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A suprema farsa do igualitarismo

    

Antônio Machado 

 

[Na última terça-feira (4/12/2018), um advogado foi detido após interromper um Ministro em pleno vôo comercial e declarar que o Supremo Tribunal Federal é "uma vergonha". O que pensar acerca desse episódio? Antônio Machado, redator da Revista Permanência, analisou o episódio no artigo que publicamos abaixo.]  

É da natureza das coisas que toda credulidade termine em decepção. Fiar-se numa quimera, numa promessa inexeqüível, é o justo castigo que se auto-infligiu o homem moderno ao rechaçar a Fé e a Esperança cristãs. Estas, que são virtudes verdadeiras, conduzem à felicidade eterna no céu e, já aqui na terra, antecipam-na pela vida da graça, semen gloriae. Mas o homem humanista, o homem naturalista, tem lá suas moedas falsas com que pretende, como se possível fosse, defraudar o céu e a terra para arrebatar-lhes uma felicidade de Babel. Fabrica para si os erros em que piamente crê ― corruptela da Fé ― e as promessas de um “mundo melhor”, de um “paraíso nesta vida”, que julga factíveis ― corruptela da Esperança.

Ora, o Liberalismo é por excelência uma grande quimera. Apresenta como fim último do homem o que não passa de um meio: a liberdade. Deposita sua esperança num ideal impossível: a igualdade. E promete desse modo chegar à fraternidade, essa contrafação mundana da Caridade. A prometida sociedade fraterna do porvir é a paródia liberal da bem-aventurança celeste. Mas, bem ao contrário disso, resulta um atomismo social que destrói todos os laços mais profundos entre os homens (solução da direita individualista), ou um Leviatã onipotente capaz de forçar a fraternidade involuntária (solução da esquerda coletivista), ou ainda uma curiosa mistura de uma e outra coisa, que parece ser o vetor final do jogo de forças direita-esquerda. (Continue a ler)

Assim, a revolução constitucionalista, que supostamente se levantou contra a tirania, descambou no Terror. A revolta contra o absolutismo deu à luz um Estado que se arroga a legislar sobre o que nenhum rei do Ancien Régime ousaria tocar, como a correção física dos filhos. Os regimes comunistas, com a promessa de um mundo sem classes e um futuro de plena liberdade, deixaram o rastro dos gulags, dos expurgos, do paredón, do holodomor, da guerra cultural chinesa e da mais rígida separação, já não de classe mas sim de casta, entre os membros do Partido e a simples massa. Séculos de humanismo naturalista engendraram o rebaixamento do homem à mais abjeta animalidade (revolução sexual, hedonismo) e mesmo à subversão da natureza (feminismo, ideologia de gênero). E o multiculturalismo suicida, ao condenar a vocação universalista da civilização ocidental (leia-se: Cristandade) e alardear o sonho relativista da fusão de todos os povos e tradições numa idílica Europa pós-moderna, prenuncia o pesadelo da Eurábia.

O estratagema do demônio está em se valer dessas mesmas contradições para avançar o mistério da iniqüidade. E o faz tentando os homens com o delírio de aumentar a dose do veneno para curar os sintomas que ele mesmo criou. Inculca-lhes que é preciso mais liberdade e mais igualdade para alcançar, enfim, o porto da fraternidade. Do outro lado está a Igreja, com a doce verdade (que soa dura aos nossos ouvidos liberais), com a palavra de mãe, dizendo a seus filhos: a verdade primeiro, a liberdade depois; “conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”. Tomemos por exemplo o drama da invasão européia. A resposta católica é a experiência da Tradição: conversão e reconquista. Mas essa resposta exige o abandono dos erros abraçados pelo mundo moderno, muito especialmente as trevas do dito “iluminismo”. A falácia liberal é dizer que a missão do Ocidente é converter os muçulmanos ao credo secularista, para então obter a paz: regime change, Primavera Árabe, fronteiras abertas.

E assim a revolução, na sua dialética infernal, lucra com suas próprias derrotas. A mesma frustração que deveria revelar a fraqueza dos princípios revolucionários, termina por fortalecê-los. Por isso a sucessão de quedas: de conservadores a liberais, a social-democratas, a comunistas, a globalistas, até o desate do Anticristo. De fato, uma das mais emblemáticas representações da revolução, presente por exemplo no selo da seita teosófica, é a serpente que se nutre da própria cauda.

