Dom Lourenço Fleichman, OSB
O texto sobre Gustavo Corção que publicamos aqui foi escrito para a Revista citada no artigo em 2010. Vale notar que as publicações da Permanência sobre Gustavo Corção, seus artigos publicados no site e depois em livros de coletâneas, atraíram a atenção de alguns poucos estudiosos e pensadores. Foi assim que algumas teses acadêmicas foram escritas, e livros publicados. Hoje já é mais fácil encontrar Gustavo Corção nas livrarias do que na época em que escrevi esse artigo.
Se a Revista Conhecimento Prático de Literatura fizesse uma pesquisa junto a seus leitores com as seguintes perguntas:
- qual o autor brasileiro que foi considerado sucessor de Machado de Assis?
- qual o autor brasileiro que teve seu primeiro livro esgotado em menos de um mês?
- qual o escritor nacional que foi indicado por Manuel Bandeira para o Premio Nobel de Literatura?
Quem pensaria em Gustavo Corção? Pode-se dizer que Corção é um ilustre desconhecido, tendo sido esquecido e abandonado pelo mundo dos intelectuais. Hoje dificilmente se imagina a importância desse escritor nos vinte e cinco anos de sua carreira literária. Seu pensamento é de tal personalidade e profundidade que atraiu a atenção e a amizade dos grandes que o precederam. Vejam o que dizia dele o grande crítico Oswaldo de Andrade:
“Não me lembro de em toda a minha vida ter conhecido, entre artistas e literatos, uma figura tão impressionante como a de Gustavo Corção. Privei com Inglês de Souza, que era meu tio, conheci de perto João Ribeiro, Alberto de Oliveira e o nobre Emílio de Menezes. Fui íntimo de Villa-Lobos e Mário de Andrade. Na Europa me liguei a Picasso e Leger, Cocteau e Cendras, a esse original e magnífico Valéry Larbaud, a Supervielle e Romains, enfim, a toda uma geração revolucionária do começo do século. E apenas, com outro tom, mas a mesma doçura sarcástica, alguém me lembra o autor excelso de Lições de Abismo. Era um velho de 70 anos e tinha sido cruelmente abandonado por todos os seus amigos, quando o encontrei, no Quartier Latin. Chamou-se Eric Satie. E talvez venha a ser um dia considerado o maior gênio musical do século XX.
O que caracteriza essas naturezas que vão do doce ao amargo sem contraste é o que nelas há de inquebrável. Gustavo Corção é um inquebrável — faca de dois gumes. E isso muito se liga às virtudes intelectuais que o fazem, sem dúvida, o nosso maior romancista vivo. Nas Lições de Abismo como também na Descoberta do Outro não vejo concessões.
O que vejo é uma extraordinária e lúcida natureza de criador, ou melhor, de restituidor, pois que arte é restituição. Depois de Machado de Assis aparece agora um mestre do romance brasileiro.”
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5-4-1952 (Continue a ler)
Nascido no Rio de Janeiro em 1896, só aos cinqüenta anos de idade escreveu seu primeiro livro: A Descoberta do Outro 1. Seu ofício era a engenharia, de modo que o gênio literário ficou adormecido por muitos anos, enquanto outro gênio, o das artes práticas se manifestava. Muitas histórias de sua vida nos são contadas em “A Descoberta do Outro”, além de muitos artigos de jornais, onde percebemos algo de suas realizações. Quando trabalhava na medição dos fusos horários do Brasil, lá pelo Mato Grosso, inventou um novo método de leitura do teodolito; quando se fechou no laboratório da Radiobrás, em Jacarepaguá, inventou um órgão eletrônico, numa época em que esta invenção não tinha ainda aparecido. Construiu um protótipo deste instrumento que eu mesmo vi funcionar quando criança. E em todas as matérias, Gustavo Corção era professor. Ele mesmo escreve sobre o Colégio Corção, fundado por sua mãe e onde o jovem ensinava as coisas que aprendia mais rápido do que os colegas. Animal-professor, dizia ele. Tudo em sua vida girou em torno da arte de ensinar e de aprender.
O que faria uma cidade que soubesse que ali, num tradicional e pacato bairro ao pé do Cristo Redentor, morasse um escritor genial, inovador e profundo? A cidade e seus moradores freqüentariam sua rua, fariam visitas, o convidariam para conferências e aulas e, quem sabe, pediriam a honra de vê-lo colaborar nos principais jornais da cidade. Tudo isso aconteceu na vida de Gustavo Corção. O animal-professor foi o introdutor da cátedra de eletrônica aplicada às telecomunicações na Universidade do Brasil (atual UFRJ), professor da Escola Politécnica do Exército (atual IME) e era também chamado para ensinar a sabedoria e a ciência das coisas mais elevadas.
