I
A Fé e Seus Mistérios
O conhecimento de um só Deus em três Pessoas que nós recebemos pela fé é mais alto, sem comparação, do que o conhecimento que temos de Deus pela simples razão natural.
Existem três graus no conhecimento que o homem pode ter de seu Criador. O primeiro é o conhecimento natural, que lhe é dado pela luz da razão. O segundo, o conhecimento sobrenatural, que ele recebe pela luz da fé. O terceiro, o conhecimento ou visão beatífica, que ele recebe pela luz da glória.
Estes três graus se assemelham um pouco com os diversos modos com que nossos sentidos se aplicam ao conhecimento de um objeto sensível. Podemos conhecer um objeto material ou pelo tato, quando o apalpamos, ou pelo ouvido, quando escutamos sua descrição, ou pela visão, quando o vemos. Isso é explicado por São Tomás na sua Suma Contra os Gentios. Ora, esses três modos se aplicam bem aos três graus do conhecimento de Deus que vimos acima.
I) A razão procura de certo modo tocar Deus, que está fora de sua visão. É o que diz S.Paulo: "Que busquem a Deus como que às apalpadelas" (Atos XVII,27). São Paulo desenha aqui um quadro que representa os pobres pagãos às apalpadelas, como cegos, atravessando a natureza e procurando tocar em Deus. O Apóstolo lhes mostra o meio de O encontrar: Ele não está longe, diz ele, pois vivemos, nos movemos e existimos por ele. (idem) Entrem em si mesmos e O encontrarão, Ele que é o Pai de toda a vida.
Quando apalpamos um objeto nos convencemos da existência desse objeto; em seguida medimos aproximadamente suas dimensões. Assim a razão natural, que apalpa Deus, está em condições de demonstrar a existência de Deus. Ela chega até a alcançar algo de sua imensidade, de sua eternidade, de seu poder infinito. Eis até onde puderam ir, segundo atesta São Paulo, os filósofos da antiguidade, pela investigação racional. (Rom.I,20)
II) Este estágio não pode nos satisfazer, a nós católicos. Somos chamados a subir mais alto e a aprofundar nossa busca pelo conhecimento sobrenatural. Trata-se do conhecimento pela luz da fé, semelhante à que nos vem pelo sentido da audição: "Fides ex auditu", diz São Paulo, a fé nos vem por audição, ou seja, quando ouvimos a palavra de Cristo, "audito autem per verbum Christi". Ela nos traz um conhecimento mais íntimo de Deus, na medida em que a palavra santa nos revela as maravilhas escondidas na Sua essência, na medida em que ela nos inicia nos segredos dessa natureza criadora onde aprendemos a adorar a Trindade de Pessoas.
Temos ainda, é verdade, um pano nos olhos; mas em vez de só apalpar o quadro, ouvimos deslumbrados sua descrição, pelo menos até onde nossa inteligência, presa às imagens terrestres, é capaz de o penetrar. Em vez de tocar somente em Deus, o Grande Vivo, analisamos, por assim dizer, a força e os atos da Vida divina.
III) Virá um dia em que a venda será retirada de nossos olhos. Uma luz, chamada luz de glória, virá fortificar, elevar, dilatar nossa inteligência. Então veremos Deus. Sim, diz São João, nós o veremos como Ele é. "Videbimus eum sicuti est". (IJo,III,2); Sim, diz São Paulo, nós o veremos face a face. "Videbimus facie ad faciem" (ICor.XIII,12). O conheceremos como Ele nos conhece (idem). O que mais dizer?
Elevados a este grau, teremos chegado ao termo dos desejos da criatura racional; possuiremos nosso fim.
Lembremos que este conhecimento beatífico, tão grande, tão glorioso, está em germe no conhecimento que temos pela fé, pois a fé é um começo de possessão da verdade total que é o próprio Deus. A fé é obscura, visto que os mistérios que ela nos propõe estão acima da capacidade da razão, no estado de vida atual; mas ela é luminosa, pois esses mistérios, escondidos a nossos olhos pela excessiva luz, iluminam com sua luz maravilhosa as coisas temporais e as eternas.
Logo, não devemos considerar os mistérios da fé como pontos negros que atrapalhariam o olhar de nossa inteligência; eles são astros explodindo de luz e que se escondem de nós nessa própria luz, cujo reflexo nos descobre todo um oceano de verdades escondidas aos sábios deste mundo e reveladas aos humildes e aos pequenos.
O primeiro e mais luminoso desses astros é, sem dúvida, o mistério da Santíssima Trindade.
Sentimos nossa fraqueza quando tentamos falar dele: se não podemos fazê-lo dignamente, que Deus nos ajude, ao menos, a falar humildemente e com proveito.
II
O Mistério da Santíssima Trindade
Sabemos pelo catecismo que os principais mistérios da nossa fé são a Santíssima Trindade, a Encarnação e a Redenção.
É muito importante lembrar sempre que desses três mistérios, o da Santíssima Trindade é o maior, o mais impenetrável, o mais adorável; e que os demais lhe são subordinados.
De fato, a encarnação e a redenção são atos temporais realizados no Homem-Deus, Jesus Cristo. Já o primeiro, ao contrário, tem por objeto os atos eternamente subsistentes da vida divina, ou seja, a geração do Filho e a processão do Espírito Santo.
Se a Encarnação e a Redenção ultrapassam a medida de nossa inteligência é porque elas se unem a uma das três Pessoas divinas, ao Filho de Deus: é isso que leva esses dois fatos a uma ordem absolutamente divina, ultrapassando inteiramente a luz da razão. É por estarem na dependência do mistério da Santíssima Trindade que eles são também mistérios. Assim, só há um mistério, e todos os outros são prolongamentos desse dogma fundamental.
Segue daí que ele é o objeto principal da nossa fé e como o centro para onde ela é levada e para onde ela tende.
Sim, ela tende. Pois a fé traz com ela uma tendência a nos unir a Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Por essa razão nós dizemos: eu creio em Deus.
Jesus Cristo Nosso Senhor, na sua natureza humana e no mistério de sua vida temporal é um laço destinado a nos unir à Santíssima Trindade, que é nosso fim supremo e último.
Não devemos nunca nos esquecer que Jesus Cristo, como homem, é apenas um intermediário, um mediador, como diz São Paulo, entre a Santíssima Trindade e a alma humana. "Mediator Dei et hominum homo Christus Jesus".(I Timot. II,5) Ele cimentou no seu Sangue essa aliança indissolúvel; é só por Ele que se realiza essa união eterna; mas ele não é, como homem, a finalidade superior que a fé nos revela, onde a esperança nos eleva e a caridade nos faz participar por antecipação. "Ninguém vem ao Pai senão por mim", nos diz Ele (Jo XIV,6). Só podemos ir ao Pai por Jesus Cristo; mas é ao Pai que devemos ir. O Pai é tomado aqui como toda a Trindade.
