Eis aqui que no meio da vida nos assaltou a morte.
Que auxilio procurar, senão a Vós, Senhor, que por nossos pecados com razão vos irritais?
Deus Santo, Deus forte, Salvador misericordioso, não nos entregueis à morte amarga.
Em Vós nossos pais esperaram; esperaram e livraste-los.
A Vós clamaram nossos pais; clamaram e não foram confundidos 1.
Introdução
A preparação litúrgica para a festa da Páscoa se divide em muitas partes. Inicia-se com o tempo da Septuagésima (preparação remota que compreende três domingos) e se prolonga com o tempo da Quaresma propriamente dito (que compreende quatro domingos). Com a aproximação da festa principal do ano litúrgico nos deparamos com o tempo da Paixão (preparação imediata com dois domingos: 1º Domingo da Paixão e Domingo de Ramos). No fim desta última semana - Semana Maior- estão os dias mais importantes do ano: Quinta Feira Santa (Instituição da Eucaristia), Sexta feira Santa (Morte de N. Senhor), Sábado Santo (Vigília Solene) e o Domingo da Ressurreição.
Uma análise de todos os textos litúrgicos seria de grande interesse, porém, nos parece importante, antes de entrar em tal análise, fazer o leitor encontrar os pontos de unificação de todos esses elementos. A prática das penitências quaresmais é certamente um dos principais. Queremos no presente artigo atrair a atenção sobre este ponto tão crucial. (Continue a leitura)
Ia Parte – Não só de pão
A penitência tem como fim remover os obstáculos que dificultam nossa aproximação a Deus. Sua importância então não está nos atos penosos em si, mas sim no fim último ao qual está ordenada, o que quer dizer que tem a mesma medida da caridade. Vou tentar esclarecer um pouco mais: todo caminho sai de um lugar e conduz a outro. Aproximar- se do fim é necessariamente afastar-se do ponto de partida. Aproximar-se de Deus significa, por razão do movimento, afastar-se de si mesmo. A penitência é o aspecto negativo da união com Deus. Certamente o que importa é o Amor de Deus, mas a penitência é sua sombra. Ambos crescem na mesma medida, como de mãos juntas.
São Tomás associa essas duas noções muito claramente. É evidente, pois que o coração humano se inclina a alguma coisa mais intensamente quanto mais se afasta de muitas coisas; assim pois, a alma humana é levada a amar a Deus mais perfeitamente quanto mais se afasta dos bens temporais2.
O Missal de Dom Gaspar Lefebvre indica três ferramentas principais de mortificação que a Igreja utiliza para ambientar seus filhos no espírito da Quaresma, o jejum e a abstinência, a esmola e a oração. Entremos com N. Senhor no deserto e consideremos brevemente esses três “instrumentos das boas obras” como as chamaria São Bento.
Ao considerar o jejum e a abstinência, primeiro e mais evidente dos três elementos citados, ficamos um pouco surpreendidos, nós espíritos modernos, com a ênfase que a Igreja lhe dá. Uma breve leitura do comentário de Dom Guéranger sobre a Quaresma 3 é suficiente para perceber o mínimo detalhe com que se regulava, em todas as partes, o jejum e a abstinência quaresmal.
Hoje só ficou uma referência, uma lembrança, uma alusão do que foi outrora o solene jejum quaresmal. Jejum de toda a Cristandade. Toda uma civilização que se abstinha da inclinação mais básica e necessária do homem para aferrar-se ao desejo do céu! Um exercício de temperança, sem nenhuma dúvida, pois é a mortificação dos sentidos, mas que não menos um ato público e social de esperança. Muitas vezes escutamos o conselho de ter cuidado com o jejum, pois sua prática pode levar à imprudência e ao orgulho sendo comum que nos achemos “alguma coisa” por deixar de comer a sobremesa. O perigo é real, mas... não é menos real o perigo oposto de que o homem veja seu coração, dominado pelo visco de sua sensualidade mal contida, atirar-se ao afeto das criaturas.