Muito haveria a ser dito sobre as aulas de Gustavo Corção. Porém, não poderíamos compreender a importância dessas aulas se não abrirmos a aula magna administrada por ele no seu primeiro livro, A Descoberta do Outro. Chamo assim aos três ou quatro capítulos centrais dessa obra-prima, onde o autor faz sentar seus leitores em bancos imaginários de uma escola íntima da alma, para reeducar o uso da nossa inteligência. Através de uma série de acontecimentos banais de sua vida, mostra que o mundo atual finca seus conhecimentos mais na opinião própria do que na inteligência racional.
“A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto sem que o objeto importe... Ter razão importa sem que o objeto importe” 2
O professor segue mostrando que a opinião não se forma na inteligência. Ao contrário do que poderia parecer, ela não é um conhecimento, pois o objeto a ser conhecido não importa. A opinião reside, então, naquela parte “mais irritável, mais ferida, aquela que vive a esbarrar na limitação incômoda dos objetos: a vontade.... O mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a inteligência e o objeto.
Uma vez isolado o vírus que deforma a nossa inteligência, o professor ensinará a solução do problema, o antídoto contra este mal que se espalhou pela sociedade dos homens. Tomando o leitor pela mão, se posso me expressar assim, Gustavo Corção detecta na alma humana os sentidos próprios das coisas, dos objetos. Em Três sensos pressentem um objeto, explica:
“Temos três sensos, atrofiados mas persistentes, e voltados todos para o absoluto: o primeiro é uma espécie de visão; o segundo, uma audição; o terceiro, um tato. Visão absoluta, audição absoluta, tato absoluto... Mais claramente, são os seguintes os vértices daquele triângulo: primeiro o senso da objetividade; segundo o senso da eternidade ou senso lúdico; terceiro, o senso da pessoa humana no próximo, no outro, ou senso da altruidade.”
Trata, então, da atrofia dos três sensos: a diminuição do senso da objetividade gera o subjetivismo, o liberalismo e as correntes filosóficas idealistas, todas voltadas para o sujeito, para a opinião, para as coisas passageiras e móveis. A atrofia do senso lúdico, ou senso da eternidade, é o que substitui a contemplação da infância pela função social, pelo fazer: “A ação se intromete e destrói a contemplação; o fazer subordina o ludus”. Já a deformação do senso da altruidade deforma o amor, gera a filantropia, o humanitarismo e a solidariedade. “Foi proposta uma fraternidade sob a singular condição de não se falar em paternidade”.
Tendo explicado a grandeza dos três sensos e o que a atrofia deles provoca no homem, Gustavo Corção mostrará como restaurar a equação própria da nossa alma racional, deixando à inteligência seu objeto, para que ela realize aquele ato que lhe é próprio, que consiste em conhecer as coisas por aquilo que elas são e não pelas aparências exteriores ou pela opinião que uns e outros possam ter delas.
Essa é a aula magna necessária como aprendizado para todos nós; aula capital, definitiva, anterior a qualquer obra de pensamento que possamos pretender realizar na nossa vida. Não há intelectualidade, não há arte possível sem a compreensão desta primeira matéria do curso da vida. Não adiantaria ao leitor ser apresentado ao gênio da literatura brasileira sem conhecer este aspecto da sua obra que é um aprendizado e uma restauração, como dizia Oswald de Andrade.
Tendo retornado ao catolicismo do seu batismo, Corção continuará seu ofício maior de professor junto aos amigos do Centro Dom Vital, que reunia os intelectuais católicos até os anos sessenta. Dessas aulas nascerá o movimento Permanência com sua Revista. Hoje, a Editora Permanência procura editar livros importantes para a formação do pensamento, além de manter um conjunto de sites na internet. É a obra que continua mesmo depois da morte de Gustavo Corção, que aconteceu em 6 de julho de 1978, enquanto o escritor dormia. Morte pacífica, aos 81 anos, mas que nos deixou órfãos do grande escritor e pensador católico.
E porque literatura é arte, e toda arte é um toque do belo que encanta e silencia, termino com esta passagem de Lições de Abismo, capaz de mover o caro leitor a uma caça ao tesouro nas livrarias da cidade:
“Eu trepidava de impaciência. Os lavores da pedra de meu trono castigavam-me as pernas e os braços. A coroa pesava-me, esmagava-me. Nunca, nos meus piores dias, eu fôra tão rigorosamente fotografado e tão monstruosamente incompreendido. Direi eu que o homem era injusto? Não. O que eu posso dizer, isso sim, é que êle tinha uma essencial incapacidade de ver o resto, a seiva, o sangue de minha história.