Essas considerações nos mostram como é importante para nós conhecer a Santíssima Trindade. Ela é o principal objeto de nossa fé: se esforçar para a conhecer é alimentar sua fé, mas ao mesmo tempo é preciso estudar esse mistério com imenso respeito, como Moisés diante do arbusto que ardia. Devemos suplicar a Deus que ele queira, ele próprio se descobrir para nós, nessas sombras luminosas da fé que apagam toda luz desse mundo e que são a bendita aurora da visão beatífica.
III
A Unidade da Natureza Divina
Antes de estudar em Deus a Trindade de Pessoas, convém compreender bem a unidade indissolúvel da natureza divina.
Deus é essencialmente um e único. Ele não poderia, de modo algum, ser vários deuses, como há vários homens. Quem diz Deus, diz o poder, a sabedoria infinita, a bondade por essência. Se pudesse haver vários deuses, cada um deles seria limitado por algum lado, nenhum seria Deus. Logo só pode haver um Deus.
Dizendo que só há um Deus, entende-se que a natureza divina é essencialmente una, e que ela não pode se multiplicar entre várias pessoas diferentes umas das outras. A natureza humana, por exemplo, se multiplica tantas vezes quantos são os indivíduos que a possuem. Tomemos dois homens: eles têm cada um a natureza humana e é por isso que são homens; mas a natureza de um não é a natureza do outro, são dois homens diferentes.
Em Deus, a natureza divina não se multiplica assim, ela não pode se multiplicar assim: e no entanto, sendo essencialmente una em si mesma, ela é comum a três Pessoas distintas. O Pai possui a natureza divina, o Filho a possui, o Espírito Santo a possui; e é a mesma e única natureza nos três. Assim, o Pai, o Filho e o Espírito Santo não são três deuses, mas um só Deus. Se eles fossem três deuses, haveria três naturezas divinas; ora, não pode haver mais do que uma.
Essa natureza única não é dividida entre as três Pessoas, como se cada uma possuísse um terço; ela é inteira em cada, como a natureza humana é inteira em cada homem. O mistério consiste justamente nisso que a natureza divina é inteira em cada uma das três Pessoas sem ser por isso multiplicada ou triplicada.
Uma santa italiana, Santa Clara de Montefalco, meditou muito sobre o mistério da Santíssima Trindade. Depois de sua morte achou-se no seu fígado três bolinhas iguais. Essas bolinhas tinham esse particular que cada uma delas pesava tanto quanto as três juntas. Que se pesasse uma, duas ou três, era sempre o mesmo peso. Uma imagem impressionante da Santíssima Trindade! Tome uma Pessoa divina: a natureza divina está toda nela. Tome duas Pessoas divinas: ela está toda nas duas. Tome todas as três, ela está toda nas três, mas tanto nas três quanto em uma só, como a bolinha que não pesava mais quando as três juntas ou quando uma só separada.
Isso vem do fato que, diz Sto Anselmo, acrescentar Deus a Deus nunca dá mais que um Deus, assim como somar a eternidade à eternidade nunca dá mais que uma eternidade, como juntar uma superfície a uma superfície sempre dá uma superfície. A concepção da natureza divina pede que ela seja una e indivisível; é assim impossível que ela seja multiplicada.
O catecismo exprime essa verdade quando diz: O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus; não são três deuses, mas um só Deus em três Pessoas.
IV
A Distinção das Pessoas
Temos a natureza humana porque temos um corpo e uma alma. Somos cada um uma pessoa porque nosso corpo é só nosso e nossa alma é só nossa. Todos os homens têm a mesma natureza, nesse sentido que todos têm um corpo e uma alma; todos são pessoas diferentes, nesse sentido que o corpo de um não é o corpo do outro, a alma de um não é a alma do outro; cada corpo e cada alma têm características particulares e incomunicáveis.
Em Deus há três pessoas e uma única natureza. A distinção entre as pessoas não vem da natureza que é única para todas as três, mas do fato que a natureza divina mantém em cada pessoa Relações diferentes.
O Pai tem para com o Filho uma relação de Paternidade. O Filho tem com o Pai uma relação de Filiação. O Espírito Santo tem com o Pai e com o Filho uma relação de Processão. A natureza divina é Pai na Pessoa do Pai, mas não é Pai na Pessoa do Filho; essa mesma natureza é Filho na Pessoa do Filho, mas não é Filho na Pessoa do Pai; enfim, esta mesma natureza é Espírito Santo na terceira Pessoa, mas não é Espírito Santo nem no Pai nem no Filho. Logo o Pai não é a mesma pessoa que o Filho, o Filho não é a mesma pessoa que o Pai, o Espírito Santo não é a mesma pessoa que o Pai nem que o Filho.
Lemos no Símbolo de Santo Atanásio:
"O Pai não procede de ninguém, Ele não é feito, nem criado, nem engendrado".
"O Filho procede só do Pai, Ele não é feito, nem criado mas engendrado".
"O Espírito Santo procede do Pai e do Filho, Ele não é feito, nem criado, nem engendrado, mas procede".
Assim, as três pessoas divinas têm isso em comum, elas não são feitas nem criadas. E elas têm em próprio que o Pai não é de ninguém; que o Filho é do Pai unicamente, por geração; que o Espírito Santo é do Pai e do Filho por processão.
Um é o Pai, outro o Filho, outro o Espírito Santo, mas pela unidade de natureza, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só e mesmo Deus, visto que em Deus não pode haver nada além de Deus.
Vamos agora procurar as luzes que a Sagrada Escritura e a Tradição nos trazem sobre a maneira da geração do Filho pelo Pai e da maneira de processão do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho. Mas antes é preciso ter algumas noções sobre os atos da vida divina.
V
Os Atos da Vida Divina
Deus se chama a si próprio de Deus vivo. Ele possui a vida no mais alto grau. Ele é a própria vida, segundo esta palavra de Nosso Senhor: "Eu sou a vida" (Jo. XVI,6). Sendo a vida, Deus é a fonte da vida de todos os seres vivos.
O que é a vida? A vida é a faculdade que tem um ser de se mover ele próprio. As pedras, por exemplo, são inertes, não vivem. Já as plantas são vivas, nós as vemos sair da terra e se desenvolver por um princípio interno. Mas a vida da planta é imperfeita; encontramos nos animais uma vida mais perfeita do que nas plantas porque eles sentem, eles mudam de lugar como querem, eles reconhecem e procuram aquilo que lhes convém, eles se afastam e se defendem daquilo que lhes é contrário. Mas a vida é ainda mais perfeita no homem.
