O mundo moderno nos oferece, em todos os seus variadíssimos quadros, um espetáculo de assustador envelhecimento, como se a humanidade houvesse esgotado toda a alegria de viver e toda a esperança de progredir. Um ceticismo profundo, atacando as raízes das mais adiantadas e orgulhosas culturas, manifesta-se à superfície dos acontecimentos de um modo paradoxal que desnorteia os observadores e que os leva a ver, nessas mesmas manifestações profundas do abatimento e da descrença, sinais de vitalidade e ânimo.
Tomemos por exemplo o revolucionarismo que abrange as contestações juvenis, as rupturas vitais dos terroristas e as conspirações dos derrubadores de regimes. Todos eles rejeitam apaixonadamente o passado e desejam furiosamente o terreno aplainado, vazio, pronto para a estaca zero de uma nova criação, tentada agora pelo Homem em novas direções. O sinal mais evidente dessa paixão suicida, ou esse desejo do nada, se encontra na tumultuosa corrente socialista, engrossada pelos afluentes do democratismo. Ao contrário do que pensam os agitados e os tolos, essas correntes, ao invés de subirem segundo a lei moral que devia reger a História, descem segundo a lei física do desmoronamento. A sociedade sem classes é o modelo perfeito de um mundo morto. Sim, falam tanto da morte de Deus mas na verdade o espetáculo a que assistimos é o da morte do Mundo.
Mas o coração do homem, que só em Deus encontrará paz e alegria, na própria inquietação das experiências suicidas põe um ferimento que recebeu do alto: daí os aspectos paradoxais de que se reveste o fenômeno que desnorteia os agitados e os tolos. Palavras de surgimento, de nascimento, de começo, de esperança, são postas nos alto-falantes de uma civilização agonizante. Mas, por favor, não imagine o leitor que eu esteja fazendo como alguns que, para não parecerem radicais buscam sempre o lado positivo ou a mensagem das piores abominações que o mundo inventa. Não. O que quero dizer, quando me refiro aos paradoxos do revolucionarismo ou de outras formas de suicídio cultural, é que neles se vê o vestígio do que seria positivo, ou do que tem o vigor e o fulgor das coisas boas, negativados porém e postos aos serviço da morte do Mundo.
Somente alguém pode salvar o mundo: o Salvador do Mundo. Somente o cristianismo pode trazer à velhice de um mundo exausto o fermento de renovação: «Quem está em Cristo é uma nova criatura: as coisas antigas passaram, vede! Tudo é novo» (2 Cor. 17). Esse grito do Apóstolo se refere a uma renovação profunda e essencial que consiste em ter, já aqui e agora, a vida eterna começada. A coisa nova entrevista é mais um clarão do céu da nova criação do que um brilho de coisa terrestre. É essa mesma essencial descoberta do Novo Mundo que se vê no Apocalipse: «Depois eu vi um céu novo e uma terra nova, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido; e o mar deixou de existir. E eu vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, descer do céu, de perto de Deus, vestida como uma noiva preparada para seu esposo. E ouvi uma foz forte que dizia: “Eis o tabernáculo de Deus com os homens: Ele habitará com aqueles que serão o seu povo; e Ele mesmo será o Deus deles. E Deus enxugará cada lágrima e não haverá mais morte, nem luto, nem grito de dor, pois as primeiras coisas já terão passado. E aquele que está assentado no trono diz: Eis que renovo todas as coisas» (Apoc. XXI).
Se nos perguntarem o que é o cristianismo, numa só palavra, podemos responder: renovação. Se nos perguntarem que renovação é esta, tão profunda e essencial, podemos dizer: conversão, metanóia, mudança de vida, penitência, transfiguração. Ou, então, outra vez em uma só palavra: Páscoa. Ou, mais uma vez, em discurso mais claro podemos dizer que esta renovação consiste em mergulharmos na morte de Cristo para emergirmos em sua Ressurreição.
Mas além dessa dimensão vertical de eternidade, o Cristo traz ao mundo que o aceita, à História, à civilização, à estalagem que o recebe, uma renovação horizontal. Vimos imensas civilizações morrerem para que se espalhasse no mundo uma civilização cristã que durou pouco mais que um milênio, e que foi para a história uma espécie de Domingo de Ramos, com seus equívocos humanos, com sua divina beleza. Depois disto o homem se inebriou de egoísmo e recaiu no velho mundo. Para exaltar-se pretendeu construir o Paraíso Terrestre do qual, com as armas coruscantes da Tecnocracia, Deus será expulso.
Quando se anunciou o Concílio Vaticano II, todos nós pensamos que seria esta a porta de uma rajada de renovação e de vida que o mundo estava a pedir. «Une nouvelle chretiente demande à naitre» dizia Charles Journet, e nós repetimos. Sim, uma nova civilização menos egoísta, menos orgulhosa, só poderia nascer se a Igreja conseguisse dar ao mundo uma parte de sua riqueza espiritual. Todos nós, que sempre ensinamos o dever de progredir e que sempre esperamos um mundo mais divino, fomos forçados a reconhecer que até agora não se viu, em termos de história e de civilização, a tão esperada renovação. Ao contrário, o que vimos com estupor que até agora não se dissipou, foi o espetáculo de toda uma tentativa de secularizar a Igreja em lugar da esperada cristianização do século. E esse empreendimento sinistro foi realizado por gente da Igreja, por membros do Concílio. Torno a dizer: em vez de santificarem a vida temporal, querem horizontalizar a Igreja, copiar o mundo pelas rugas de sua incurável senectude e despedir um Deus tornado inútil e anacrônico.
Até quando, Senhor?
Pode-se dizer sem nenhum exagero e nem sombra de injustiça que a renovação do mundo e da Igreja até agora não se fez porque se desencadearam os furiosos progressistas que obstruíram os caminhos do verdadeiro progresso. Na ânsia de dobrar a Igreja às exigências de um mundo frenético e velhíssimo, os inovadores apresentam aos homens e aos anjos o espetáculo da mais cruel caricatura do cristianismo jamais vista. Os antigos, isto é, os renovados dos primeiros séculos propunham aos crentes os exemplos dos mártires; os renovadores chamados progressistas propõem aos crentes o exemplo dos revolucionários.
Realizemos nós a santa conspiração da Páscoa do Senhor já nos vestíbulos das nossas catacumbas.
O GLOBO Sábado, 1/4/78