3. 9 - Cisma em sentido formal, virtual, desobediência legítima
Da análise do mandato lido em Ecône, por ocasião das sagrações episcopais, não resulta, portanto, nenhuma vontade cismática: a vontade de instituir uma hierarquia paralela não transparece de modo algum das ações de Dom Marcel Lefebvre. E é sabido que, no tempo posterior às ordenações, ele jamais conferiu alguma "missão canônica" (e é igualmente sabido que os quatro bispos escolhidos nunca se comportaram, nestes dez anos, como se fossem titulares de Dioceses).
A acusação de cisma, em sentido formal, contida nos documentos, se baseia, necessariamente no texto do mandato de Ecône e no ato representado por ele. Isto significa que o ato da sagração efetuado (por necessidade) contra a vontade expressa do papa, um ato de desobediência, foi considerado enquanto tal cismático, contra os princípios aceitos, pelos quais , como se viu, é preciso sempre distinguir entre a desobediência, enquanto tal, e o cisma. Isto é o que ressalta claramente do decreto do Cardeal Gantin, que fala de ato cismático por sua própria natureza e do motu proprio Ecclesia Dei, já citados. Para este último, a consagração sem mandato é ato em si de desobediência ("in semetipso talis actus fuit inobedientia adversus R. Pontificem”); todavia, esta desobediência, relativa a uma matéria gravíssima que concerne à unidade da igreja mediante a sucessão apostólica, comporta (inffert) um verdadeiro repúdio (vera repudiatio) do Primado Romano e por este motivo deve-se considerar cismático: "Quam ob rem talis inobedientia actum schismaticum efficit”: "por tal motivo (porque nega a unidade da Igreja) esta desobediência se interpreta como sendo um ato cismático".
O sentido do texto parece inteiramente claro: esta desobediência, por causa da sua gravidade, implica uma recusa do Primado de Pedro, põe em dúvida a unidade da Igreja, deve considerar- se cismática. É, em suma, a qualidade atribuída à desobediência que faz considerá-la cismática. Encontramo-nos aqui diante dum ato cismático em sentido objetivo, que se torna ria tal somente pela suposta qualidade do ato (que por si não é cismático), também na ausência de declarações de vontade e de atos ulteriores, necessários à existência do cisma em sentido formal.
Parece quase supérfluo ressaltar que esse conceito de cisma é completamente desconhecido, tanto pelo direito canônico como pela teologia. A Sé Apostólica, portanto, teria invocado, relativamente ao direito vigente, uma noção de cisma em sentido formal, aplicando-a contra
Dom Marcel Lefebvre, a qual não é admitida pela doutrina nem pelo Código. Esta nova noção de cisma é inaceitável por não distinguir entre desobediência e cisma — e portanto entre desobediência legitima e ilegítima — interpretando, como faz, um ato de desobediência como cismático por si mesmo.
Mas, pode existir um cisma em sentido puramente objetivo? Equivale a dizer que pode haver um cisma na ausência de uma vontade declarada em tal sentido e sem a instituição de uma hierarquia paralela mediante uma "missão canônica" ilegítima? Nenhum canonista ou teólogo admitiria a existência de um cisma assim concebido. É verdade que o Código de Direito Canônico não define o ato cismático especifico, mas unicamente o conceito de cisma, refazendo-se substancialmente a doutrina de Santo Tomás; mas isto não significa que a Sé Apostólica possa literalmente inventar uma categoria nova de ato cismático; além disso, contraria tudo quanto a doutrina católica afirmou.
Naturalmente, o Papa, legislador supremo e primeiro doutor da Igreja, tem o poder de inovar, relativamente ao Código. Porém deve dizê-lo, deve estabelecer um novo tipo de delito (o cisma objetivo ou a desobediência só objetivamente cismática ou o que se queira dizer) com as normas oportunas; não pode contrabandeá-la como se se tratasse de mera aplicação do direito vigente. O fato de o Código não definir o ato cismático não significa que a suprema autoridade possa estabelecer, de um dia para outro e sem formular novas normas (e portanto sem se assumir responsabilidades legislativas), que um determinado ato se deva considerar cismático "por sua natureza"; significa, ao invés, que o Código, para a determinação do ato cismático, reenvia à doutrina consolidada - e à praxe da Igreja durante os séculos. E a suprema autoridade não pode ignorar esse reenvio sem cair no arbítrio,
Qual é então a noção consolidada de cisma em sentido formal? O C.I.C. no citado cânon 751 define o cisma como "a subtração à sujeição ao Sumo Pontífice ou à comunhão com os membros da Igreja sujeitos ao mesmo" 1.