“Vem cá, você quer ser preso?”

Foi um episódio banal do noticiário brasileiro que motivou o esboço destas linhas. A bordo de um avião comercial, um passageiro incógnito se dirige a um ilustre companheiro casual de viagem, sua excelência um ministro do Supremo Tribunal Federal, e registra, celular em punho, em tom calmo, mas com a impertinência dos que tomam a peito a heresia de que o povo é soberano1, as seguintes palavras: “Ministro Lewandowski, o Supremo é uma vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando vejo vocês”.

O rapaz é um true believer. Acredita, de fato, que todo o poder emana do povo. E, crendo-se parte integrante do povo, quer expressar livremente seu protesto soberano. Mas a resposta que ouvirá tem a carga de um choque de realidade: “Vem cá, você quer ser preso?”. E, virando-se para a comissária de bordo: “Chame a Polícia Federal.” Ninguém ignora o restante do enredo.

O católico não aprovará a irreverência do indignado passageiro. A afoiteza de enunciar uma opinião, a vaidade de registrá-la em vídeo, a ânsia de fazer da aeronave um palco de sua liberdade de expressão, o pouco decoro diante de uma autoridade, tudo isso está nas antípodas do espírito católico, mesmo diante do Sr. Lewandowski. Sobretudo a natureza da situação, um vôo comercial, não é adequada àquela atitude.

Mas a atitude terá sido perfeitamente liberal, e nenhum liberal saberá reprová-la sem cair num certo grau de contradição com seus princípios. A condenação partirá do bom-senso que lhe restar; mas o bom-senso é profundamente antiliberal. E para bem realçar essa contradição na fortuidade do episódio, aprouve ao acaso que a reação partisse de um dos ministros mais garantistas do Supremo Tribunal Federal.

No direito, o garantismo é a corrente que leva às últimas conseqüências os ideais do liberalismo inscrito nas modernas constituições. No caso brasileiro, em matéria penal, o garantista nutre horror à prisão automática de condenados em segunda instância, amplifica os direitos do acusado, anula toda uma operação policial por um lapso qualquer do investigador. Considera, amiúde, prioridade nacional o esvaziamento dos presídios (como se também não faltassem leitos no hospital, vagas na creche ou professores na escola), a redução das penas, a manutenção da maioridade penal aos 18 anos, a restrição das ações policiais violentas.

Ademais, o protestador aéreo, oriundo de família de juristas, e sendo ele próprio advogado, decerto acompanhou as recentes decisões do próprio Sr. Lewandowski exaltando a liberdade de expressão e o direito à manifestação do pensamento. Junto com seus pares, sua excelência concluiu que a marcha da maconha não constitui apologia ao crime; que a Lei de Imprensa é um terrível resquício da ditadura militar; que pessoas públicas não podem alegar direito à privacidade para se opor à publicação de biografias não autorizadas. Em obra solo, deferiu uma liminar para permitir que o notório presidiário de Curitiba concedesse entrevista às vésperas da eleição presidencial.

Dessa vez, porém, o juiz garantista não exaltou a liberdade de expressão, nem foi tardo em apontar um crime: “vem cá, você quer ser preso?”. E pôs em prática a ameaça, ordenando que um simples funcionário do STF retivesse o passageiro na chegada ao aeroporto, até que agentes da Polícia Federal o levassem à delegacia.

Você sabe com quem está falando?

Vozes isoladas da comunidade jurídica viram no caso um abuso de poder. Parte da crônica política enxergou uma verdadeira “carteirada”. Tais juízos com freqüência advêm do dogma igualitário, que o liberalismo espalhou nos ares e que nossa Constituição transformou em cláusula pétrea. De fato, não tente o leitor alcançar resultado semelhante ao obtido pelo ministro caso um prosélito protestante o perturbar no transporte público. Se o falso pastor chegar aos gritos de ardor fanático, é possível (mas não provável), que sofra alguma levíssima conseqüência, mas o importunado passageiro não deverá esperar a chegada das forças policiais. E se, por tirocínio jurídico, o incomodado leitor conseguir de algum modo estabelecer um processo judicial contra o impertinente herdeiro de Lutero (digamos, uma ação de dano moral), arrisca-se a deparar com uma sentença que reproduza a seguinte ponderação do mesmo STF: “No que toca especificamente à liberdade de expressão religiosa, cumpre reconhecer, nas hipóteses de religiões que se alçam a universais, que o discurso proselitista é da essência de seu integral exercício” (RHC 134.682).

