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Primeira parte: natureza do ministério eclesiástico

 CAPÍTULO I

Origem do Ministério

Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu Seu Filho Único. E enviando ao mundo Seu Filho Único, Deus lhe confiou um grande ministério a cumprir perante a humanidade decaída.
Ao Filho de Deus, como nosso Redentor, coube primordialmente satisfazer à Justiça de seu Pai. Além disso, coube a Ele não só merecer para nós todas as graças necessárias à nossa salvação, como ainda criar uma instituição encarregada de, haurindo incessantemente do tesouro de Seus méritos, dispensar a todos os eleitos as graças necessárias para conduzi-los à vida eterna.

Nosso Senhor cumpriu integralmente o ofício que seu pai lhe atribuiu, e, na véspera de sua morte, podia dizer com toda verdade:
Opus consummavi quod dedisdi mihi ut faciam (Cumpri o que mandaste que Eu fizesse — Jo 17,4).

 E, um instante antes de morrer, mais expressivamente ainda o disse na cruz:
Consummatum est (Está consumado — Jo 19,30).

Nosso Senhor tinha formado seus Apóstolos para o ministério; tinha-lhes ensinado toda a verdade; tinha-lhes revelado todas as coisas; e confiou-lhes os sacramentos. Antes, porém, de pô-los em ação para exercer o ministério, infundiu-lhes o Espírito Santo. A obra que eles tinham de levar avante, sendo uma obra divina, não poderia se bem executada senão pelo próprio Espírito de Deus. O espírito do homem não seria suficiente para uma tarefa de tal porte. E, então, o Espírito de Deus lhes foi dado.

CAPÍTULO II

O Ministério no Tempo dos Apóstolos 

Nosso Senhor, depois de ter Ele próprio criado e exercido o santo ministério, confiou-o a seus Apóstolos, como continuadores de Sua obra.

Para esse fim, deu-lhes os poderes de ordem e de jurisdição e ao mesmo tempo as virtudes necessárias para o bom uso desses atemorizantes poderes. Onus angelicis humeris formidandum (Uma carga aterradora para ombros angélicos), diz o Concílio de Trento.

Instituindo os Apóstolos, Nosso Senhor os fez ministros perfeitos, Idoneos nos fecit ministros Novi Testamenti (Ele nos constituiu aptos servidores do Novo Testamento — 2 Cor 3,6), pois que tinha faculdade tanto para dar-lhes virtudes como para dar-lhes poderes. Os Apóstolos transmitiram facilmente os poderes, pois para isso tinham os sacramentos; mas não podiam dar as virtudes1. Isto explica porque o ministério pôde ter fracassos; e constitui a razão da fraqueza que afeta os herdeiros dos Apóstolos.

Não nos antecipemos, porém, e vejamos o que era o ministério nas mãos dos Apóstolos.

São Pedro o diz em uma palavra: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus (Nós nos consagraremos inteiramente à oração e ao ministério do Verbo — At 6,4).

Para São Pedro, o ministério consiste, em primeiro lugar, na oração; em seguida, na pregação; a administração dos sacramentos vem depois, como coisa secundária, ou parte por assim dizer material, que freqüentemente os Apóstolos confiavam aos diáconos quanto ao batismo, ou aos padres quanto ao batismo e demais sacramentos.

São Paulo, que havia convertido grande número de habitantes de Corinto, só batizou, entretanto, nessa cidade, muito poucas pessoas, pois habitualmente os fiéis eram batizados por Apolo e por Cefas. Ele dizia claramente que Nosso Senhor não o mandara batizar, mas sim pregar o Evangelho: Non enim misit me Christus baptizare sed evangelizare (Eis que o Cristo não me mandou batizar, mas evangelizar — 1 Cor 1,17).

Isto é de extrema importância, pois hoje as idéias são inteiramente diversas das dos Apóstolos. Os Bispos e os Padres, uma vez tendo administrado os sacramentos, crêem tranqüilamente que cumpriram o seu ministério, mas, de fato, executaram a parte material, em que não está contido o essencial.

CAPÍTULO III

O Corpo e a Alma do Ministério

No ministério compete distinguir, como na Igreja, o corpo e a alma, tal como nas coisas se distingue a matéria e a forma.

O corpo do ministério é a parte exterior, ritual; é a administração dos sacramentos.

