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A religião do progresso

A RELIGIÃO DO PROGRESSO

Alfredo Lage

I

O PENSAMENTO UTÓPICO

  

O mundo moderno apresenta-nos, sob muitos aspectos, a imagem de um progresso humano paralisado por falsas concepções do progresso. Não só, avaliado em termos propriamente humanos, esse progresso muitas vezes é apenas aparente (pois resulta de uma opção que preferiu um valor material a algum valor essencial do homem), mas a idéia de que o progresso é alcançado graças à negação dos valores tradicionais, e por oposição a uma conjuntura anterior, leva a confundir o movimento ascensional de um grupo humano ou da civilização em geral com as modificações mais superficiais e exteriores da vida, como o comprimento das saias ou a largura das lapelas. (Que essas, sim, se medem por uma fácil oposição ao passado). Além disso, o relativismo filosófico, isto é, a ausência de um seguro critério para escolher entre as possibilidades que se apresentam, abrindo tantos problemas quantos soluciona, geralmente torna esse “progresso” um “marcar passo” (um “piétner sur place”, como dizem os franceses).

Tomemos logo um exemplo. Observa Jean M. Domenach, em recente número da revista “Espirit”: “É evidente que na raiz do fenômeno que se pretende denunciar como afrouxamento sexual, encontra-se um anseio de veracidade, de mútuo reconhecimento. A juventude aborrece os amores soterrados nos casamentos de convenção (o mundo dos romances de Mauriac). Ela exige uma felicidade que se repita a cada momento da vida”. Até aqui tem razão Domenach. Ninguém iria negar o caráter necessário, positivo, excelente, até, de uma reação contra o sórdido conluio de avareza, ódio frio, impotência e desespero, essa estranha argamassa que faz a solidez dos casamentos mauriacianos. Uma coisa porém é a revolta, o impulso, a reação espontânea contra o convencionalismo, outra a teoria que comanda essa revolta, que pretende dar-lhe um motivo universal, uma necessidade lógica. Infelizmente, essa teoria se constituiu aqui em função de uma ruim filosofia vitalista, de uma teoria espúria da espontaneidade. A uma falsa motivação de estabilidade, opõe a ela um falso incentivo de autenticidade. Em nome dessa autenticidade, a infidelidade passou a ser uma sorte de virtude; a conduta à inclinação interior o critério supremo de conduta. Resultado: há muito o mundo mauriaciano dos casamentos de convenção deixou de existir, mas a teoria continua a empurrar adolescentes para a periferia de si mesmos, a torná-los cada vez mais inaptos a aprender o sentido profundo da fidelidade. E eis que, pretendendo fugir ao imobilismo, a juventude cai facilmente numa outra forma de imobilidade. Pois a incapacidade de viver uma experiência em profundidade só nos deixa a possibilidade da repetição: em vez do desenvolvimento, da experiência do tempo vetorial ou do círculo que se abre em espiral, a circularidade dos processos automáticos, cuja imagem é o disco de vitrola viciado, em que a agulha recai sempre no mesmo sulco. A continuação do texto de Domenach mostra que essa conclusão é inevitável: “E eu diria que essa juventude recusa a velhice de uma maneira mais radical do que outra qualquer: é difícil para ela admitir-se sujeita à duração e ao seu corolário, o desgaste, o emurchecimento. Tal é a sua grandeza, mas de outro lado somos levados a indagar se não haverá relação, tão profunda quanto inquietante entre essa atitude e a evolução social. Nossa sociedade vive de uma contínua criação e destruição de objetos, ídolos e fórmulas. Sua concepção de si mesma é cada vez mais a-histórica; ela vê-se crescentemente imobilizada numa perpétua juventude. De onde o sucesso dos temas Nietzcheanos que impregnam nossa ideologia: o eterno retorno e a inocência do devir. Numa tal sociedade, já o pressentira Péguy, as relações humanas tendem a evitar os laços permanentes (...). Assim os noivados tomam um ar “démodé”, quase grotesco; o celibato eclesiástico torna-se suspeito; a virgindade aparece como um sintoma de enfermidade, e como uma fonte de “complexos”. Parece-me (continua Domenach) que a atual “libertação sexual” apresenta duas faces: uma de veracidade pessoal e de integração humana; a outra de demissão e de dissolução individual e comunitária... Certos jovens que em política se insurgem contra uma “sociedade de consumo” aderem sub-repticiamente a seus processos e a seus cultos, ao proclamar os direitos da sexualidade a ponto de eclipsar a fidelidade, o amor construído para durar, por trás de uma intensidade concentrada num único instante”.