O segundo elemento é a prática da esmola como exercício de penitencia. O que é o dinheiro? É um signo convencional. Significa primeiramente o valor material comparativo das coisas. Mas pode-se também dizer que atrás do dinheiro está o fruto de nosso trabalho e suor. Em certo modo é uma medida do esforço e do mérito. É também o meio de manter nosso alento e o calor de nossa vida. Pois bem, é com o sangue de nossas veias que a Igreja propõe que alimentemos o pobre indigente. Dar esmola dói, e assim deve ser. É um ato de caridade se consideramos o próximo e uma mortificação da ambição e cobiça se consideramos nós mesmos. Os médicos antigos sangravam habitualmente os doentes para salvar-lhes a vida. A excessiva força da pressão sanguínea os levava à beira da morte. Algo parecido é proposto pela Igreja. Como a salvação de nossas almas - diz S. Leão Magno - não é conquistada apenas pelo jejum, terá de ser completada com a misericórdia com os pobres. Seja abundante em generosidade o que se subtraiu ao prazer: que a abstinência dos que jejuam se converta em alimento para os pobres.
Mas, sem nenhum lugar a dúvidas, o principal exercício quaresmal é a oração. Os dois anteriores se ordenam a este e encontram nele sua razão de ser. E de fato toda a Quaresma gira ao redor da Missa4, principal oração do cristão. Poderíamos objetar que a oração não é uma mortificação, e que não está bem colocá-la em pé de igualdade com as mortificações aflitivas como o jejum e a abstinência. Em parte a objeção tem razão, pois a oração tem mais de positivo que de negativo. O que é a oração? Um comércio íntimo de amizade com Aquele por Quem sabemos somos amados – como define Santa Tereza de Jesus. É dirigir o olhar ao alto, é o coração do homem que olha, admira, pede e espera. Podemos dizer que a oração termina num pedido. Quem pede é aquele que não tem, e se pede é por que se dispõe a esperá-lo de Deus. Não é pequena mortificação a espera, saber-se dependente de outro, ver-se definitivamente incapaz de tomar em mãos o próprio destino. A oração é o grande meio de pacificar nossa alma inquieta e rebelde, e de deixá-la ser movida por Deus.
Penso que não será tão rebuscado associar esses três elementos aos conselhos evangélicos dados por N. Senhor como meio de alcançar a perfeição. Conselhos que são adotados definitivamente pelos religiosos que, fazendo votos perpétuos de pobreza, obediência e castidade, transformam em preceito e mandamento o que até então era apenas um conselho. Mas durante a Quaresma a Igreja parece convidar não somente os religiosos, mas também a todos seus filhos a praticarem a pobreza pela esmola, a castidade pelo jejum e abstinência e a obediência pela docilidade da oração. Coisa parecida ao que era aconselhado por S. Bento a seus monges. A vida do monge deveria responder todo o tempo à observância quaresmal, mas como tal fortaleza é um adorno de poucos, convidamos ao menos nestes dias da Quaresma a guardar a própria vida em toda sua pureza, e apagar, todos juntos, nesses dias santos, todas as negligências de outros tempos. Isso se fará do modo conveniente se nos retratarmos de todos os vícios e nos entregamos à oração com lágrimas, à leitura e à compunção do coração e à abstinência.5
IIa Parte – Usque ad Mortem
A afirmação da necessidade da mortificação dita assim de modo tão categórico pode escandalizar a muitos. Fez-se tão comum, desde o Renascimento, a acusação de que a Igreja é algo doentio e que tem como motor principal de seu ensinamento moral a mórbida opressão do homem em tudo o que para ele é princípio de felicidade. E a objeção termina com um grito de guerra: “Chega dessa religião inumana, essa religião de morte e penitência!”
Antes de responder a objeção, devemos guardar-nos de dar a resposta daquele católico que, impressionado pela veemência do contrincante, acaba por afirmar que a coisa não é tão assim, que essa insistência no aspecto negativo é uma lamentável exageração de predicadores sem muito tato. Será preciso responder que certamente há uma doença na qual o homem perde o gosto pela vida e se entrega à angústia e tristeza, como quem, perdendo suas forças, se entrega ainda em vida a uma morte antecipada. Isso é uma doença muito comum em nossa era moderna, que tem como causa precisamente a renúncia aos ensinamentos da Igreja. Mas, por outro lado, para dar uma resposta ao inimigo da penitência, não se deve esconder sua grandeza, mas sim descobrir seu sentido. As palavras de nosso Salvador não deixam lugar a erros: “Quem quiser ser meu discípulo, que tome sua cruz e siga-me”.