O cisma consiste, portanto, em subtrair-se à sujeição ao Papa ou à comunhão com os membros da Igreja sujeitos a ela. Esta subtração dá origem a uma separação do corpo da Igreja e representa uma ruptura na unidade da Igreja. É de notar que, no plano conceitual, pode haver cisma também na subtração apenas aos membros da Igreja sujeitos ao Papa, sem, ao mesmo tempo, haver subtração à submissão ao Papa, ou vice-versa. O pecado de cisma é contra a caridade porque "directe et per se opponitur unitati!", dado que não acidentalmente, mas por sua própria natureza "intendit se ab unitate separare quam caritas facit": "visa separar-se da unidade que a caridade produz”: Os cismáticos são os que, violando o mandamento da caridade, se separam da Igreja "propria sponte et intentione”, por própria vontade e intencionalmente, E a unidade da Igreja deve entender-se de dois modos entre os irmãos na fé: "na conexão recíproca dos membros da igreja" e "na sua ordenação a uma cabeça"(Col. 2, 18-19), A cabeça "é o próprio Cristo, cujo vigário na Igreja é o Sumo Pontífice”; Por isso, "se chamam cismáticos os que se recusam a submeter-se ao Sumo Pontífice e estar em comunhão como os membros da Igreja sujeitos a ele"2. Assim nos fala Santo Tomás, Ele nos dá, portanto, o conceito de cisma assim como o encontramos ainda hoje no Código.
O cisma é um tipo peculiar de pecado (peccatum speciale), que exige requisitos próprios. Não pode ser reduzido à desobediência enquanto tal, como quereriam alguns, enquanto esta última está na base de todo pecado: "em todo pecado o homem desobedece aos preceitos da Igreja, já que o pecado, diz Ambrósio, é desobediência dos mandamentos celestes”. Portanto, “todo pecado é cisma"3. A refutação de Santo Tomás se baseia no seguinte raciocínio imbatível: na desobediência que dá origem ao cisma deve haver "rebellio quaedem", manifestar-se uma rebelião, resultante do fato de "desprezar com pertinácia os ensinamentos da Igreja e subtrair-se ao seu julgamento. E essa atitude nem todo pecado encerra. Por isso, nem todo pecado é cisma"4.
O cisma é, pois, um pecado "especial" ou particular ou especifico, como se queira, que não pode ser equiparado a outro pecado, com base no principio de que em todo pecado há uma desobediência. Para Santo Tomás, o cisma deve ser caracterizado pela "rebelião". Exprimindo- se como uma "rebelião", trata-se de desobediência ilegítima (se a desobediência é legítima, então não pode haver mais rebelião). O pensamento teológico medieval e o posterior é concorde neste ponto: "Os teólogos, pelo menos os dos séculos XIV, XV e XVI, se aplicam em ressaltar que o cisma é uma separação ilegítima da unidade da Igreja; afirmam, de fato, que poderia dar-se uma separação legítima, como no caso de quem se recusa a obedecer ao Papa se este manda uma coisa má ou indevido" (Torquemada) 5. Neste caso, como na excomunhão injusta, "seria uma separação da unidade puramente exterior e putativa"6.
Portanto, a doutrina elaborou o conceito de cisma como recusa ilegítima de submissão e comunhão. Esta recusa se depreende num ou nalguns atos em que se manifeste inequivocamente uma desobediência ilegítima (rebelião) para com a autoridade; que se manifeste claramente a intenção do sujeito agente de negar conscientemente a submissão e a comunhão, sobre os quais se funda a unidade da Igreja. Doutro modo o cisma é virtual, presente na intenção, mas não ainda concretizado na ação, numa separação efetiva. E já pode constituir um pecado, mesmo se não esteja dentro do âmbito das normas do C.D.C.