O mundo moderno — repito — apresenta-nos, em toda a parte, o espetáculo de um progresso humano entravado por falsas concepções do progresso. Abramos uma revista de cultura. “Tout est en cause. Tout doit être remis en cause”. Eis o ponto de partida universal dos questionários, o leit-motiv de todas as pesquisas, eis a pressuposição inquestionada dos mais diversos inquéritos. O progresso é definido a partir de uma ruptura com o passado. É uma febre de reabrir todas as causas, rever todos os cálculos, reconsiderar todas as decisões. Não há questões fechadas. Vem dos mais diversos quadrantes a exortação a “repensar” os problemas, rever a fundo os critérios, suspender os compromissos assumidos. Reponta por trás disto (pretendo mostrar agora) o ceticismo, a perplexidade. Não uma dúvida fecunda, mas uma dúvida que paralisa a inteligência.

Há em filosofia (por isto mesmo que essa disciplina versa sobre os fundamentos) o que se chama uma “dúvida universal”. É uma atitude inicial da pesquisa, que nada pressupõe sobre o que está submetido à indagação; uma dubitatio geral, sob condições. Universal, mas ficta (é uma suposição). Ilimitada, mas hipotética. Ela não implica uma suspensão atual do assentimento. Profundamente diversa é a dúvida real do cepticismo (na medida em que este é levado a sair do estado de atitude subjetiva para formular-se como doutrina). Esta sim, a dúvida universal, que pretende resultar como conclusão final das indagações, implica a “mise en question” vivida (não apenas suposta) de todos os princípios, a revogação atual de todas as certezas, a suspensão real de todos os assentimentos. Rompendo por sistema os compromissos, até com os princípios da razão, é por isso mesmo infecunda e mesmo racionalmente informulável (pois só é possível formula-la como um dogmatismo).

É tempo pois de pôr em dúvida, examinar os títulos, exigir as credenciais, por sua vez, dessa “mise en question” que todos se julgam autorizados a estender a tudo. É tempo de indagar se o progresso pode ser definido a partir de uma ruptura com o passado; se o pulular atual de problemas, se o fervilhar de opiniões e o agitar de bandeiras não representariam porventura não um sistema de vitalidade, mas uma perplexidade ou uma paralisia da inteligência que, privada de seguros critérios, se vê assaltada por mil solicitações contraditórias.

Pode o rompimento das continuidades ser lido, sem mais exame, como um sintoma inequívoco de vitalidade?

A reflexão nos indica que a solidez de estrutura é sinal e condição de vitalidade, tanto quanto o é a capacidade de adaptação e elasticidade dos tecidos. Opor simplistamente as atitudes conservadoras às de renovamento é um erro grosseiro. Todo ser vivente quer conservar a sua forma (e para isso busca renovar-se exteriormente): chama-se a essa tendência instinto de conservação. Uma concepção corrente do progresso social costuma opor estas duas coisas: a conservação (ou permanência) e a inovação (ou desenvolvimento). Essa dialética é sofística.

“Toda sociedade destinada a durar, escreve Louis Salleron, deve ao mesmo tempo conservar e inovar.

Deve conservar o que constitui a sua essência mesma, a sua alma, o seu espírito ou princípio vital.

Deve inovar, isto é inventar as formas do seu crescimento, de tal maneira que a novidade de seus desenvolvimentos exteriores não faça mais do que manifestar e assegurar o vigor original de sua realidade mais profunda”. [i]

Essa realidade profunda, a alma, princípio de vida, de animação (alma) e de crescimento é também princípio de permanência, de natureza. Tudo o que vive tem em si inscrita a tendência a conservar as condições constitutivas do seu ser. Longe de acolher toda variação, toda mudança, como insinua uma concepção “psicodélica” da vida, o ser vivo e sobretudo o ser jovem reage violentamente contra um tipo de mudança capaz de quebrar a permanência de sua realidade mais profunda. Pois tal mudança nada mais é do que morte. O ser vivo e sobretudo o ser vivamente vivo (que é o ser jovem), no seu instinto mais profundo, é violentamente reacionário.[ii] Só o morto não reage. Nada é mais adaptável do que o cadáver. E essa afirmação vale também para a vida psicológica e a vida moral, tanto pessoal como social. Só o morto psicológico ou o morto social — repito — são indiferentes à continuidade do seu ser através das vicissitudes do destino. Ser psicologicamente normal é ter o sentimento da continuidade no tempo. A tal ponto que recuperar a normalidade psicológica é preencher certas falhas e de certo modo recuperar a memória. A outra coisa não visa a técnica psicanalítica.