Mas ainda do ponto de vista técnico, à luz da legislação penal brasileira, não é fácil enquadrar como delito a petulância do nosso indignado cidadão2, o que leva alguns juristas e comentadores a tratar o episódio como uma “carteirada”. Sendo assim, esse acontecimento fugaz se enquadraria numa moldura maior, na crítica sociológica comumente feita ao inacabado liberalismo brasileiro. “Todos são iguais perante a lei”, reza nossa liberalíssima Constituição. Mas ― dizem os proponentes do aprofundamento liberal ― a tinta impressa no Diário Oficial de 1988 não revogou a cultura do autoritarismo, do compadrio, e mesmo do jeitinho. Um célebre antropólogo brasileiro elegeu, como ícone dessa dicotomia, a pergunta que todos já ouviram: “você sabe com quem está falando?”.

Que os brasileiros tenhamos uma peculiar dificuldade de antepor o bem comum a nossos interesses privados, e que a submissão à lei nos seja particularmente custosa, isso não se discute e não se elogia. É bem possível que tenhamos juntado o pior da modernidade com distorções da sociedade tradicional. O problema está menos no diagnóstico do que no receituário, que parte do preconceito liberal (poderíamos dizer, quase a superstição liberal) de que a civilização começou em 1789 e tudo o que precede essa data não passa de arbítrio e injustiça. Não poucos cientistas sociais apontam abertamente as nossas raízes católicas como causa máxima do atraso brasileiro em economia, em política, em cultura3; de onde teríamos herdado, inclusive, a cultura dos privilégios ― essa palavra maldita no vocabulário contemporâneo.

Semelhantes, mas desiguais.

Todavia os privilégios, entendidos no sentido verdadeiramente medieval, nada têm de condenável. Basta que nos desapeguemos da miragem igualitarista, seja na sua versão conservadora (a igualdade jurídico-política do liberalismo clássico), seja na sua versão progressista (a igualdade social, econômica, dos comunistas).

Todo homem possui uma alma feita à imagem e semelhança do Criador, e nisso consiste a dignidade de sua natureza. Dignidade elevada sobremaneira quando, na plenitude dos tempos, o próprio Verbo Criador uniu à sua divindade a frágil natureza humana: Deus, qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti et mirabilius reformasti4, diz o Ofertório da Missa.

Sendo filhos dos primeiros pais, criaturas do mesmo Criador, destinados ao mesmo fim último, sujeitos à mesma Lei, pela qual nos julgará o mesmo Supremo Juiz, temos todos muitíssimo em comum ― pode-se dizer até que, face a isso, as diferenças parecem muito pouco.

Para além dessa igualdade fundamental de natureza, tudo o mais é distinção na vida do homem, como de resto na Criação inteira. É a lição das Escrituras, da melhor filosofia, do Magistério e do senso comum. Santo Tomás (ST, Iª pars, q.47, a.2) nos ensina que os graus de proporcionada desigualdade na criação refletem a sabedoria ordenadora do Criador, fazendo eco ao Apóstolo: “Quae a Deo sunt, ordinata sunt” (Rm 13,1).Daí o Livro da Sabedoria registrar que “todas as coisas dispuseste com medida, conta e peso” (Sb 11:21) e a Sabedoria Encarnada registrar, em diversas passagens, que sua obra não era igualitarista5.

Nas suas formidáveis encíclicas, Leão XIII fundou a doutrina social da Igreja sobre o sólido fundamento da admissão das desigualdades, e do reconhecimento de que, bem entendidas e ordenadas, elas são um bem a preservar, e não e um mal a combater.