Pus-me a advogar em causa própria, entrando em minudências, fazendo reflexões, distinções, análises que iam esbarrar no rosto oleoso, vagamente divertido, quando não caíam no ralo do riso ignóbil que vinha do ventre e terminava na ponta do nariz recurvo e corado de prazer.
Acontecera-me às vêzes, lá em cima, sentir essa angustiada necessidade de convencer, de captar a simpatia de um interlocutor que eu mesmo desprezava. Os outros, os que estavam de acôrdo ou compreendiam, embora mais dignos, não me interessavam. Eu queria aquêle, justamente aquêle que me fugia, com um angustiado e absurdo desejo, ainda que devesse abandoná-lo, relegado a um definitivo desprezo, quando o tivesse vencido.
O que agora sentia era a mesma coisa, levada ao paroxismo. Eu precisava, a todo o custo, que aquêle repelente personagem me compreendesse. Humilhei-me. Pedi-lhe que fizesse um esforço. Implorei. E exausto, apertando os punhos, batendo os pés, chorando de raiva e desespero, comecei a repetir desordenadamente a minha história, que ainda ficava pior, mais parecida com a que me contara o meu algoz.
Quando já estava quase a desfalecer, olhei para cima, e vi lá no alto, na bôca apertada do funil de pedra, uma estrêla vermelha. Era Aldebarã. Colhi fôrças e voltei-me para o homem.
— Já sei o que falta na sua história. Éo am...
Com um salto êle estava em cima de mim a me apertar a garganta, a me tapar a bôca com a mão gorda e fria. E disse-me com raiva:
— Não vê que vai deitar fogo em tôda esta palha?!
Mostrava os fantoches, o caixão, as coroas. Eu debati-me, lutei, feri-me na pedra de meu trono, mas afinal consegui com voz estrangulada gritar por Aldebarã:
— Amor! Amor! Amor!
Caiu então a estrêla do céu, e um fogo enorme, uma clara vermelhidão, iluminou a gruta. Ah! agora eu via nos rostos, nos braços, nas pernas, que voavam no ar como fôlhas dançando nas chamas, o que me faltava naquele sepulcro.
Via a dor, a dor viva, a dor viva do amor. O vulcão entrara em atividade.
— Axel! Axel!
Em pé, numa prancha oscilante, eu subia num vômito de matéria incandescente entre colunas de basalto. Onde está o meu tio? Apagaram-se as vozes claras que declinavam as pétalas das rosas. Estou só. Continuo a subir na lava da estrêla. E então, juntando as fôrças, firmando-me na minha jangada sacudida, interroguei o céu e a terra: “Quem? Quem, se eu gritar, me ouvirá entre as hierarquias dos anjos?”
Doem-me braços e pernas, horrivelmente. Abro os olhos. Onde estou? Parece-me que estou no meu quarto, devolvido ao meu pobre corpo; mas a impressão que tenho é que o espaço está diferente, submarino, não-euclidiano. A fresta de luz está lá, embaixo da porta, mas torcida como um ferro em brasa atirado ao canto duma forja. Não vejo a sombra de minha mãe; não lhe ouço os passos... a casa está vazia, a casa morreu. E as rosas? Procuro-as. Lá estão elas, duas brancas e uma dourada. Mas como estão diferentes! Parece que se esticam, que se oferecem... Olho então, na direção do ofertório das rosas, e vejo diante de mim, enorme, enchendo tôda a parede, um Rouault de uma infinita majestade. Via-se a coroa torcida, os cabelos empastados, os olhos pisados, em tons sombrios com reflexos de verde-esmeralda e azul-ultramar; e no peito descoberto viam-se longos e oblíquos sulcos de vermelhão. Quanto tempo fiquei eu, com a respiração suspensa, com o pescoço esticado, procurando a luz daqueles olhos escondidos na sombra? Não sei dizer. A Figura estava imóvel, mas eu sentia uma vida intensa na sua imobilidade; e sentia um calor de lareira, um doce calor que me fundia os ossos, vindo de seu peito ensangüentado. Foi então que notei as mãos estendidas para mim, e que vi nas palmas abertas as duas chagas luminosas... Não!!! Meu Deus! que via eu nas duas palmas abertas?! Eram dois rubis de maravilhosa beleza: os meus rubis de Burma... 3