A memória social chama-se tradição.

A vida tanto biológica como psicológica — insisto neste ponto — deve-se unir não só pela adaptação, mas pela continuidade, como já verificamos a propósito do amor. A vida interior é ainda mais exigente neste particular. Pois a natureza orgânica tolera ainda certos suprimentos, como os enxertos e os transplantes. Ao passo que, sem a perspectiva do passado, a personalidade perde uma de suas dimensões essenciais; infinitamente chata, colada ao instante, esvoaçando ao sabor das aragens que sopram, como a folha de papel caída da janela e que o vento vai tocando na rua, a pessoa torna-se a virginal imagem da passividade. Seu pensamento é a última impressão recebida, seu desejo o empuxo a que se dobra e que tange. Não importa o conteúdo da idéia. O que vale é o fenômeno, o surgimento, o ato de pensar. Deparamo-nos então com esta pergunta inquietante: que será de uma sociedade que se proponha a realização de uma tal concepção ou ideal da personalidade?

Como eu dizia, os falsos critérios bloqueiam o crescimento. Por trás da nossa “sociedade de consumo” que vive, como diz Domenach, “de uma contínua criação e destruição de objetos, ídolos e fórmulas”, e “cuja consciência de si mesma é cada vez mais a-histórica” (ela se vê “crescentemente simbolizada numa perpétua juventude”), desponta uma idéia inadequada da realidade humana, a imagem de um ser “jovem vago, difuso, sem cara, sem alma, que é um monstro”. Assim o descreve Nelson Rodrigues. Esse monstro sem cara, eu acrescento, é uma abstração. Ou melhor, é as duas coisas, pois um ser vivente moldado à imagem e semelhança de uma abstração na verdade é um monstro. Na verdade, o idealismo substitui um ser concreto posto na base da sociedade por uma abstração. D. H. Lawrence, o grande romancista de “Women in Love”, denunciou certa vez esse passe de mágica, o maior embuste dos tempos modernos. Onde havia a concepção de um homem real, com sua natureza enferma e conflitiva, sua ânsia de transcendência, sua nostalgia da lama, o idealismo moderno insinuou um ser irreal (ou ideal): uma “média glorificada”, uma abstração personificada, um ser de razão. “Que serzinho nojento ele é, exclama Lawrence, essa média, essa unidade numérica, esse Homúnculo”. Seu pensamento é feito de “slogans”, sua linguagem são os clichês do momento; sua personalidade, sem dúvida “inconfundível”, mas sem passado e sem fidelidades, é o produto sintético de uma “promoção”. (Não confie um só instante em nenhum indivíduo que tenha uma “personalidade inconfundível”, adverte Lawrence). 

O racionalismo do século XVIII conseguiu substituir a concepção de um homem concreto, outrora posto na base da sociedade, por uma idéia abstrata da natureza humana, não a natureza tal como ela se realiza em cada indivíduo, mas a natureza humana tomada nos seus caracteres universais. A Aufklärung é um ato de fé apaixonado nessa natureza abstrata (ou natureza comum) considerada não enquanto abstrata, enquanto forma que precisa ser particularizada a fim de ser atribuída a um sujeito, tornar-se natureza específica um “suposto” mas, precisamente, enquanto sujeito, enquanto abstração realizada. Isto é, como “natureza” que se concretiza (na mente), dispensando precisamente as suas verdadeiras condições de realização e que, neste sentido, reduz-se ao que Sto. Tomás chama o “individuum vagum” (como na expressão aliquis homo) e que não passa, diz ele, de uma abstração personificada: é a natureza comum revestida de um modo de existir próprio aos singulares, como substituir por si mesmo e ser distinto dos demais. Evidentemente, tomado como unidade social, este ser se encaixa admiravelmente nos planejamentos concebidos pela atividade calculadora da razão técnica. Transporta-lo da mente para a realidade, eis a operação basilar do nosso irrealismo. Em Rousseau, por exemplo, encontramos o mito de uma natureza humana radicalmente “razoável” e inocente em seus impulsos e aspirações espontâneas, anteriormente ao tempo, à história, à civilização. Tal é a mente do “bom selvagem”, do homem natural, que ao mesmo tempo representa a natureza original do homem e a mente do homem primitivo. (Esse mito ressurge hoje no mito estruturalista da “Pensée Sauvage”). Graças a essa simples manobra, trouxe o Iluminismo um novo evangelho de progresso e de felicidade e “pregou uma era nova em que o homem, vivendo em conformidade com a sua natureza, seria perfeitamente feliz” (Paul Asweld). O homem concreto, culpado e redimido, herdeiro de uma tradição mesclada de glórias e de taras, o homem entrosado no espaço e no tempo graças a esse “corpo de acréscimo” (como diz De Corte), constituído pelos envoltórios culturais encarregados de enraizar humanamente a personalidade: a família, a profissão, a pátria, a Igreja, etc., o homem concreto — repito — cedeu o lugar a uma abstração encarnada, à personificação de uma idéia, a um ser virginal e novo, sem raízes e compromissos, “... jovem, vago, difuso, sem cara, sem alma”, e contudo real: enfim, “um monstro”.