Assim, na encíclica Quod Apostolici Muneris, contra o socialismo, pontificou:

“[S]egundo as doutrinas do Evangelho, a igualdade dos homens consiste em que todos, dotados da mesma natureza, são chamados à mesma e eminente dignidade de filhos de Deus, e que, tendo todos o mesmo fim, cada um será julgado pela mesma lei e receberá o castigo ou a recompensa que merecer. Entretanto a desigualdade de direitos e de poder provém do próprio Autor da natureza, de quem toda a paternidade tira o nome, no céu e na terra (Ef 3,15).

“(…) Aquele que criou e governa todas as coisas regulou com sua sabedoria providencial que as ínfimas coisas ajudadas pelas medianas, e estas pelas superiores, consigam todas o seu fim.

“Por isso, assim como no Céu quis que os coros dos anjos, fossem distintos e subordinados uns aos outros, e na Igreja instituiu graus e diversidade de ministérios, de tal forma que nem todos fossem apóstolos, nem todos doutores, nem todos pastores (I Cor. 12, 27). Assim estabeleceu que haveria na sociedade civil várias ordens diferentes em dignidade, em direitos e em poder, a fim de que a sociedade fosse, como a Igreja, um só corpo, compreendendo um grande número de membros, uns mais pobres que os outros, mas todos reciprocamente necessários e preocupados com o bem comum.” (nos. 15, 17 e 18)

E para que os católicos-liberais não digam que as palavras do Papa se referem apenas ao igualitarismo socialista, vejamos o que diz o Magistério na encíclica Humanum Genus, contra a maçonaria:

“E ainda há as suas doutrinas sobre política, em que os naturalistas decretam que todos os homens têm o mesmo direito, e são em todos os aspectos da mesma e igual condição; que cada um é naturalmente livre; que nenhum tem o direito de comandar a outrem; que é um ato de violência requerer que homens obedeçam qualquer autoridade outra que aquela que é obtida deles mesmos. De acordo com isto, portanto, todas as coisas pertencem ao povo livre; o poder é exercido pela ordem ou permissão do povo, de modo que, quando o desejo do povo muda, os governantes podem ser legalmente depostos e a fonte de todos os direitos e deveres civis está ou na multidão ou na autoridade governante quando esta é constituída de acordo com as últimas doutrinas. É sustentado também que o Estado deve ser sem Deus; que nas várias formas de religião não há razão pela qual uma devesse ter precedência sobre outra; e que todas elas devem ocupar o mesmo lugar.

(…)

“[N]inguém duvida que todos os homens são iguais uns aos outros, tanto quanto se refere à sua origem e natureza comuns, ou o fim último que cada um deve atingir, ou os direitos e deveres que são daí derivados. Mas, como as habilidades de todos não são iguais, como um difere do outro nos poderes da mente e do corpo, e como há realmente muitas dessemelhanças de maneiras, disposição, e caráter, é extremamente repugnante à razão esforçar-se por confinar todos dentro da mesma medida, e estender completa igualdade às instituições da vida civil. Assim como uma perfeita condição do corpo resulta da conjunção e composição de seus vários membros, os quais, embora diferindo em forma e propósito, fazem, por sua união e distribuição de cada um em seu próprio lugar, uma combinação bela para ser mantida, firme em força, e necessária para o uso; desse modo, na comunidade, há uma quase infinita dessemelhança de homens, como partes do todo. Se eles devem ser todos iguais, e cada um deve seguir seu próprio desejo, o Estado vai aparecer extremamente deformado; mas se, com uma distinção de graus de dignidade, de ocupações e empregos, todos habilmente cooperarem para o bem comum, eles irão apresentar a imagem de um Estado bem constituído e conformado à natureza.” (n os. 22 e 26).