A alma do ministério é, certamente, a oração, união interior com Nosso Senhor, e é essa união que nos deve fazer buscar em Deus o espírito interior, capaz, só ele, de fecundar as obras exteriores.

A pregação pertence em parte ao corpo e em parte à alma do ministério, pois considerada como uma função exterior, por certo é operação do corpo do ministério; mas, se considerada como devendo ser inspirada, vivificada, animada na oração para dela colher sua virtude e sua eficácia, então pertencerá à alma do ministério.

E isto faz com que se entenda a profundidade da palavra de São Pedro, citada mais acima: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus.

CAPÍTULO IV 

A Verdadeira Ordem das Três Grandes Funções do Ministério

O ministério compreendendo principalmente, portanto, segundo Nosso Senhor e os Apóstolos, estas três funções: oração, pregação e administração dos sacramentos, importa observar-se que São Pedro colocou antes de tudo a oração, em seguida a pregação e por fim, como uma espécie de resultante, a administração dos sacramentos.

Esta é a verdadeira ordem das santas funções.

De início, deve-se buscar a convivência com Deus, pois aí está o ponto capital; é necessário captar sua graça, tornar-se familiar com ela, como diz São Gregório; e em seguida atraí-la para as almas junto às quais terá que ser exercido o ministério.

Depois de se ter rezado, é preciso pregar, é preciso instruir, e a pregação, tornada poderosa pela oração que a precedeu, leva as almas a desejar em seguida a receber os sacramentos.

Esta é a economia da obra de salvação das almas; é nessa ordem que Nosso Senhor deseja que as santas funções sejam cumpridas.

Será que é esta a idéia que hoje se tem do ministério e da ordem a seguir para bem exercê-lo? Muito duvidamos disso. Pois, se não estamos enganados, parece-nos que a grande preocupação é a administração dos sacramentos e em seguida a pregação; quanto à oração, considera-se como uma obra pessoal do padre, não mais como sendo a obra principal do ministério, o que significa pura e simplesmente uma inversão da ordem estabelecida por Deus.

CAPÍTULO V

Primeira Função do Ministério: A Oração 

Nosso senhor ensina que é preciso rezar sempre:  Oportet semper orare (Luc 18,1).

O cumprimento deste preceito, tomado ao pé da letra, seria impossível para nós. Eis por que os Santos Padres o explicaram como tendo o sentido de que é preciso rezar com bastante freqüência para que a alma esteja continuamente sob a ação, sob a proteção da oração feita precedentemente2.

Para esse fim, o Espírito Santo inspirou à Igreja a fixação de horas de oração, e se tem considerado como estando em permanente oração aqueles que rezam fielmente nos tempos prescritos para oração, nas horas fixadas, ou melhor, nas “horas canônicas”. Semper orat qui statuta tempora non pratetermittit oranda (reza sempre aquele que não deixa de rezar nos tempos determinados, dizia Beda, o Venerável).

Essas “horas” são bem conhecidas.

Os Apóstolos deram o exemplo da oração feita nas “horas canônicas”.

Media nocte Paulus et Silas orantes laudabant Deum et audiebant eos qui in custodia errante (Pelo meio da noite, Paulo e Silas rezando louvavam a Deus e eram ouvidos pelos que estavam na prisão — At 16,25). Era uma oração vocal, pois que era ouvida pelos que estavam presos com os Apóstolos.

No dia de Pentecostes, a Igreja nascente estava reunida para a oração de terça, quando veio o Espírito Santo: Erant omnes pariter in eodem loco... hora diei tertia (estavam todos então reunidos ... na hora terça do dia — At 2,1-15).

São Pedro sobe para rezar em um quarto no alto da casa; era a hora Sexta: Ascendit... ut oraret circa horam Sextam (subiu... para rezar por volta da hora Sexta — At 10,9).

São Pedro e São João sobem ao Templo para a oração da hora Nona: Petrum autem et Joannes ascendebant in templum ad horam orationis Nonam (At 3,1). Esta palavra é especialmente digna de nota: os Apóstolos tinham horas determinadas para rezar: Horam orationis. “Nona” era uma dessas horas.

O centurião Cornélio, mesmo antes de ser cristão, rezava na hora Nona, e foi então que recebeu a visita do anjo que o encaminhou a São Pedro: Orans eram, in domo mea hora Nona (estava rezando em minha casa na hora Nona — At 10,30).