Esse “homem” para o qual se volta o fervor dos novos humanistas, o “ser supremo” da nova religião natural, evidentemente, será não o indivíduo efêmero e isolado, mas o homem coletivo adaptado sem choques, sem atritos ao social, e constituindo a humanidade capaz de duração histórica e dotada do saber acumulado das gerações. Há uma raiz de utopismo inerente ao racionalismo. O pensamento realista parte do homem concreto, com uma natureza conflitiva, uma herança de heroísmo e de erros, dividido entre aspirações sobre-humanas e congênitas fraquezas (“video meliora, proboque, deterira sequor”). É a ele que se dirige a mensagem cristã. A incorporação ao Cristo e a aceitação da sua doutrina podem transformar o homem e salvar a sua vida. O pensamento utópico funda suas esperanças no “homem universal”, que é um ser coletivo, (uma entidade abstrata perfeitamente entrosada numa coletividade) e prega uma salvação social. Pela mudança das estruturas o homem será transformado. Não só o homem individualmente, mas a sociedade enquanto ser coletivo pode ser salva, isto é redimida e “divinizada”. O progresso, que o pensamento racionalista caracterizava por uma oposição ao passado, um rompimento das continuidades, aparece agora, além disso, como um processo de aperfeiçoamento que vai do exterior para o interior, da estrutura social para o indivíduo. Aliás, se desfalece o vigor da realidade profunda que inventa e projeta, de dentro para fora, as formas do seu crescimento, como diz Salleron, resta muito logicamente que as mudanças se façam de fora para dentro. O social tornou-se a realidade principal do homem, o foco do seu dinamismo, mas um social exteriorizado e cuja hipertrofia resulta da abdicação da pessoa. De um lado, a sociedade moderna (como observou o Pe. Alain Birou) é uma grande Potência, um Sistema destinado à organização de bens e fatores produtivos, e do qual o homem facilmente se torna simples parcela material, como um “relai” ou uma engrenagem. “O Estado, escreve Michel Debatisse, tornou-se o primeiro agente econômico da sociedade. Autor do planejamento, da política de rendas e da política de investimentos, ele domina e orienta a vida quotidiana dos indivíduos (...). A política invade tudo e ao mesmo tempo escapa ao nosso controle. A escala exigida hoje para os meios de informação, de propaganda e de ação ultrapassa os recursos sonhados pela juventude. Quem pode hoje lançar um jornal de opinião, inspirado pela simples convicção de sua necessidade, e amparado na fé de que a verdade precisa ser gritada?” [iii] A sociedade moderna anestesia, atordoa, desvia o homem constantemente para a periferia de sua sensibilidade, por meio de um influxo contínuo de solicitações, estímulos, injunções, imagens. De outro lado, essa grande “máquina tecno-burocrática” é a expressão em escala coletiva de mil renúncias consentidas ou, se o preferirem, de uma opção mil vezes reiterada: essa opção antepõe a expansividade econômica à expansão moral da pessoa, prefere a multiplicação das riquezas à difusão dos valores do espírito e, na formação do homem, visa em primeiro lugar aos aspectos exteriores, deixando por princípio o atingimento dos outros em segundo plano, como se a sabedoria e a justiça decorressem automaticamente da produtividade e do potencial econômico. O lema desse sistema é uma paródia e uma inversão do Evangelho: “buscai em primeiro lugar a tecnologia e o desenvolvimento; a justiça e a liberdade vos serão acrescentadas”.