Além das qualidades que são comuns com os outros animais, o homem tem uma alma. A alma é vida e a morte não tem sobre ela nenhum poder. A alma traz consigo as sublimes faculdades de conhecer e amar. A vida da alma consiste em exercer essas duas faculdades, fazê-las agir sem sair de si mesma. Ela conhece, e por isso ela representa dentro de si os objetos, como num espelho interior. Ela ama e se lança interiormente na busca do objeto amado como num impulso interior.
A vida da alma é admirável, mas ela é uma fraca imagem, um distante eco da vida divina. A alma às vezes conhece, às vezes não: mas Deus é só inteligência e amor. Conhecer e amar é a própria natureza de Deus.
A alma conhece as coisas uma após as outras e as afeições de seu coração se sucedem uma depois da outra: Deus conhece todas as coisas de um só olhar que não tem começo nem fim; ele ama de um amor imutável e eterno.
A alma busca seu conhecimento nos objetos exteriores; ela é levada a amá-los pela beleza que neles descobre. Deus conhece tudo em si mesmo, sua ciência é a regra suprema de tudo o que existe; é sua ciência que, junto com seu amor, tirou do nada todas as criaturas; a bondade que está nelas é um reflexo da bondade divina. Digamos, com Santo Agostinho, que Deus não conhece as coisas porque elas são, mas as coisas são porque Deus as conhece. Deus não ama as coisas porque elas são boas, mas elas são boas porque Ele as ama. É seu conhecimento que as faz ser, é seu amor que as faz boas.
Procuremos, então, entrar neste grande e insondável mistério da vida divina. Deus se conhece a si próprio e conhece todas as coisas em si. Deus se ama e ama todas as coisas em si. Ora, por uma infinita bondade de sua natureza, o seu ato de conhecimento se termina numa pessoa divina que é seu Filho, e o seu ato de amor se termina em outra pessoa divina que é o Espírito Santo.
Examinaremos separadamente estes dois atos divinos, contemplando primeiro a geração eterna do Filho e em seguida a Processão do Espírito Santo.
VI
A Geração Eterna do Filho
Diz Deus pelo profeta: "Eu que dou vida aos outros não posso então engendrar a mim mesmo?" Ou seja, "eu que sou vivo, não teria os atos da vida, entre todos o de engendrar meu semelhante?"
De fato, o homem recebeu de Deus o poder de gerar o homem. Devemos concluir que Deus pode também gerar Deus. Será que aquele que deu ao homem o poder de falar, ou de escutar não poderá ele mesmo falar e escutar? Ninguém dá o que não tem. O homem gera o homem, logo Deus gera Deus.
Mas como Deus engendra? Não pode ser com um corpo pois Deus é espírito. Procuremos nos espíritos uma imagem, pálida imagem, mas que se aproxima melhor do ato divino.
Nossa alma tem a faculdade de conhecer; graças a esta faculdade, ela se representa os objetos como num espelho interior. Nossa alma vê com os olhos do corpo uma flor. Imediatamente forma-se na alma a idéia de flor; é uma espécie de geração. A flor passa de seu estado material a um estado espiritual na alma daquele que a vê. É sempre assim que fazemos, mesmo sem o saber, e necessariamente, passando toda a natureza do material para o espiritual. E se a coisa já é espiritual, como a virtude ou a honra, ela permanece assim em nossa alma.
Deus também conhece. E o que Ele conhece? Ele conhece a si mesmo. Num só olhar ele se vê eterno, imutável, infinito. Ele tem dele mesmo uma idéia igual a si próprio, igualmente grande, perfeita, igualmente subsistente. É seu Filho, verdadeiramente gerado à sua semelhança, a imagem viva de suas perfeições infinitas.
Para nos ajudar a conceber esta geração inefável, façamos uma suposição. Imaginemos que uma mãe tenha perdido seu filho. Ela forma dentro dela uma imagem, uma imagem muito parecida. Suponhamos que ela possa dar vida a esta imagem; não teria ela assim gerado espiritualmente seu filho dentro dela? Isso, que é uma impossibilidade para nós ou para qualquer outra criatura, é uma realidade em Deus. Pela infinita fecundidade da natureza divina, Deus, se contemplando a si mesmo, gera seu Filho, imagem de sua bondade, figura de sua substância, esplendor de sua glória, seu verdadeiro Filho, Deus como Ele, eterno e infinito como Ele.
É por isso que São João Evangelista chama ao Filho de Verbo. "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus". Verbo quer dizer palavra. Há uma palavra interior que a alma pronuncia quando ela pensa e fixa seu pensamento em algo. É o que se chama o verbo interior da alma. Ora, a palavra interior de Deus é seu Filho, é seu Verbo, concebido e engendrado espiritualmente. Por isso preferimos o nome de Verbo a qualquer outro que se dê ao Filho, pois ele nos leva mais que os outros ao âmago do mistério da divindade.
Vejamos ainda alguns efeitos nas coisas materiais que nos ajudarão a avançar ainda mais no mistério. Uma chama acende outra chama igual a ela, sem no entanto nada perder de sua luz. O sol lança seus raios pelo espaço imenso sem perder nada de sua energia. Assim o Pai engendra o Filho; assim Deus gera Deus. E o Credo, na missa solene nos faz cantar, falando do Filho: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.
VII
A Processão do Espírito Santo
O Credo também nos fala do Espírito Santo e o faz nesses termos: "Creio no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai e do Filho". Assim, o Espírito Santo não é gerado como o Filho, mas procede.
O ato divino que chamamos a processão do Espírito Santo não poderia ser mais misterioso. Procuremos as luzes que nos trouxeram os santos Doutores, para que possamos formar uma idéia dessa processão inefável. Essas luzes são belas, mas bem mais fracas do que a luz do próprio mistério que um dia nos será manifestado.
Eles dizem primeiro que um ser vivo pode sair de outro vivo e ter a mesma natureza sem no entanto ser seu filho. Eva saiu assim de Adão, tendo mesma natureza do que ele, sem ser sua filha. Não houve geração porque ela foi formada de uma de suas costelas; ela saiu de Adão mas não nasceu dele.
Em seguida, os doutores nos trazem de volta à alma humana e nos ensinam a achar nela uma pequena imagem da processão do Espírito Santo. Porque a alma, além de conhecer, ama. Ora, ela ama aquilo que ela conhece; a partir do conhecimento chegamos ao amor. Pelo conhecimento, damos nascimento espiritual em nós ao objeto conhecido; em seguida nos viramos, procuramos, pelo amor, esse objeto conhecido.