Ora, os privilégios medievais não são outra coisa que a justa medida jurídica do reconhecimento dessas desigualdades benéficas, porque naturais. O homem medieval, profundamente realista, que edificou o seu Direito sobre a sedimentação dos costumes e o senso de Justiça como virtude, jamais se proporia a quimérica confabulação de uma utopia jurídica ideal, do tipo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fonte histórica de todas as constituições modernas. Ao contrário, reconhece humildemente que “contra a natureza todos os esforços são vãos”6, e que “todas as desigualdades, não arbitrárias mas derivadas da mesma natureza das coisas, desigualdades de cultura, posses, posição social (sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da caridade) […] longe de lesar de algum modo a igualdade civil, lhe conferem o seu legítimo significado: Isto é, que defronte do Estado cada qual tem o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, no lugar e nas condições em que os desígnios e disposições da Divina Providência o tiverem colocado.”7 

A noção medieval de privilégio relaciona-se com o reconhecimento e a contemplação das desigualdades, dos quais resulta a impossibilidade de querer submeter todos os homens, com todas as suas diferenças, às mesmas regras legais em todos os aspectos de sua vida. Cada corpo social constituído em sua organicidade própria tinha lá os seus devidos privilégios. O menor aprendiz participava dos privilégios da confraria ou corporação de ofício em que ingressava, um deles sendo o monopólio numa dada região, e outro o de ser julgado pela própria confraria nas infrações às regras do ofício. Estudantes universitários gozavam o privilégio de serem julgados apenas pela jurisdição eclesiástica, em prestígio à vocação universal de seus estudos. Em muitos lugares, os servos de uma gleba tinham o privilégio de não poderem ser retirados (nem em razão de uma guerra, nem pela venda do feudo), uma natural contrapartida de sua vinculação à mesma terra8. No impulso da vida urbana dos séculos XI a XIII, as comunas vão recebendo progressivamente privilégios que as libertam da autoridade dos senhores, de modo a fazer a transição a um estado de coisas que já não justificava a tutela dos barões à nascente burguesia. Os nobres, dedicados à proteção do feudo e do reino, e convidados a um código de conduta honroso e exemplar (o ideal cavalheiresco), gozam por isso certos privilégios que dizem respeito, em primeiro lugar, à sua dignidade (só eles podem, por exemplo, usar esporas), e em segundo lugar, à vida de ócio que devem levar (quanto ao trabalho manual) para bem desempenhar suas funções militares, honoríficas, intelectuais. Explicam-se por aí, em princípio, as isenções tributárias que causam ojeriza aos manuais escolares. E por fim o clero, na sua elevadíssima missão espiritual, tinha a justo título os privilégios de não participar de guerras, de não recolher impostos, e sobretudo de ter os seus próprios tribunais (privilegium fori) para zelar pela sua liberdade frente ao poder temporal. 

Tudo isso é rigorosamente justo e adequado. O direito canônico e o direito consuetudinário, na tradição das grandes ordenações jurídicas da antiguidade, punham a ênfase nas noções de dever, mandamento, obrigação, regra, vedação etc9. O privilégio nada mais é do que, para usar uma palavra do nosso direito moderno, uma prerrogativa adequada e proporcional ao cumprimento dos próprios deveres de estado.

Ora, não há nenhuma injustiça em que se garanta o ócio a quem está incumbido de desempenhar uma função mais elevada, seja de natureza militar, intelectual ou espiritual. O Divino Espírito Santo é quem o diz: “O letrado adquire sabedoria no tempo do ócio, e o que tem poucas ocupações alcançará a sabedoria. De que sabedoria será cheio o que pega o arado, e o que faz timbre de saber picar os bois com o aguilhão, e se ocupa constantemente em seus trabalhos, e cuja conversação é somente sobre novilhos e touros?” (Eclo 38, 25-26). Ao contrário, esses privilégios perfazem um bem, porque garantem à sociedade que algumas pessoas, devidamente dotadas e escolhidas pela Providência, desempenharão funções que a maior parte dos homens não poderia levar adiante, tudo se revertendo para o bem comum10.

A última aristocracia?

Já o mundo nascido dos soluços igualitaristas ― a revolta protestante, o iluminismo, a revolução liberal, os assaques comunistas, o feminismo etc. ― é por definição avesso à noção de nobreza. É desde sempre ignóbil em potencial; e com freqüência o é em ato.

Era de se esperar, pois, que os privilégios medievais fossem execrados na lenda negra dos revolucionários, e que sua feição verdadeira e justa fosse confundida com um abuso, uma arbitrariedade, uma injustiça. O próprio conceito moderno de isonomia (submissão de todos a uma mesma lei ou regra) veio a se confundir com a noção de justiça, que implica sempre uma necessária distinção, pois que se baseia, segundo o bom e velho catecismo, em dar a cada um o que lhe é devido.