Depois de incentivar temporariamente o progresso e de produzir certos frutos de desenvolvimento em setores limitados, essa falsa teoria começa a gerar insolúveis conflitos, e a bloquear o crescimento da civilização. O homem que ela criou e que por sua vez a criou (mas o produto final vai-se tornando cada vez menos original e capaz de criação cultural) tende para o tipo descrito por Ortega y Gasset como o “bárbaro vertical”, o parasita da cultura, o individuo que dela se serve mas que não a serve, pois está espiritualmente desarticulado dos fins assim como das raízes históricas da civilização. Imerso na “atualidade”, colado ao instante, sua recusa da transcendência é uma recusa do ser que funda as aparências. Sua filosofia da imanência “que assimila o ser ao ato de pensar (como escreve o Pe. Cornélio Fabro), assenta a tolerância sobre a indiferença radical do conteúdo (...). Não há, não pode haver opção do Absoluto, mas apenas opção da escolha, da possibilidade de escolher indefinidamente, quer dizer, de se deixar levar na correnteza irresistível do tempo”. É nesses termos que o famoso autor de “Participação e Casualidade”, num importante estudo publicado no “Osservatore Romano” [iv], descreve “... uma suposta filosofia do diálogo... baseada no princípio de imanência”. Ela pretende que “o ato constitui o seu próprio fundamento e não deve ser medido pelo seu conteúdo” (...) “Essa filosofia proclama pois que reconhecer aos outros a mesma liberdade de consciência que cada um deseja para si mesmo é mais importante do que qualquer outro princípio”. (...) Uma tal filosofia do diálogo não é mais do que “nulismo” metafísico, e conseqüentemente ceticismo, ou “cinismo moral”. Por isto, como assinala o grande mestre: “Nunca se falou tanto em diálogo como em nossa época, diálogo em todos os domínios do espírito: religião, política, arte, filosofia... e nunca sofreu o homem de uma incomunicabilidade semelhante à que hoje nos aflige”.

Pois (tem razão o Pe. Fabro) vivemos num tempo de incompatibilidade e rupturas: ruptura entre o espiritual e o temporal, entre o passado e o presente, entre as estruturas materiais da sociedade e seus princípios morais. Ao passo que a “intelligentzia”, totalmente alheada ao povo, entrega-se à estéril ruminação com que um marxismo escolástico se debruça sobre os destroços de um sonho, a exploração comercial do mass-media dispensa esse mesmo povo os produtos cada vez mais estereotipados de uma cultura previamente desossada. A essa separação entre a elite consciente e o povo, acrescenta-se o divórcio entre as gerações, o fenômeno que em certos setores assume uma forma aguda (hippies, beatniks, drop-outs) de rejeição da idéia de continuidade cultural, de tradição e de progresso individual. Sem dúvida, é contra uma imagem deturpada do homem que se volta essa rebeldia, mais vai além, passa de toda conta, e rejeita qualquer participação na sociedade. Esse aspecto não escapou aos analistas mais prevenidos. A propósito dos incidentes de Berkeley em 1965, escrevia Leslie Fiedler: “O objeto contra o qual os estudantes protestavam, vi-me levado a crer, era principalmente a noção de homem que as universidades procuravam inculcar: uma versão burguesa e protestante do humanismo, acarretando a justificação pela racionalidade, o trabalho, o dever, a vocação, a maturidade, o sucesso; e, concomitantemente, uma concepção da infância e da adolescência como períodos especiais de preparação para esses encargos. Os novos irracionalistas... advogam o prolongamento da adolescência até o túmulo; para eles o trabalho, tão obsoleto quanto a razão, é um vestígio (dispensável desde já para vastos setores) de um mundo economicamente marginalizado e pré-automatizado”. [v]

Se nos voltarmos para o setor religioso, logo nos assalta a evidencia de um abismo entre os leigos e o clero (de um lado) e entre este e a hierarquia, de outro, conseqüências do neo-modernismo virulento que opõe a “religião”, tegumento esclerosado, à “fé” princípio de renovação. As rupturas se sucedem. Crise de autoridade: A linguagem de uma sociedade verticalmente disposta em “ordens” ou graus, ou hierarquias, se choca contra o princípio nivelador de um comunitarismo impessoal e igualitário, crise da palavra: o abandono ou a destruição das “mediações”, isto é, das imagens, conceitos e símbolos tradicionais, deixa o pregador totalmente isolado dos seus ouvintes potenciais. Que pensam os homens de hoje da Igreja, que esperam eles dos padres? Para sondar as disposições de um público enigmático muitos se atiram a oferecer as doutrinas que lhes garante a estima de grupinhos. Chocar os fiéis tornou-se um esporte favorito de certos pregadores. Não há dia em que os jornais não espalhem notícias de declarações atentatórias à integridade do dogma e da moral; e não é de inimigos declarados da Igreja, mas de teólogos, de abades ou bispos que partem esses ataques.