Assim, Deus se conhece a si mesmo e se conhecendo Ele se ama. O primeiro ato gera o Filho, o segundo dá origem ao Espírito Santo. O amor supõe o conhecimento, e por isso a processão do Espírito Santo supõe a geração do Verbo, e é ainda por isso que o Espírito Santo procede do Pai pelo Filho, o que exprime o Credo quando diz que ele procede do Pai e do Filho.
Podemos representar de modo humano a processão do Espírito Santo assim:
O Pai se contempla no seu Filho, o Filho se contempla no seu Pai. O Pai se inclina para seu Filho por amor, o Filho, por amor, se inclina para seu Pai. Esse amor é único, visto que eles têm a mesma natureza e que o Filho recebe este amor e todo seu ser do Pai. Este amor é um abraço inefável no qual eles se amam tanto quanto merecem ser amados. Ora, eles o merecem infinitamente, e por isso esse abraço é uma pessoa igual às duas outras e possuindo a mesma natureza, é o Espírito Santo.
O Espírito Santo procede assim do Pai e do Filho, ele é o laço de amor que os une, ele é o Coração, o Espírito, e ele encerra com brilho a série de processões divinas. Ó Bemaventurada Trindade!
VIII
A Imutabilidade das Pessoas Divina
Acabamos de descrever, como pudemos, as processões divinas, ou seja, os atos com os quais o Filho é engendrado pelo Pai e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Tentaremos agora explicar como esses atos são eternos. O que isto quer dizer?
Isto quer dizer que não devemos considerar a geração do Filho e a processão do Espírito Santo como atos passados, mas como atos presentes, que não passam nem jamais passarão. Não podemos dizer, com todo rigor, que o Pai gerou o Filho. Ele o gera agora, hoje, e este hoje permanece sempre, ele não tem nem véspera nem dia seguinte, é o que chamamos de eternidade. A eternidade está toda em um instante, mas num instante que não passa; e é nesse instante imóvel que se produzem as processões divinas.
Assim, o Pai engendra eternamente seu Filho; o Pai e o Filho produzem eternamente o Espírito Santo. Isso não quer dizer que as processões divinas estão sendo realizadas como algo ainda não terminado, incompleto, mas no sentido que, sendo já perfeitas e terminadas, elas se realizam sempre, por atos que não têm fim.
Imaginemos um homem que, eternamente, se olhasse num espelho. Sua imagem estaria sempre nele, nunca deixaria de se reproduzir ali. Assim o Pai não cessa de engendrar seu Filho, e o Espírito Santo não cessa de proceder dos dois. No céu, nossa beatitude consistirá justamente em contemplar para sempre estes atos divinos, que são a vida de Deus nele mesmo, vida imutável e inalterável, que pode ser chamada de eterno movimento no eterno repouso.
IX
A Igualdade das Pessoas Divinas
As três pessoas divinas são absolutamente iguais entre si. Elas têm a mesma natureza e a possuem completamente. Aliás, essa natureza não comporta nem diminuição, nem alteração, nem divisão: onde ela estiver, ela só pode estar inteira. Por isso reina inteira igualdade entre as três Pessoas divinas.
Logo, elas têm a mesma imensidade, a mesma infinidade, a mesma eternidade, o mesmo poder, a mesma sabedoria, a mesma bondade.
As relações que constituem as Pessoas divinas são eternas. Nunca houve o Pai sem o Filho; nunca houve o Pai e o Filho sem o Espírito Santo, como o fogo não existe nunca sem luz e calor. Logo o Filho não é posterior ao Pai e o Espírito Santo não é posterior ao Pai e ao Filho.
Também não há nenhuma inferioridade do Filho em relação ao Pai, nem do Espírito Santo em relação ao Pai e ao Filho. O Pai, gerando o Filho, lhe dá toda sua natureza, e ele não poderia lhe dar menos, pois todo filho tem sempre a mesma natureza de seu pai. Assim os dois dão ao Espírito Santo a natureza divina: na sua plenitude o Espírito de Deus, que procede de Deus e que subsiste em Deus, não pode ser outra coisa que o próprio Deus. Dos dois lados a comunicação é absoluta e sem reservas. As infinitas perfeições divinas são comuns às três pessoas. Passando de uma à outra não podemos, sem alterar a fé católica, admitir a menor diminuição.
É bem verdade que o Filho reconhece no Pai o seu Princípio; o Espírito Santo também reconhece como seu Princípio o Pai e o Filho. Mas este reconhecimento não põe estas duas Pessoas num estado de inferioridade. Ele não faz com que o Filho, como Deus, deva submissão ao Pai, pois toda submissão supõe inferioridade de natureza ou, ao menos, uma inferioridade assumida na natureza. Mas isso não existe entre o Filho e o Pai. Mesmo entre os homens, o filho só deve submissão ao pai durante sua infância; uma vez maior de idade, ele governa sua própria vida. Assim, o Filho de Deus é igual a seu Pai. Reconhecendo-o como seu Princípio, ele o louva e o bendiz numa inefável alegria. O Pai, por seu lado, louva e abençoa seu Filho com infinita complacência. O Espírito Santo completa o concerto unindo os outros dois num laço indissolúvel. A Santíssima Trindade se glorifica, assim, num júbilo sem fim. Mas não poderíamos dizer que haja alguma inferioridade, dependência ou submissão que resultaria das relações de origem. Em Deus tudo é infinito, em Deus tudo é Deus.
X
Os Atributos das Pessoas Divinas
Sendo absolutamente iguais em todas as coisas, as Pessoas divinas possuem igualmente todos os atributos que convém à natureza divina: imensidade, imutabilidade, eternidade, poder, sabedoria, bondade.
Contudo, alguns atributos podem ser relacionados mais a uma do que às outras das Pessoas divinas.
O Pai, sendo o princípio das outras Pessoas e como a fonte de onde elas derivam tem por atributo o poder. Dizemos dele que é o Pai Todo poderoso. O poder convém à Paternidade.
O Filho, gerado pelo Pai como uma imagem onde se reproduz toda a essência divina, como uma luz esplêndida brotando da inteligência incriada, tem por atributo a Sabedoria. Ele é muitas vezes chamado de Sabedoria eterna. A Sabedoria é o mais belo fruto da inteligência.
O Espírito Santo, procedendo do Pai e do Filho como um suspiro de seu mútuo amor, como um elan do coração de Deus, tem por atributo a bondade e o amor.
Assim, de certo modo, distribui-se entre as Pessoas divinas os atributos de Deus, apesar de que, na realidade, eles pertençam integralmente a cada uma das três Pessoas.
XI
Cada Pessoa Existe nas Outras
No Evangelho de São João, Nosso Senhor repreende a seus Apóstolos: "Não credes que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?" (Jo.XIV,10).
Não podemos medir toda a profundidade destas palavras, mas sabemos que ela se realiza em Nosso Senhor tanto como homem quanto como Deus. É neste último sentido que a analisaremos agora.