É bem verdade que para isso contribuíram os próprios estados privilegiados, a partir sobretudo do renascimento humanista. A decadência moral das cortes na aurora da modernidade, o afastamento do ideal cavalheiresco e dos critérios sobrenaturais em favor do naturalismo e do sensualismo humanista, associados ainda à crescente desvinculação da nobreza com as terras, tudo isso tornava pouco justificável aos olhos da multidão a manutenção de privilégios aos quais já não correspondiam o desempenho dos deveres de estado. Mesmo do clero se poderá apontar abusos que, embora não a justifiquem de modo algum, explicam em parte a sanha igualitarista dos séculos seguintes.

O papel exemplar, modelar, que a nobreza exercia com a prática das virtudes cristãs, está hoje reservado ao deplorável universo do showbusiness, dos esportes de massa, da música pop, numa palavra: da cultura de massas. Seria impensável o grau de imodéstia dos dias presentes sem o protagonismo dos astros de televisão, sem as modas da mídia.

Mas a par desse ambiente pérfido das celebridades, dos novos-ricos, das colunas sociais, haveria no mundo de hoje algum eco longínquo dessa antiga noção de nobreza, de patriciado, de estamento elevado por força de suas elevadas funções, algo além de reis que não governam e de lordes que não retêm sequer o poder de veto?

Talvez não seja exagero dizer que sim, e que esse reflexo moderno (essa caricatura, se quiserem) está precisamente no Poder Judiciário, com suas togas e martelos, suas pompas, sua liturgia de julgamento, seus ritos processuais, a vitaliciedade de seus membros, a solenidade de seus encontros. Os códigos de ética da magistratura exigem conduta irrepreensível mesmo na vida privada (art. 35, VIII, Loman), como também no único outro ofício concomitante que podem exercer, que é o magistério: “o magistrado, no exercício do magistério, deve observar conduta adequada à sua condição de juiz, tendo em vista que, aos olhos de alunos e da sociedade, o magistério e a magistratura são indissociáveis, e faltas éticas na área do ensino refletirão necessariamente no [menor] respeito à função judicial” (art. 21, § 2º, Código de Ética).

E por se tratar de uma “nobreza” dotada de poderes estatais, poder-se-ia chamá-la uma aristocracia no sentido mais preciso: no modelo brasileiro, admitindo-se a premissa de que os aprovados no concurso da magistratura são os mais preparados, estaríamos diante do estamento dos melhores, investidos no poder de julgar.

O direito brasileiro é pródigo de prerrogativas aos juízes: seus cargos são vitalícios, sua máxima punição (administrativa) é a aposentadoria compulsória, seus salários são irredutíveis (desde o tempo em que não o eram os dos demais trabalhadores), suas posições são inamovíveis. Na prática forense, cercam-se de assessores, motoristas, carros oficiais, entradas especiais, elevadores privativos.

O exaltado liberal verá em tudo isso uma terrível manutenção de privilégios. Esperneará contra a existência dos palacetes, dos motoristas, dos elevadores reservados. Indagarão retoricamente se é justo que o advogado tenha de aguardar numa longa fila de espera enquanto o juiz cruza desimpedido o limiar dos atalhos exclusivos. Na sua premissa está o igualitarismo, e alguns extrairão das suas entranhas liberais a conclusão de que todo cidadão tem o direito cívico de confrontar um ministro do Supremo Tribunal Federal num momento de sossegada vida particular.

O católico ― e o homem de bom-senso ― verá nitidamente que a vergonha não está nas honrarias do cargo, no tratamento desigual, nos corredores e elevadores privativos. Tudo isso se justifica e se sustenta, dentro de limites razoáveis, desde que os altos deveres de estado sejam cumpridos: a distribuição de justiça. O descompasso, o desequilíbrio estará, não nas prerrogativas, nos privilégios, mas sim na omissão ou mesmo na perversão do papel do magistrado frente à lei natural, e às vezes mesmo à lei positiva. A vergonha católica se volta aos tribunais que são tardos e pusilânimes no julgamento de dilapidadores do patrimônio público, ou de delinqüentes citadinos, mas não mostram nenhum pudor em mudar a definição, como se deuses foram, do que é a vida, o que é a morte, o homem, a mulher, o casamento, a família, a educação, sempre sistematicamente na contramão da lei natural. São ativistas em desafio à Lei de Deus, e passivistas em desafio ao Código Penal.