Enfim, consideremos as artes; é mais do que flagrante a cisão entre o conjunto da herança histórica e cultural do Ocidente e as manifestações de um vanguardismo interessado acima de tudo em repudiar essa herança.

Todas essas rupturas remontam a uma primeira e primordial ruptura. No limiar dos tempos modernos o filósofo cristão discerne uma espécie de erro angelista, uma concepção ou “projeto” que faz do ser humano uma realidade incomparável, um mundo fechado, autárquico, como uma forma espiritual perfeitamente arrematada em si mesma em face da existência. Tal é o princípio da Imanência, que gera o individualismo.[vi] Eis a esse propósito um texto de Maritain: “O espírito de independência absoluta que em última análise instiga o homem a reivindicar a aseidade, e que podemos chamar o espírito da Revolução anti-cristã, introduz-se vitoriosamente na Europa com a Renascença e a Reforma (...) (O homem) subtrai-se a Deus pelo anti-teologismo e ao ser pelo idealismo; ele se redobra sobre si mesmo, tranca-se como um todo-poderoso na sua própria imanência, faz girar o universo em torno do seu cérebro, enfim adora-se como autor da verdade pelo pensamento e como autor da lei pela vontade”. [vii]

A ruptura entre a ordem natural e Deus, princípio transcendente do Universo, tem como corolário na ordem do conhecimento a ruptura da inteligência com o mundo da realidade extramental. Pois entre o espírito divino e o nosso há a mediação das coisas. “A coisa é medida pela inteligência divina, de onde deriva a sua verdade ontológica; mas por sua vez constitui a medida da noção que nos fornece e onde o nosso espírito encontra a sua verdade lógica”. [viii] Fazendo das idéias o próprio objeto da inteligência, as realidades atingidas em última instância pelo seu ato, o idealismo separa o “sentido” das coisas do seu ser, isola o domínio dos significados (ou “intenções” da mente) do domínio da existência em si; que se torna então problemática.

Ao mesmo tempo o humanismo orgulhoso que predomina na cultura a partir da Renascença é todo orientado para a “epifania do homem exterior” o qual, como observou Gustavo Corção, não é o homem sensual, mas “aquele que mesmo nas coisas do espírito usa os critérios das exterioridades”. [ix]

Não há contradição entre essas duas posições, a saber de um lado o angelismo, o racionalismo, a auto-suficiência, do outro a exterioridade, o “moi haissable”, os critérios do “homem carnal”. Em primeiro lugar a “conversão ao mundo” é uma conseqüência imediata do orgulho, ou melhor da apostasia, que é a sua forma primordial. “Pelo fato de não querer submeter-se a Deus, ensina Sto. Tomás, o homem é levado a desejar desmedidamente a sua própria excelência, colocando-a nas coisas deste mundo” (I  IIae Q. 84 a 2). Desde logo, para o homem e as civilizações orgulhosas que nascem desse movimento de isolacionismo espiritual, o índice e o critério mesmo da perfeição consistirá no domínio sobre a natureza e na abundância dos bens materiais que, através desse domínio, o engenho humano conseguir arrancar da terra. Em segundo lugar, se para Sto. Tomás e a filosofia tradicional a realidade se apresenta como constituída anteriormente a toda atividade da nossa mente, aqui ao contrário a Razão é constitutiva do ser; sua atividade natural consiste em impor formas inteligíveis à realidade exterior reduzida aos seus elementos. Não há senão, de um lado, o Espírito: impessoal, insensível, separado; de outro lado a matéria: isto é elementos agregados ao acaso, que é possível dispor de outro modo. É de fora para dentro, e é a partir desses elementos ou resíduos singulares, permutáveis, insignificantes por si mesmos, a que a análise reduziu previamente o mundo das naturezas, que a Razão autárquica e promovida a Absoluto irá reconstruir ou reconstituir as essências e formas do universo. É muitas vezes necessário retocar e até refazer, conforme os esquemas da mente, essas toscas figuras que são as “naturezas”. O tema obsessivo da “reforma das estruturas” não têm outra origem. A chamada “revolução” é a sua conseqüência. Vasta e profunda mudança presidida por uma idéia gloriosa e abstrata, reforma e expansão do indivíduo através do rearranjo ou re-disposição dos elementos materiais do universo reduzidos, graças à abstração, à condição de simples matéria para as operações do pensamento e, ao mesmo tempo, graças à máquina, à condição de matéria-prima para as transformações da técnica, eis em poucas palavras o “mito da Revolução”. Psicologicamente, a revolução é um projeto de aperfeiçoamento do homem presidido por uma “imagem ideal”, uma realidade humana abstrata, dotada de razão “em si”. O fato dessa realidade ser “em si”, isto é, desligada das condições de efetivação concreta em que a essência humana se realiza de fato, acarreta, como já salientamos, a mecanização da vida, a alienação do homem e todas as rupturas de que adoece a nossa civilização.