Em primeiro lugar, o Filho habita no Pai. São João o chama "o Filho unigênito que está no seio do Pai" (Jo.I,18). Ele está no Pai porque sua natureza é idêntica à natureza do Pai; Ele está no Pai como em seu Princípio, onde ele nasce eternamente, de quem ele é o luminoso resplendor; ele está no Pai, enfim, como naquele com quem se relaciona e onde, poderíamos dizer, vem de novo mergulhar.
Por outro lado, o Pai habita no Filho; ele está no Filho pela comunhão de natureza, mas também como em sua própria imagem, como no objeto de sua complacência eterna, como naquele em quem ele manifesta, sem alteração nem diminuição, suas infinitas perfeições: "Speculum sine macula majestatis illius" (Sab.VII,26).
Existe, assim, uma recíproca habitação do Filho no Pai e do Pai no Filho, não somente por causa da natureza comum, mas ainda por causa das relações que os unem.
Igualmente, o Espírito Santo está no Pai e no Filho, pela natureza comum e como no seu Princípio; como no coração de onde ele procede sob forma de amor. Reciprocamente, o Pai e o Filho estão no Espírito Santo como no laço que os une, como num mútuo abraço.
Dessa habitação recíproca das Pessoas divinas resulta que elas são absolutamente inseparáveis e que onde uma estiver as outras aí estarão, como os elos de uma corrente carregam uns aos outros. Nosso Senhor lembra frequentemente esta verdade em São João: "Meu Pai está comigo e não me deixou só..., meu Pai não age separado de mim" (Jo.VIII,29).
XII
As Missões Divinas
No entanto, Nosso Senhor repete no mesmo Evangelho esta outra palavra: "Meu Pai me enviou" (Jo.XIV,24). E ele diz também do Espírito Santo: "O Espírito que eu vos enviarei... que meu Pai vos enviará em meu nome". Haveria aí contradição? É claro que não, mas é preciso entender bem o que quer dizer este envio, esta missão.
As Pessoas divinas são enviadas. O Filho é enviado pelo Pai; o Espírito Santo é enviado pelo Pai e pelo Filho. Mas o Pai não envia seu Filho como um senhor envia seu servidor, visto que não há nenhuma inferioridade entre o Filho e o Pai. Se Nosso Senhor Jesus Cristo é chamado pelos profetas de "servidor de Deus", é como homem que recebe este título. Também não devemos imaginar que o Filho, ao ser enviado, se separa de seu Pai, pois o Pai e o Filho são absolutamente inseparáveis, como habitando reciprocamente um no outro. Eis como se deve entender o envio de uma Pessoa divina.
Ao dizer que o Filho foi enviado pelo Pai, queremos significar que ele, residindo eterno e invisível no seio do Pai, começou, num dado momento, a ser visível no mundo, como homem. Parece, então, que ele saiu do seio do Pai, segundo esta palavra que ele disse: "Eu saí do Pai e vim ao mundo" (Jo.XVI,28). Mas na realidade ele não deixou seu Pai: permanecendo Nele, ele apareceu aos homens.
Também o Espírito Santo foi enviado pelo Pai e pelo Filho quando passou a ter uma presença sensível, no mundo, no dia de Pentecostes. A partir desse dia, Ele, que é o laço do Pai e do Filho, começou na terra a ser o laço da Igreja, a união das almas a Jesus Cristo.
Resumindo: o envio, a missão do Filho é como uma extensão de sua geração eterna por uma geração temporal; a missão do Espírito Santo é uma efusão que se produziu para trazer os homens para dentro do concerto da Trindade adorável.
Deus Pai também se dá, se comunica aos homens, ao mesmo tempo que Ele lhes dá seu Filho e seu Espírito. Mas não podemos dizer que ele seja enviado porque ele não procede de nenhuma outra pessoa; a idéia de missão, de envio, supõe a idéia de Processão divina junto a uma manifestação temporal.
XIII
As Operações Divinas
Quando falamos de operações divinas não designamos os atos internos de Deus nele mesmo, que dão origem à geração do Verbo e à processão do Espírito Santo. Designamos por operações os atos externos de Deus que têm por objeto as criaturas.
Os atos internos fundamentam a distinção de Pessoas.
As operações externas (ad extra) são obra indivisível das três Pessoas.
As três Pessoas divinas têm a mesma natureza; logo elas têm a mesma inteligência e vontade única. Como consequência, toda operação exterior é comum entre elas, como vindo de um princípio comum. Nosso Senhor diz em São João: "O Pai, que está em mim, este é que faz as minhas obras" (Jo.XIV,10). De fato, quando Jesus Cristo age como Deus, ele age por sua natureza divina, por sua inteligência divina, por sua vontade divina, tudo o que lhe é comum com o Pai e o Espírito Santo. Segue daí que essas duas Pessoas agem unidas com ele. Aliás, em Deus, natureza, inteligência, vontade, são uma única e mesma coisa inefavelmente simples, princípio de tudo o que existe.
No princípio Deus criou o céu e a terra. Esta criação é obra inseparável de toda a Santíssima Trindade. Na plenitude do tempo, Deus realizou a obra da Redenção do mundo pela Encarnação e morte de seu Filho único. Ora, tudo o que fez Nosso Senhor, como Deus, nessa grande obra, foi realizado por toda a Santíssima Trindade. E Deus também não cessa de santificar as almas; esta obra de santificação é tão grande que toda a Santíssima Trindade a realiza, como diz Nosso Senhor: "Se alguém me ama...nós viremos a ele e faremos nele nossa morada" (Jo.XIV,23).
Esta é a doutrina católica sobre as operações externas de Deus.
Mas, como atribuímos a cada Pessoa uma qualidade determinada: poder, sabedoria, bondade, mesmo sabendo que estes atributos são comuns a todas as três, assim atribui-se a cada uma certas operações exteriores, mesmo sendo sempre obra de toda a Santíssima Trindade.
Quando o Credo diz: Creio em Deus Pai Todo poderoso, criador do céu e da terra, relaciona especialmente com o Pai a obra da criação. O que mais se manifesta na criação é o poder que tira algo do nada. Mas as outras pessoas não estão excluídas dessa obra. Assim como um trabalhador não executa uma obra sem conceber primeiro uma planta e sem ter a intenção de fazer a coisa direito, também o Pai, para criar o mundo, usou a sabedoria do Filho e a bondade do Espírito Santo (Sto Agostinho).