A Tradição da Igreja é constante quanto a este ponto tão importante da oração nas “horas canônicas”. Os exemplos dos santos são idênticos em todos os séculos. E vemos que todos sempre fazem da oração nas “horas canônicas” o seu primeiro dever. São Pedro dizia: Non est aequum nos derelinquere Verbum Dei et ministrare mensis (não é justo que descuidemos da palavra de Deus para servir às mesas — At 6,2), ensinando assim que não se deve sacrificar a pregação em favor de uma obra exterior de caridade; nem tampouco admitiria ele que se sacrificasse a oração, pois a esta dava proeminência sobre a pregação e sobre todas as coisas, conforme se depreende das seguintes palavras, já citadas: Nos vero orationi et ministerio Verbi instantes erimus (At 6,4).

CAPÍTULO VI

Segunda Função do Ministério: A Pregação

A pregação da palavra de Deus não é obra humana. A ciência, por maior que seja, a eloqüência, por mais poderosa que seja, não são a pregação da palavra de Deus.

A ciência pode ser útil, a eloqüência pode ser útil; mas na pregação da palavra de Deus há mais que ciência e há algo melhor que eloqüência.

Note-se bem esta expressão: palavra de Deus. Para pronunciar-se esta palavra é preciso tê-la recebido, e se é verdade que ela se recebe da Igreja, não é menos verdade que ela se torna palavra de vida graças ao Espírito de Deus infundido em nós na oração.

A palavra que temos de pregar deve, pois, vir de Deus e além disso é preciso que ela seja anunciada pelo Espírito de Deus. Em Pentecostes é que os Apóstolos pregaram pela primeira vez: Repleti sunt Spiritu Sancto et coeperunt loqui (foram repletos do Espírito Santo e começaram a falar — At 2,4).

Há, pois, uma distância infinita entre nosso ensino e os ensinamentos humanos. Os homens anunciam a palavra do homem, nós a palavra de Deus; os homens falam com seu espírito, a nós é dado o Espírito de Deus; os homens querem comunicar a ciência a quem os escuta, nós a fé. Que diferença!

Ora, como para propagar a ciência é necessário possuir-se a ciência; assim também para gerar a fé nas almas é preciso estar-se pessoalmente imbuído da fé. A palavra que nós anunciamos deve ser a própria palavra da fé: Verbis fidei, diz São Paulo (Rom 10,8) e Fides ex auditu (a fé vem pelo que é ouvido — Rom 10,17).

Nós, portanto, não somos professores de religião; somos instrumentos de Deus para fazer que a fé penetre nas almas: Tanquam Deo exhortante per nos (Como se Deus exortasse por nós), diz ainda São Paulo (2 Cor 5,20).

Precisamos, pois, não somente pedir a Deus pela oração que nossa palavra seja realmente sua palavra; não somente estar repletos do Espírito de Deus para anunciar a palavra divina. Precisamos, — bem sabendo que nessa atemorizante função executamos uma obra inteiramente divina —, ser humildes, piedosos, suplicantes, despojados não só de nós mesmos como também despojados em alguma forma de toda nossa humanidade, a fim de que nossa obra seja verdadeiramente a obra de Deus e faça brotar a fé em quem nos ouvir. Hoc est opus Dei ut credatis (a obra de Deus consiste em que creiais — Jo 6,29)3.

CAPÍTULO VII

Terceira Função do Ministério: Os Sacramentos

Após ter rezado e pregado, o homem de Deus,  Homo Dei (1 Tim 6,11), — vendo que a fé nasceu na alma de seus ouvintes e nela opera as obras necessárias à justificação —, ministrará então os sacramentos.

Os sacramentos, que conferem tantas graças, não dão as disposições necessárias para recebê-los. Eis aí um ponto capital da doutrina cristã, e isto mostra quanto se enganam os que crêem que tudo está salvo quando se recebe os sacramentos.

Os sacramentos são sinais visíveis de graças invisíveis. E o padre que administra os sacramentos, além de estar atento ao rito exterior, deve aplicar-se interiormente em pedir a graça interior; ele deve agir em comunhão com Deus que concede a graça4, com Nosso senhor Jesus Cristo que a mereceu5 e com a alma que a recebe6.

Não há nada na religião que seja puramente exterior. Deus é Espírito, e tudo que vem Dele, como tudo o que vai para Ele, deve ser espírito.