A necessária restauração.

A atitude do indignado passageiro aéreo corresponde a um clamor, perfeitamente liberal, de exaltação das massas e da soberania do povo. Alguns até, a pretexto de lutar contra o esquerdismo, falam numa revolução brasileira que, curiosamente, tem os mesmos métodos da subversão comunista. O exemplo mais recente foi a paralisação de caminhoneiros, que poderia ter levado a uma crise de desabastecimento de conseqüências insondáveis.

Tomar esse caminho terá o efeito de nos tornar ainda mais ingovernáveis do que já somos. Soa como anedota convocar uma greve geral ― que foi o efeito prático da paralisação dos caminhoneiros ― para exigir ordem! Vem a calhar o juízo severo de Platão contra a democracia: a suscitação das paixões da massa não teria, para o filósofo, outro destino que não o de terminar jogando o povo nas mãos de algum tirano, único capaz de domar os milhares de soberanos.

Alguém já resumiu muito bem o problema que se coloca para o revolucionário: é que, sem as massas exaltadas, não se faz revolução; e com elas, não se governa. Talvez por isso mesmo os liberais tenham permitido em seu meio uma classe, um status, com feições semelhantes às da antiga aristocracia: é ao Judiciário, e sobretudo às cortes supremas, que compete guardar o livro sagrado dos liberais, que são as constituições com seu catálogo de garantias e direitos.

Defrontado com isso, decerto se surpreendeu o true believer que sentia vergonha do Supremo, sabe-se lá se pelas razões certas ou não. Ao ver seu ardor de expressão livre colidir com a muralha das exigências da autoridade e da ordem, o nosso passageiro deve ter se sentido como Mark Twain, um liberal com senso de humor, que se queixava do liberalismo inacabado norte-americano: “É pela bondade de Deus que, em nosso país, temos essas três indescritíveis preciosidades: a liberdade de expressão, a liberdade de consciência, e a prudência de jamais praticar nenhuma delas”.

A paz e a harmonia em sociedade, ensinam os papas pré-conciliares, só poderão advir do reconhecimento das desigualdades e de sua beleza e necessidade para o corpo social. A paz social, mesmo num singelo vôo de carreira, exigirá um ameno reconhecimento dos deveres de estado das distintas posições sociais, e dos privilégios proporcionados para bem exercê-los ― dentre os quais deverá estar, necessariamente, o de um juiz não ser incomodado pelas decisões que tomar, quando houverem de ser impopulares. Impopular teria sido, talvez, o julgamento do STF que reconhecesse a inconstitucionalidade de pesquisas com células-tronco embrionárias, porque violam a vida humana. Mas a decisão da corte foi oposta a isso, como todos sabem.

Todavia, se os supremos juízes querem receber o tratamento devido à autoridade, devem corresponder se comportando como verdadeiras autoridades, a começar pelo respeito à lei natural. Se querem que lhes dispensemos as honrarias herdadas do passado nobiliárquico, que se pautem pelos nobres ideais de virtude na vida pública e privada. Reconheceremos felizes que seus motoristas, elevadores, títulos e prerrogativas são um preço módico a pagar. Mas se preferirem os convescotes impudicos, as intimidades indevidas, as relações duvidosas, e sobretudo se preferirem (ah!, como preferem!) se alçar à condição de deuses e espezinhar a lei natural, então serão e continuarão a ser, a justo título, a vergonha nacional.