A Redenção é especialmente obra do Filho. O que brilha nela não é tanto o poder mas a sabedoria, esta sabedoria que soube conciliar tão admiravelmente a justiça e a misericórdia, buscando a imolação do inocente para a salvação do culpado, e mais, acalmando a Deus pelo sacrifício de Deus (Sto Agostinho, São Leão). Assim o Filho chama a si esta obra e se encarnou para realizá-la. O Pai trabalhou nela como autor da Encarnação; o Espírito Santo como autor dessa união maravilhosa de duas naturezas infinitamente distantes.
Enfim, a obra da santificação das almas é, com muito acerto, atribuída ao Espírito Santo. É um Espírito de amor, é o Amor, que santifica as almas. No céu, nesse céu dos céus que é a habitação da Santíssima Trindade, o Espírito Santo une o Pai e o Filho num laço indissolúvel; na terra, ou melhor, nesse céu que é a Igreja, ele une as almas em Jesus Cristo, para que Jesus Cristo as reúna a Deus. Foi para essa obra que Ele foi enviado sobre a Igreja nascente no dia de Pentecostes.
Esta doutrina nos mostra que é justo e legítimo atribuir certas operações a certas Pessoas. Quando a Sagrada Escritura nos diz que tal Pessoa fez tal obra, não é uma simples maneira de falar. É verdade que esta Pessoa teve uma ação especial e que as outras Pessoas só participaram da obra por concomitância, ou seja, em virtude do laço que as torna inseparáveis. A Sagrada Eucaristia nos apresenta um fenômeno análogo: é bem verdade que o corpo de Jesus está sob a espécie do pão de um modo muito especial; o Sangue de Nosso Senhor está presente na hóstia consagrada por concomitância, ou seja, por ser inseparável do corpo no estado atual de Ressurreição de Nosso Salvador.
XIV
O Vestígio da Santíssima Trindade
O artista que trabalha deixa uma marca própria na sua obra. Antes de mais nada a obra exige um artista. Em seguida, examinada com mais cuidado, ela revela a mão, a arte, a intenção daquele que a fez. Podemos até calcular sua técnica. Além disso, muitas vezes o artista ajuda o reconhecimento assinando sua obra.
Assim fez Deus com suas criaturas. Primeiro as criaturas, como diz Sto Agostinho, gritam bem alto que elas não se fizeram a si mesmas, mas que Deus as fez: "Ipse fecit nos et non ipsi nos". Além disso, reconhecemos, tanto na menor quanto na mais perfeita, uma mão poderosa, uma arte divina, uma intenção boníssima. Essa tripla marca nos revela não somente Deus, mas um Deus Trino que opera inseparável em todas as suas obras.
Permitam-me mais uma curiosa comparação: nas operações exteriores de Deus, as três Pessoas agem de uma ação única e indivisível; esta ação é semelhante ao raio de luz que, perfeitamente simples, contém as sete cores do arco-íris. Basta analisar o feixe de luz num prisma para achar as cores. Na simplicidade da ação divina reconhecemos a influência combinada das três Pessoas.
Esta mão poderosa que produziu e reuniu os elementos que compõem a menor das criaturas é a ação criadora do Pai; esta arte divina que organizou e como que classificou numa escala os seres, nos faz admirar a Sabedoria do Filho; enfim a finalidade própria de cada ser que se harmoniza perfeitamente com o restante do universo, é como uma marca da bondade do Espírito Santo.
Santo Agostinho, e em seguida São Tomás, explicam assim esta palavra do Livro da Sabedoria: "Todas as coisas dispusestes com medida, número e peso" (Sab.XI,21). A medida, que exprime a proporção dos elementos entrando na composição de cada ser, corresponde à obra do Pai. O número, que exprime a distinção específica e individual estabelecida entre os seres, responde pela obra do Filho. O peso, que significa a coesão mútua e a ordem que liga todas as criaturas juntas, marca a obra do Espírito Santo. E é assim, nos dizem estes grandes pensadores, que reluz algo da Santíssima Trindade até na mais ínfima das criaturas.
Haveria alguma que não possua, além de seu ser, beleza e bondade? Pelo ser ela nos revela o Pai; pela beleza ela nos revela o Filho; pela bondade, o Espírito Santo. Ser, beleza, bondade, três coisas que são na realidade uma só, eis o que chamamos vestígio da Trindade impresso até mesmo na criatura inanimada, como o pé do homem fica marcado na areia onde passou.
Esta doutrina joga uma luz belíssima na criação. Ela nos leva a penetrar no íntimo das coisas, onde nos maravilhamos de encontrar, não somente Deus, mas ainda, de certo modo, as três Pessoas divinas. Um pagão não pode ter essa visão profunda. Para reconhecer a pegada de um homem na areia ou a de um leão na terra, é preciso saber o que é um homem e o que é um leão. Assim, para discernir nas criaturas o vestígio da Santíssima Trindade, é preciso saber o que é a Santíssima Trindade. Os pagãos ignoram esse mistério, mas nós, católicos, o conhecemos pela fé.
E é justamente a fé que ilumina nossos olhos para que reconheçamos em tudo o vestígio indelével das três Pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo. E o encontrando, o adoramos e humildemente o beijamos. Confessamos que o ser das criaturas é quase nada perto do Ser divino que toma sua origem no Pai; que toda a beleza das criaturas não passa de trevas se comparada ao esplendor do Verbo Eterno; que desaparece toda bondade criada, na presença do Amor substancial que é o Espírito Santo. E proclamamos, enfim, que o ser, a beleza e a bondade de todas as criaturas exprimem e adoram a Santíssima e perfeitíssima Trindade.
XV
A Imagem da Santíssima Trindade
Enquanto apenas um obscuro vestígio da Santíssima Trindade é impresso nas criaturas materiais, foi reservado às criaturas espirituais, ou seja, os anjos e os homens, trazer a imagem desta Trindade adorável. Desta imagem vem sua dignidade.
Assinalemos em primeiro lugar, com Santo Agostinho, que as Sagradas Escrituras não dizem que o homem é a imagem de Deus. Está escrito apenas que ele foi feito à imagem de Deus. Ser a própria imagem cabe ao Filho em relação a seu Pai. Ser feito à imagem pode ser dito das criaturas, que não alcançam a igualdade com o Criador, mas que se aproximam apenas por uma tênue semelhança.
Como o homem é feito à imagem de Deus? Não por seu corpo, mas por sua alma; por sua alma que é espírito, ou seja, um ser livre da matéria. Sendo independente da matéria, a alma é inteligente, possui esta sublime faculdade de conhecer, que traz para dentro de nós o reflexo de todo o universo visível e que nos torna capaz de formular um juizo sobre todas as coisas. Além disso a alma ama. O que ela conhece pela inteligência, ela abraça pela vontade; e se ela se abre ao conhecimento de tudo, ela também se dilata para tudo amar. Eis o que a torna imagem de Deus. Como espiritual, a alma é imagem do Pai; como inteligente, imagem do Filho; como amante ela é imagem do Espírito Santo. Ser, beleza, bondade formam o vestígio da Santíssima Trindade; espírito, inteligência e amor formam sua imagem.