As obras de mortificação da Quaresma querem ser o que seu próprio nome significa: mortem facere, um exercício de morte, se me permitem a expressão. A chave mais importante para a solução do problema está, portanto, no mistério mesmo da morte.
O homem, criado para imortalidade6, descobriu na morte a mais terrível conseqüência de seu pecado. Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte7. O maior dos horrores que o homem pode conhecer é o castigo imposto por Deus para servir de ensinamento, de fundamento analógico, para que pudesse vislumbrar o merecido pelo pecado: a morte eterna. No entanto - aqui tocamos um tema de suma importância – as coisas de Deus são sempre harmoniosas. E o que é fruto da desordem vem a ser também principio de ordem. O mesmo veneno da morte será o princípio de equilíbrio e antídoto contra o engano e a ilusão do homem. O homem facilmente fabrica para si um mundo que lhe convém, faz castelos nas nuvens e vive neles habitualmente. Esse engano é o princípio de toda maldade, de todo pecado. A visão da morte funciona, então, como um vento que desfaz as ilusões, derruba nossos mitos. É por isso que os Santos Padres falavam da morte como a raiz do hábito de não pecar. Uma religiosa beneditina dizia no fim de sua vida: “Há alguns dias estive perto de morrer, mas não consegui fazê-lo... Mas, bom, não é em vão que a morte me acomete: ela me fala, me bate no corpo e me arranca o gostinho de viver e a falsa noção que damos à importância da vida... Eu só penso na outra Vida; é um grande bem, pois a atividade humana põe um véu sobre essa realidade para a qual vivemos. Quando essa realidade se aproxima, e se impõe com um estranho poder, o centro de gravidade da vida é completamente abalado para alcançar sua situação autêntica e isso produz um golpe em todo o ser. Eis o trabalho ao qual me dedico neste instante...8”
IIIa Parte – Mortem autem Crucis
Não era necessário ser católico para dar-se conta de que “La muerte menos temida dá más vida”9, como prega o ditado castelhano. Para os grandes homens da antiguidade era evidente. Não significa outra coisa a famosa – e tão mal interpretada – oda de Horácio Carpe Diem, pois a partir da certeza da morte e da incerteza dos dias o poeta nos ensina a fugir da curiosidade vã e dedicar-se com gozo à vida cotidiana longe das paixões.
Mas a Igreja, com a subtração de elementos tão importantes e vitais nos propõe algo muito mais elevado. Não nos aproxima de uma morte qualquer. Não é a noção abstrata da fragilidade de nossa existência, ou nem mesmo a noção de nossa morte particular e concreta que é proposta como objetivo da mortificação. Isso já seria de um enorme proveito. Mas aqui nos unimos à Morte de Cristo. N. Senhor havia profetizado que se o grão de trigo não morresse seria deixado de lado, mas se morresse alcançaria a vida ao cento por um. De fato, o Pastor deu a vida por suas ovelhas, não se negou a deixar cair por terra a semente do Semeador, e não foi esquecido. A Morte de N. Senhor foi a morte mais fecunda.
É com razão que todas nossas mortificações quaresmais nos conduzem à Missa, renovação da Morte de Cristo, e se unem intimamente a ela. Unimos-nos a esse Vaso de alabastro que se quebra, mas que tem dentro o melhor dos perfumes, capaz de agradar ao Pai, e encher toda a Casa da Igreja.
Conclusão – De somno surgere
Diante do tremendo momento da morte, quando já nos faltem as forças e o tempo, diante do desmoronamento de nossa natureza e a pobreza de nossas virtudes onde procurar ajuda? A que patrono dirigir-se quando mesmo o justo se vê inseguro? Quando nos assalte a tristeza de que nossa obra fica incompleta devemos lembrar-nos de que a Obra, a única verdadeira, já está terminada: nos de que a Obra, a única verdadeira, já está terminada: Pai, realizei a Obra que me confiaste10, disse N. Senhor. E nós devemos unir-nos à Obra de N. Senhor, sua Morte11. A Quaresma é o tempo privilegiado, agora é o tempo favorável, em que nossas pequenas mortes de cada dia, nossas pequenas dores vão sendo assumidas pela Morte de N. Senhor e vão-se tornando fecundos, dando frutos de vida, e vida abundante. Até o momento que nossa união será completa, nossa doação definitiva, no momento de nosso último suspiro, e encontraremos nele, finalmente, a vida eterna.
(Revista Permanência 265)