  1. 1. Ao leitor que porventura se escandalizar de ver profanado o mito da soberania popular, recomenda-se a encíclica Diuturnum illud, do Papa Leão XIII, sobre a origem da autoridade civil (especialmente os nos. 4 a 8). Poderá também consultar o artigo “A soberania do povo é uma heresia”, da Revista Permanência nº 288.
  2. 2. A menos, é claro, que haja outros fatos ignorados até aqui. Mas o próprio ministro, em nota oficial e entrevista concedida no dia seguinte, não acrescentou nada ao enredo. E o autor destas linhas consultou um desembargador criminal, garantista e admirador, por sinal, do Sr. Lewandowski, que teve idêntica dificuldade de caracterizar o fato como crime ― sobretudo crime de injúria, como pareceu fazer crer o ministro em sua nota oficial, ao dizer que quis resguardar a honra institucional do STF. Se manifestar “vergonha do STF” for um crime de injúria, o que será a acusação de fascismo ao chefe do Executivo, ou a alcunha de golpista lançada em face de dois terços do parlamento brasileiro? Imagine o leitor qual não seria a reação nacional se o Sr. Jair Bolsonaro, insultado de “fascista” num vôo comercial, ameaçasse de prisão o passageiro e exigisse a presença da Polícia Federal. Por último, conviria notar que as diversas associações de magistrados que emitiram nota de desagravo ao ministro, embora fundamentassem o devido repúdio à conduta do passageiro, não souberam indicar um único artigo de lei penal que houvesse sido transgredido.
  3. 3. Deploram, por exemplo, a confissão auricular, ousando retratar esse tribunal de misericórdia como símbolo de uma execrável falta de transparência. Exaltam, ao revés, a confissão pública de seitas protestantes como um marco de democracia religiosa. Remetem qualquer abuso de delegacia policial a um suposto “ethos (é o helenismo da moda) inquisitorial”. Nosso dito “défice de cidadania” teria como causa a mentalidade hierárquica do “clericalismo”. A moral que prega ser mais fácil passar um camelo pela agulha que um rico ingressar no Reino dos Céus seria o maior entrave ao nosso capitalismo. E por aí vai…
  4. 4. “Ó Deus, que de modo admirável criastes a natureza humana em sua dignidade, e de modo ainda mais admirável a restaurastes…”
  5. 5. Na parábola dos talentos, um servo recebe cinco, outro três, outro apenas um, reconhecendo que eram desiguais em capacidade (Mt 25, 14-15). Ao falar da recompensa dos bons e do castigo dos maus, Nosso Senhor diz, sem nenhum pendor igualitarista, que “ao que tem lhe será dado [ainda mais], e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt 13, 12). Para prepara sua própria encarnação, escolheu e formou um povo à parte, ao qual reservou certa primazia mesmo depois da prevaricação: “tribulação e angústia para a alma de todo homem que faz o mal, do judeu primeiramente, e depois do grego; mas a glória e honra e paz a todo aquele que faz o bem, ao judeu primeiramente, e depois ao grego” (Rm 2, 10). Para governar e propagar Sua Igreja, escolheu doze apóstolos, aos quais era concedido conhecer os mistérios do Reino dos Céus ainda ocultos da multidão (Mt 13, 11). Desses apóstolos, só um era o Chefe (Mt 16, 18-19), e outro era o discípulo dileto (Jo 13, 23; 19, 26). E quando o traidor, antecipando os hipócritas que negam ao culto divino a opulência que querem guardar em sua própria bolsa, acusou de perdulário o bálsamo de Maria, ouviu de Nosso Senhor a solene condenação da utopia socialista: “sempre tereis convosco os pobres” (Jo 12, 8).
  6. 6. Leão XIII, encíclica Rerum Novarum, nº 9.
  7. 7. Pio XII, Radiomensagem de Natal de 1944, sobre a democracia.
  8. 8. Por aqui se vê a impropriedade de equiparar o servo medieval ao escravo, antigo ou moderno. A vinculação à terra é a um só tempo uma limitação da liberdade do camponês, mas também uma garantia. E se insere no tipo de relação que anima toda a sociedade medieval: a suserania-vassalagem, pela qual o superior se obriga à proteção e o inferior se obriga à lealdade. Sobre o tema, q.v. o capítulo II da obra Luz da Idade Média, de Régine Pernoud.
  9. 9. Sobre esta ênfase, e a inversão moderna que põe no centro da vida social a noção reivindicatória de direito, q.v. o artigo, “A democracia nos coage”, do Dr. Julio Fleichman, que dispensa comentários. Disponível em permanencia.org.br/drupal/node/675.
  10. 10. Sobre o bom ócio, e a sua necessidade, q.v. a excelente coluna Nihil sub sole novum da Revista Permanência nº 291.
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