Com efeito, depois de romper com Lutero a unidade cristã e de inculcar no pensamento filosófico o fermento do Racionalismo, o princípio imanentista desemboca no século XVIII sob a forma de um antropocentrismo apaixonado e radical. Para essa “religião do homem”, o Iluminismo, convergem o naturalismo moral dos empiristas, (o utilitarismo) o culto da razão do século XVII e o naturalismo religioso, isto é, a substituição da religião revelada por um deísmo abstrato. Todas essas correntes levam à mesma desvinculação da realidade concreta. Todas sem exceção empurram no sentido de uma reforma radical do homem através das estruturas do pensamento e da ação reformuladas numa nova ordem social. Era fatal que isso tudo se canalizasse para o pensamento político que inspirou o movimento de cabal subversão da antiga ordem cristã conhecido por revolução francesa.

A revolução é geralmente aclamada como o advento na Idade Moderna do princípio democrático. Há porém uma importante distinção a fazer entre a democracia, doutrina da participação do maior número na direção da coisa pública em razão da sua consciência do bem comum, e o democratismo, isto é, o postulado de que o poder emana não de Deus, passando imediatamente, como queria Suarez, para o povo organizado num corpo social, mas do homem; do homem-povo, do homem-número, ou, como hoje dizemos, do homem-massa, fonte de todo direito e de toda a autoridade através da expressão indivisível, infalível e irrecorrível da “vontade geral”. Esse é o princípio não da democracia, mas dos sistemas totalitários, em que o poder é facilmente empolgado pelos intérpretes carismáticos das “correntes históricas”, em nome dos anseios que para além do bem e do mal palpitam no inconsciente das coletividades. De onde o radicalismo dos sistemas revolucionários. Apresentando-se como uma “filosofia total do homem e da sociedade”, (como diz Salleron) os regimes derivados da revolução francesa reclamam a adesão exigida por uma religião nova. “Todas as revoluções civis e políticas, observa com profundidade Alexis de Tocqueville, tiveram uma pátria e a ela se limitaram. A revolução francesa não conheceu um território próprio; ao contrário, uma de suas conseqüências foi apagar de algum modo do mapa as antigas fronteiras. Vemo-la aproximar ou dividir os homens a despeito das leis, das tradições, dos caracteres, da língua, tornando às vezes os compatriotas inimigos e os estrangeiros irmãos; ou melhor ela formou, acima de todas as nações particulares, uma pátria intelectual comum, da qual os homens de todas as nações puderam tornar-se concidadãos (...). Por isso, se quisermos exprimir a sua essência por meio da analogia, é às revoluções religiosas que devemos comparar a revolução francesa” [x] “A revolução não veio instaurar um regime político novo; ela instaurou uma filosofia nova, uma religião nova”, escreve de seu lado Salleron. A revolução exige a adesão a um dogma, a um novo princípio de legitimidade do poder; ela reveste os seus eleitos de uma investidura sacral; enfim, a partir daí as “revoluções” se exprimem por um ato de fé: a fé democrática, a fé no mundo, no progresso,na ciência, no futuro” [xi] .