Por cisma virtual não se entende, de qualquer modo, a atitude ou intenção do cismático em potência, mas também um comportamento que revele objetivamente uma não participação na comunhão com os membros da Igreja, mesmo na ausência de um cisma efetivo em sentido formal. Tal comportamento, mostrando uma separação de fato, revelaria uma situação de cisma virtual. Segundo o Pe. Murray, na citada entrevista a The latin mass, esta seria a situação dos sacerdotes da Fraternidade e dos católicos que freqüentam a Santa Missa tridentina nas igrejas e capelas. Eles não podem ser definidos como cismáticos em sentido formal. (O Pe. Murray nega, como se disse, que D. Lefebvre possa ser considerado cismático em sentido formal), mas deveriam ser julgados como separados da Igreja oficial e por conseguinte cismáticos em sentido virtual, canonicamentre não condenáveis mas teologicamente repreensíveis.
Como veremos, esta avaliação é, segundo nosso parecer, inteiramente errada. Recorde-se que o conceito de cisma virtual se usa também noutro sentido, em conexão com a heresia. Esta é um pecado contra a fé, enquanto que o cisma o é contra a caridade 7. Assim se poderá professar um erro doutrinário grave que, por si, implica uma separação virtual da Igreja. É esta a acusação que, em substância, D. Lefebvre fez à hierarquia que o excomungava como cismático: afligida pelas heresias neomodernistas, a hierarquia atual deve considerar-se virtualmente excomungada por São Pio X 8. Aplicando esse conceito, devemos dizer que, enquanto afetada por grave erro sobre a exata noção da Igreja (referimo-nos novamente ao § 8 da Lumen Gentium) erro que rompe, por si mesmo, a unidade com a doutrina ensinada durante quase vinte séculos pela Igreja sobre ela mesma, a hierarquia atual se põe fora da Igreja de sempre, se coloca numa posição de cisma virtual.
Por ora, deixamos de parte o cisma em sentido virtual, e tratemos do ponto decisivo para o conceito do cisma em sentido formal: a noção do ato cismático. Retomando Santo Tomás, Congar a delineia do seguinte modo: "O ato cismático é portanto aquele ato perverso que tem direta, própria e essencialmente, um objeto especifico, uma coisa contrária à comunhão eclesiástica, ou seja, a unidade que, entre os fiéis, é efeito da caridade. Um ato, com efeito, se caracteriza pelo objeto a que tende por si, pelo próprio fato daquilo que ele é. Um ato mostrará então a qualidade de ser cismático quando, por sua própria natureza, tiver em mira a separação da unidade espiritual, fruto da caridade"9.
O ato cismático, portanto, é e não pode deixar de ser aquele que tem como escopo "direta, própria e essencialmente" (não se fala, portanto, de uma aproximação indireta) a ruptura da unidade eclesial. E para que se possa dizer que um ato tem este escopo, há um sinal certo, dado não pela desobediência enquanto tal, mas pela "vontade de constituir por própria conta uma Igreja particular”; segundo a límpida expressão de Santo Tomás: "dicuntur enim schismatici qui concordiam non servant in Ecclesiae observeatiis, valentes per se Ecclesem constituere singularem"10. Não basta "não conservar a concórdia”; não basta somente a desobediência, mas acrescenta-se a vontade manifesta de constituir -se como Igreja separada. O ato cismático por excelência não será então aquele que fica restrito à mera desobediência (como uma consagração sem mandato): será, pelo contrário, o que constitui a hierarquia duma Igreja paralela com a missão canônica. Este ato visa seguramente a "separação da unidade espiritual, fruto da caridade" É sinal certíssimo. Com este ato se tem o cisma em sentido formal. Com isto se subtrai formalmente à submissão ao Papa, negando-lhe a autoridade como Sumo Pontífice. ou seja, como cabeça da Igreja universal, "ut summus pontifex"11. Isto fez o desventurado Henrique VIII da Inglaterra, que se colocou por própria iniciativa, à frente de uma igreja nacional autodenominada "católica", com uma hierarquia própria nomeada por ele, depois de ter reduzido a autoridade do Papa à de simples bispo de Roma (sessão do Parlamento inglês de 3 de novembro de 1534)
Portanto, sem o ato cismático, sem a "missio canonica”, não pode haver cisma em sentido formal. E quando se pode dar um cisma em sentido virtual? Não certamente quando ocorre uma separação exterior imposta pela necessidade: sucede que ai haja uma vontade efetiva de cisma, ainda não atualizada E isto não ficou certo no caso de D. Lefebvre, dos seus sacerdotes e fiéis que freqüentam a "Santa Missa de sempre" nos lugares de culto da Fraternidade. Contra a opinião do Pe. Murray, afirmamos ser inteiramente inexato falar, no que a eles se refere, de cisma em sentido virtual. Faltam, da parte deles, os sinais de qualquer vontade de cisma: a separação não exprime uma vontade deste tipo, mas é imposta pelo estado de necessidade. Não é intencional, mas suportada. É o preço que se deve pagar para poder celebrar uma Missa não ambígua (como é a de Paulo VI), mas seguramente católica, que conserva o rito romano e remonta aos primeiros séculos do Cristianismo; e para poder administrar os Sacramentos. como por exemplo, a Crisma, com um rito seguramente católico. É o preço a pagar para sermos fiéis à Igreja de sempre.