Nós somos corpo e alma; Nosso Senhor é Deus e homem; os sacramentos têm matéria e forma. Em tudo isso há harmonia entre os dois termos e seria perturbar essa harmonia esquecer-se ou omitir-se em nossa Religião qualquer das coisas que Deus quis que nela fossem guardadas.

O homem que esquecesse sua alma para apenas dar atenção a seu corpo; o homem em que Nosso Senhor não visse senão sua humanidade, imitando por assim dizer os Antigos Antropomorfitas; o padre que nos sacramentos tão somente considerasse o rito exterior: estariam uns e outros fora da Verdade. Ora, só a Verdade salva: Veritas liberabit nos (a Verdade nos libertará — Jo 8,32).

CAPÍTULO VIII

O Ministério Eclesiástico é um Ministério Interior

Se bem que no ministério haja diversas funções exteriores, é, entretanto, certo dizer-se que, considerado em seu conjunto, o ministério é uma coisa interior.

Com efeito, pedir a graça, contribuir para que ela conquiste as almas, nelas se conserve e aumente, é por certo o essencial e a bem dizer o escopo final do ministério. E quem não percebe que todas essas coisas são coisas interiores?

E sendo isso fora de dúvida, cada vez mais vai se percebendo quanto é profunda a palavra do príncipe dos Apóstolos quando diz:  Nos vero orationi er ministério Verbi instantes erimus. Ele dá primazia à oração e o faz porque o ministério, que atua nos homens, desenvolve sobre eles sua eficácia na medida em que o ministro se mantém em relação com Deus pela oração.

Somente Deus dá sem ter recebido, porque sendo Deus tem em si mesmo todos os bens; nós, que não somos Deus, não podemos dar senão depois de termos recebido. Quando se trata dos meios de santificar as almas, de quem os poderíamos receber senão de Deus? E como Deus nô-los daria com plena eficácia, se não lhe rogássemos com humildade, confiança e perseverança?

Quão admiráveis neste ponto são nossos Pais, os antigos missionários beneditinos! Eles chegavam num país idólatra; procuravam um lugar solitário, um recanto ermo; lá punham-se a rezar, lutavam contra os demônios, contra os animais selvagens, construindo uma simples cabana para se abrigarem, cantando os Salmos nas Horas Canônicas do dia e da noite ... Nos vero in orationi instantes erimus.

Tendo permanecido em oração, muitas vezes durante anos, afinal alguns pastores vinham vê-los, perguntavam-lhes quem eram e o que faziam; daí às primeiras lições de catecismo era apenas um passo; com o tempo haviam catecúmenos ... Orationi et ministerio Verbi instantes erimus.

Assim brotava uma cristandade. A perseguição podia vir, mas seria vencida; e a fé, triunfante, era plantada nas almas.

Tudo isso bem provinha de uma ação interior: a oração, a união a Deus. Nesta união, nessa comunicação (conversatia) incessante, os santos recebiam de Deus as graças de luz, de conversão para as almas; e assim era o seu ministério abençoado por Deus.

  1. 1. Não obstante, os Apóstolos as exigiam daqueles a quem ordenavam (2 Tim 2,2). Ver At 6,3.
  2. 2. E essa é a razão da oração: Divinum auxilium maneat semper nobiscum (sempre conosco permaneça o auxílio divino), que recitamos no final de todas as Horas Canônicas, almejando e pedindo que depois de terminada a Oração Canônica não nos falte, um só instante, a proteção de Deus, a assistência de sua graça, até que uma nova oração nos ponha novamente sob a ação imediata da graça de se estar rezando.
  3. 3. Aqui o Pe. Emmanuel para completar seu pensamento cita o seguinte texto de São Paulo (2 Cor 4,13): “Possuindo esse mesmo espírito de fé segundo está escrito: ‘Eu cri, por isso falei’: nós também cremos e por isso, então falamos”. Em seguida, ele adverte, em conformidade com outros textos (1 Tess 3,10-12 ; At 13,46-48), que nós não conseguiremos abrir à fé todas as almas.
  4. 4. Adorar a caridade de Deus, que desejou a salvação dos filhos de Adão por gratuita misericórdia.
  5. 5. Adorar a caridade do Filho de Deus que se fez vítima por nós.
  6. 6. Ver o estado interior da alma perante Deus e almejar-lhe a graça.
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