Essas três propriedades de uma mesma alma não quebram sua unidade; ao contrário, elas a unem ainda mais. Elas se originam uma da outra na mesma ordem que as Pessoas divinas procedem uma da outra. A alma é inteligente porque ela é espiritual, ou seja, elevada acima da matéria. Os seres que são apenas materiais não têm esse olhar de inteligência que abrange o conjunto das coisas e estabelece seus relacionamentos. E a alma ama porque é inteligente; só amamos aquilo que conhecemos: "A medida do conhecimento, diz São Gregório, é a medida do amor".
Se a alma é à imagem de Deus por essas duas faculdades de conhecer e de amar, enraizadas no seu ser espiritual, ela o será ainda mais pelos atos de conhecimento e de amor que daí derivam. O que é exatamente conhecer? É formar em si a imagem imaterial de uma coisa. É, de certo modo, lhe dar novo nascimento dentro de si para a contemplar. E não há neste ato uma analogia com a geração do Verbo que é produzido da substância do Pai e que é a perfeita imagem de suas perfeições infinitas? O amor é um movimento do coração para o objeto amado, um laço espiritual que nos une a ele: não podemos assim compreender um pouco a processão inefável do Espírito Santo, o qual, se lançando, por assim dizer, entre o Pai e o Filho, os une um ao outro num laço indissolúvel?
Assinalemos ainda, que esses atos de conhecimento e de amor produzidos pela alma, ficam dentro dela e são inseparáveis da alma, assim como os atos divinos da geração do Verbo e da processão do Espírito Santo, brotando de Deus, ficam em Deus e não são outra coisa senão Deus. O que torna ainda mais clara e admirável a analogia com a alma.
Apesar disso, não exageremos na comparação, pois, em muitos pontos ela torna-se imperfeita. Na alma, conhecimento e amor são fenômenos passageiros e variáveis, como imagens de movimento que se refletem num lago espelhado, como um vento que vem tremer o reflexo. As representações dos diversos objetos se sucedem na nossa inteligência e se expulsam uns aos outros; as afeições variam sem cessar no nosso coração, sem que possamos interferir, em muitos casos. Em Deus, ao contrário, um único Verbo compreende tudo, é consubstancial ao Pai que, imutável em si, renova todas as coisas; um único Espírito de Amor que abraça tudo, que não varia nunca e que é o próprio Deus.
Devemos assim reconhecer que, mesmo parecendo se aproximar do Criador, existe entre Ele e a criatura um abismo. Seria como comparar um ser vivo à sua imagem desenhada ou à sua sombra inconsistente. No entanto, o simples fato de ser à imagem de Deus, dá ao homem uma realeza sobre todas as criaturas materiais. Ele pode conhecer e amar a Deus; ele recebeu por isso o encargo de louvar e adorá-Lo em nome de todas as criaturas inferiores. Estas foram feitas para o homem e o homem foi feito para Deus.
A fé nos faz conhecer a Santíssima Trindade e desse conhecimento descobrimos em nós sua imagem. Estudando esta imagem, imperfeita que ela seja, aprofundamos nosso conhecimento da adorável e Santíssima Trindade.
XVI
A Semelhança da Santíssima Trindade
Quando Deus criou o homem, disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gen.I,26). Esta palavra "façamos" indica uma ação especial das três Pessoas divinas. Elas fizeram o homem à sua imagem ao fazê-lo espírito, inteligência e amor. Elas o fizeram à sua semelhança porque, infundindo a graça em sua alma, elas trouxeram um certo ambiente de família, pois a graça é uma qualidade divina que, infundida no centro da alma, a torna participante da natureza divina, como diz São Pedro claramente (II Pe.I,4).
"Deus – diz o Apóstolo – habita uma luz inacessível que nenhum homem jamais viu, que nenhum homem pode ver". A criatura racional poderia tudo fazer dentro de seu mundo, ela não poderia nunca se elevar, por suas próprias forças, nesta região onde reside a adorável Trindade, assim como o homem não pode alcançar os limites da atmosfera terrestre para se lançar no espaço incomensurável do céu (*). Da inteligência humana ou angélica para a essência divina, há uma distância infinita e, por isso, intransponível. Ora, aquilo que nossa natureza, mesmo antes do pecado, não poderia atingir, a graça nos alcança num piscar de olhos. "Ela nos faz penetrar – escreve São Paulo – até o interior do véu" (Heb.VI,19). Ela põe a alma em presença de Deus e, mesmo se na obscuridade da fé, os une. Esta união produz na alma uma admirável transformação, sobre a qual pediremos ao Apóstolo algumas explicações.
"A alma unida a Deus é um mesmo espírito com Deus" (ICor.VI,17). Antes ela era um espírito terrestre, agora é um espírito celeste. E sendo celeste, é à semelhança do Pai, de quem, antes, ela trazia somente a imagem.
Ela passa a ser admitida nos segredos de Deus pelo dom da fé que, posto na inteligência, a prepara para a clara visão da essência divina. Assim ela toma a semelhança do Filho, que é o espelho no qual se exprimem e se reproduzem substancialmente todas as inefáveis perfeições do Pai. Ela passa a ser unida ao princípio de toda a verdade. Escapando à incerteza das opiniões humanas, ela começa, mesmo que obscuramente, a ver todas as coisas na luz de Deus que não engana.
Enfim ela é elevada ao lado de Deus pelo dom da esperança, unida a Ele e vivificada pelo dom da caridade. Neste último, tornada toda amor, recebe a semelhança com o Espírito Santo que é o Amor substancial do Pai e do Filho. Unida ao princípio de todo bem e, por isso, tirada da inconstância do coração humano, ela acostuma-se a só amar nas criaturas os reflexos da bondade divina que aí reluzem.
Quando a alma, neste estado, faz um ato de fé, fica iluminada pela luz do Verbo eterno; quando faz um ato de amor, é como se o fogo do Espírito Santo a transfigurasse em Deus que, diz São João, é amor.
Uma santa a quem Deus mostrou em espírito uma alma em estado de graça mas ainda com muitas imperfeições, ficou tão impressionada pelo espetáculo que pensou que morreria pela força da atração que sentiu por uma beleza tão incompreensível. Podemos considerar o vestígio da Trindade nas criaturas, sem se elevar à menor noção da Santíssima Trindade. Podemos contemplar sua imagem na alma humana, sem entender nada do mistério das três Pessoas divinas. Mas não poderíamos ver uma alma em estado de graça sem penetrar imediatamente neste mistério inefável. Porque as três Pessoas habitam nesta alma, operam nela e, apesar de estarem veladas durante a vida presente, manifestam-se distintamente.
