não sabem o que é a fé. Ainda lhes resta algum conhecimento a respeito das verdades da fé, mas não têm noção do que seja o próprio dom da fé: dom gratuito de Deus pelo qual nosso espírito adere à verdade revelada por Deus e é então posto no caminho da vida sobrenatural. Há muitíssimo que fazer para restabelecer a fé, a fé completa, entre os cristãos de nosso tempo.
Eles também não conhecem o que é a graça de Deus. Essa é para eles uma palavra muito vaga sem significação precisa, sem sentido determinado. Têm necessidade de serem instruídos sobre a natureza da graça e sobre sua gratuidade (freqüentemente imaginam que Deus seria injusto se não a distribuísse indiscriminadamente a todos). Aliás, tem-se que reconhecer que grandes doutores em Israel tinham necessidade, também eles, de aprender o que é a graça de Deus. E se com os mestres é assim, o que será então com os discípulos?
Os cristãos da época atual têm ainda a premente necessidade de serem instruídos sobre o grande mandamento de amar a Deus. Há hoje a tendência de substituir-se a fé pelo sentimento religioso (muitas vezes nossos doutores, quando deveriam mencionar a palavra fé, dizem ou escrevem “sentimento religioso”), embora haja entre esse e aquela uma distância incomensurável, pois o sentimento religioso é uma disposição natural enquanto que a fé é um dom sobrenatural. Equívoco não menor cometem os que crêem ter encontrado um meio de praticar o amor de Deus no exercício de uma certa sensibilidade ou pieguice devota, que nos faria acreditar que verdadeiramente ainda temos alguma coisa para o “bom Deus”. Há, porém, uma grande distância entre tal disposição e o amor de Deus como Deus o entende: amor que faz com que todos os nossos afetos se desliguem das coisas do mundo para se dedicarem integralmente a Deus, amor que liberta a alma das três concupiscências, amor que governa inteiramente a vida e a ordena integralmente segundo o propósito único de agradar a Deus.
Ó! Como há tanto que fazer para ensinar aos cristãos a fé, a graça e o amor de Deus!