É uma separação de fato da Igreja oficial, provocada por esta última. Que impede a quem o queira, poder celebrar e freqüentar a Santa Missa Tridentina, sem dever anteriormente reconhecer, contra a consciência, a "correção doutrinal" do rito protestantizado de Paulo VI, e porque o ambiente da sociedade eclesial está gravemente contaminado de modernismo, em todas as sua variadas formas — teológicas, morais e políticas — e se dá ocasião de pôr em perigo grave a fé do católico que fosse constrangido a ter trato habitual com eles (ver § 1 desta dissertação). Um católico que considere a salvação da sua alma como a coisa mais importante para ele e, por conseguinte, não possa ter o que fazer com os sacerdotes da atual hierarquia, nem com os leigos que gravitam ao redor dela - sendo a sua fé corrompida ou, no melhor dos casos, incerta - este católico constrangido, num inaudito estado de necessidade que o faz viver em tal regime de separação, merece ser chamado um cismático virtual?
Se é um cismático virtual, então eram cismáticos virtuais também aqueles que, de fato, se mantiveram separados dos arianos, enquanto estes dominavam na Igreja oficial do tempo. Também Santo Atanásio deveria ser considerado um cismático virtual. E tal separação é revelada pela famosa frase que é também um grito de batalha: "Eles (os arianos) têm as igrejas, nós temos a fé".
Nenhum cisma virtual, portanto, existe para os sacerdotes da Fraternidade São Pio X e para os fiéis que freqüentam as suas funções religiosas e ouvem o seu ensino nos sermões, exercícios espirituais e catecismos, A sua posição é simplesmente aquela de quem, por causa do estado de necessidade, está obrigado a uma temporária desobediência legitima.
É desobediência legitima, efetivamente, desobedecer à ordem implícita e explícita de considerar doutrinariamente correto o Vaticano II, comportando-se de acordo com ele, e desobedecer à ordem de freqüentar a Missa de Paulo VI, protestantizada e por isso não mal vista pelos hereges e nem mesmo pelos não cristãos. A desobediência legitima foi sempre admitida pelos teólogos, quando a autoridade ordenar fazer coisas contrárias à fé ou o que, de qualquer modo, põe em perigo a salvação da alma. Recordamos acima o ponto de vista de Torquemada e que a "separação" motivada das orientações temporárias da hierarquia "contrárias ao magistério de sempre”, não equivale, de fato, à "separação da Igreja" (mas apenas à separação do erro professado infelizmente pela hierarquia, temporariamente) foi amplamente repetido e ilustrado pela dissertação citada "Nem cismáticos, nem excomungados”, a qual remetemos o leitor 12.
Esta desobediência é, pois, concebida por aqueles que são coagidos a praticá-la como temporária, porque imposta pelo estado de necessidade, a qual durará até quando durar a crise da Igreja. E um dia (é de fé: "portae inferi non praevalebunt" - As portas do inferno não prevalecerão) a crise terminará, a hierarquia retornará à sã doutrina, e não verá mais o presente estado de necessidade com o seu dever de desobedecer às ordens ilegítimas da autoridade formalmente legítima...