XVII
A Semelhança Consumada no Céu
O estado de semelhança da alma com Deus começa aqui na terra e é consumado na vida eterna. Nós seremos semelhantes a Deus (Jo.III,2) quando o vermos como Ele é. Logo, a semelhança na vida presente não é perfeita, absoluta.
Porque nos espantar? Aqui caminhamos pela fé, diz São Paulo, nosso estado é a fé, é de crer naquilo que não vemos ainda mas veremos um dia. Por isso, tudo em nós, inclusive a semelhança divina, é relativo ao estado de fé, e em conseqüência esta semelhança fica como que coberta por um véu.
Procuremos chegar a uma compreensão tão clara quanto possível desse mistério.
Deus habita em todas as criaturas lhes dando o ser; ele habita mais especialmente nas criaturas racionais lhes dando a luz da inteligência e a vida do coração. Porém, de um modo todo especial, Ele habita na alma em estado de graça, associando-a, como diz São Pedro, à sua própria divindade. (IIPe.I,4)
Não se pode imaginar uma habitação mais íntima que esta última. Deus se põe no centro da alma e as três Pessoas se comunicam a ela com uma familiaridade prodigiosa. É a realização da palavra de Nosso Senhor: "Se alguém me ama, guardará minha palavra...e nós viremos a ele e faremos nele morada" (Jo.XIV,23).
A união com a alma não poderia ser mais íntima, pois é realizada pelo próprio Espírito Santo. As três Pessoas divinas se comunicam à alma na obscuridade da fé e sem se manifestar a ela. Sim, nesta vida, o mistério da presença divina, da comunicação com a alma, se faz como numa nuvem, ao mesmo tempo luminosa e sombria.
Na vida eterna, a obscuridade terá desaparecido, a nuvem terá se dissipado, o véu retirado. As três Pessoas da Santíssima Trindade se manifestarão à alma de dentro dela. Elas se manifestarão fazendo brotar, do seio da divindade, uma luz especial que se chama luz de glória. Então a alma verá em si mesma o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que estavam já presentes, mas invisíveis.
A semelhança com a adorável Trindade será então consumada. Sua inteligência será divinizada pela visão clara de Deus: ela a verá face a face (ICor.XIII,12), como o olho penetrado pela luz do dia. Que coisa maravilhosa! vendo a Deus ela verá todas as coisas em Deus, como num espelho. Ao mesmo tempo ela verá Deus em todas as coisas, dando a todas o ser, a vida e o movimento. A alma amará não somente todas as coisas em Deus, mas também Deus em todas as coisas (ICor.XV,28), de modo que todo seu amor terminará sempre em Deus. Assim a união de amor que a unia a essa fonte de vida se tornará definitivamente indissolúvel.
Por sua inteligência e por sua vontade, a alma bemaventurada viverá da própria vida da Santíssima Trindade. O espelho de sua inteligência será o Verbo, o espírito de seu coração será o Espírito Santo. Ela viverá dessa vida divina que, sendo perfeitamente simples, contém e sustenta a criação toda. Ela ficará presa em Deus, como uma gotinha num oceano de luz: Deus a penetrará de todos os lados, se refletirá nela, a transformará nele próprio de modo inefável, sobre o qual é preferível calar do que tentar dizer algo. Assim São Paulo, que viu esta transformação no terceiro céu, se contenta em dizer que ela é absolutamente inefável e inconcebível (IICor.XII,4).
Esta vida inefável e inconcebível está em germe na alma de todo cristão batizado: a glória é apenas a floração completa desta semente divina que é a graça de Deus. Semen Dei (I Jo.III,9)
Conclusão
Elevação da Alma à Santíssima Trindade
Ó Trindade Santa, que habitais numa luz inacessível, vos louvamos, vos bendizemos, vos adoramos, vos glorificamos, vos damos graças por vossa glória, por esta felicidade suprema que recebemos de Vós.
Vos adoramos, ó Pai, que não tendes princípio mas que sois a fonte viva da divindade, o Princípio do Filho e do Espírito Santo.
Vos adoramos, ó Filho, que sois o Verbo do Pai, o esplendor da eterna Luz, a imagem consubstancial dAquele que vos engendra, o Princípio, com Ele, do Espírito de Amor.
Vos adoramos, ó Espírito Santo, que sois o Amor consubstancial do Pai e do Filho, inefável união dos dois, abraço que se dão mutuamente um ao outro.
Toda a criação, ó Santíssima Trindade, que está diante de vós como se não estivesse, vibra em vossa presença e eleva até vós um cântico sem fim.
Ela vos louva, vos bendiz e vos exalta no templo de vossa glória que são as criaturas bemaventuradas, às quais vos manifestastes já sem véu.
Ela vos louva, vos bendiz e vos exalta no trono santo de vosso império, que são as criaturas onde habitais e reinais por vossa graça.
Ela vos louva, vos bendiz e vos exalta no cetro de vossa divindade que se estende mesmo às criaturas inanimadas e até ao fundo dos infernos.
Sim, sede bendita e glorificada por todas as criaturas, ó Trindade adorável, que imprimis vosso vestígio nos seres inferiores desse mundo, que marcais à vossa imagem as almas e os anjos, que comunicais vossa semelhança aos filhos da Santa Igreja de Jesus, e que consumais esta semelhança atraindo-os para o céu dos céus onde residis para todo sempre!
Fora de vós, ó Trindade Santa, iluminadora e vivificadora, não há senão o nada, trevas, confusão, morte e pecado.
Por puro amor nos tirastes do nada; por um amor maior, mais misterioso, nos resgatastes da morte do pecado. Não somos mais que um composto de vossas bondades, só somos algo pelo olhar de eterno amor com o qual nos amastes gratuitamente em Jesus. Vos conjuramos, salvai-nos para honra do vosso nome. Manifestai-vos às nossas pobres almas, tal como sois, ó Trindade Santa, para que possamos, por toda a eternidade, bendizer e glorificar, tanto a imensa majestade do Pai, quanto a Sabedoria do Filho e a Bondade do Espírito Santo. Amém.
Nota: Na festa da Santíssima Trindade, domingo seguinte ao domingo de Pentecostes, a Igreja ordena que seus clérigos e religiosos rezem o Símbolo de Santo Atanásio, no ofício de Prima. Este símbolo da fé, do século V, recebe o nome de Símbolo de Santo Atanásio por ter tido sua autoria atribuída, durante séculos, ao grande defensor da fé contra o arianismo; na verdade seu autor é desconhecido, mas isso não tira seu valor de definição de fé. Recomendamos a todos que o rezem, como devoção à Santíssima Trindade.