Essa fé, o “progressismo”, é o relativismo filosófico associado a uma idéia de progresso necessário. Tudo evolui, tudo muda sem cessar, e muda automaticamente para melhor. Verdades, doutrinas, certezas em matéria de ciência ou conduta também evoluem para se adaptar ao tempo. A verdade não preexiste ao processo histórico, mas este é que faz a verdade ou é a própria verdade “se fazendo”. Verdadeiro é o que se adapta ao surto ou élan da vida. Bom o que está na linha do progresso ou da História.

Um dos mais nefastos efeitos dessa ruptura é desligar o homem das suas raízes no tempo e no espaço. (Pior do que isto é fazer desse desligamento um bem, a condição mesma do progresso). É por oposição ao passado, e graças a um rompimento das continuidades impostas por uma concepção orgânica do crescimento, que o homem progride. Progride na medida em que se desumaniza pelo esquecimento ou pela negação de suas fidelidades. Em conseqüência, o próprio ambiente físico da civilização: a cidade, a natureza humanizada, os monumentos do passado — enfim todos os testemunhos concretos de uma continuidade existencial — são tranqüilamente sacrificados; vemo-los mais ou menos em toda parte abandonados, mutilados, quando não impiedosamente arrasados em nome da utilidade e do progresso técnico. A técnica é uma preciosa conquista do homem e um dos dados irreversíveis da nossa época. A visão técnica considera a realidade como um meio de dominação do homem sobre o universo. Ela focaliza os aspectos formais subjacentes a todo o sensível e traduzíveis em termos de quantidade, deixando de parte, por princípio, as diferenças qualitativas. Vê-se então claramente porque a visão técnica não pode ser tomada como ponto-de-vista central. Enquanto objeto de perspectiva técnica, a natureza aparece ao homem não como um universo articulado de formas, mas como um campo homogêneo de propriedades físico-químicas ou como matéria-prima para a elaboração de um mundo de artefatos.

A visão técnica é normalmente limitada e contida por outra perspectiva: a perspectiva ou visão ética. Tomada como perspectiva central e dominante, eis o tecnicismo. “De um lado, escreve o P. Marie Martin Cottier, as motivações da pesquisa científico-técnica estão longe de ser sempre de ordem científica ou técnica; depois, “concretamente a conquista técnica se insere sempre num projeto ético”. Uma coisa é o mundo da técnica, ou mesmo a perspectiva técnica sobre o mundo, outra coisa a predominância da razão técnica “condicionando o conjunto da visualização do mundo e do homem”. [xii]

Se, portanto, ao culto da inconseqüência (também chamado “religião do progresso”) acrescentamos o tecnicismo, ou seja, a subordinação do universo ético à capacidade racional de transformar a natureza, e se lembrarmos que, com a aplicação preferencial dos recursos e do engenho humano nesse campo, a eficácia e o alcance dos meios técnicos crescem continuamente, facilmente vislumbraremos a gravidade da ameaça que daí se levanta contra a humanidade.

Citei acima um texto de “L’Ancien Regime et la Révolution”. Debruçando-se no despontar da era liberal sobre a gênese e o espírito da realidade social, ou melhor, sobre o novo tipo de sociedade que então se inaugurava, o pensador e analista extraordinário que foi Alexis de Tocqueville lançou um olhar cuja amplidão abrange num só relance o princípio e os fins. Não lhe escapou o caráter peculiar da mentalidade revolucionária: o espírito radical de reforma (“Comme la Révolution avait l’air de tendre à la régénération du genre humain plus encore qu’à la reforme de la France...”) o entusiasmo (“elle a allumé une passion que (...) les revolutions politiques... n’avaient jamais pu produire”), o proselitismo, que por sua amplidão merece o nome de religioso. “Elle est devenue elle-même une sorte de religion nouvelle”. Religião do homem, mas do homem universal, abstrato, do homem coletivo. “A revolução francesa, diz Tocqueville, ... considerou o cidadão de um modo abstrato, fora de todas as sociedades particulares, assim como as religiões consideram o homem em geral, independentemente da nação e do tempo”.

Esse espírito de obstinada “generalidade”, de recusa do concreto, de desapreço da realidade histórica está presente na obra dos seus teóricos e inspiradores, sejam os publicistas e pensadores políticos, ou os “economistas”. Falando dos primeiros assinala Tocqueville que a sua condição mesma (o completo alheamento aos problemas da administração, ao inverso do que se dava na Inglaterra) “predispunha-os ao gosto das teorias gerais e abstratas em matéria de governo... Não tinham a menor idéia dos perigos que acompanham sempre as revoluções, até as mais necessárias. Nem sequer os pressentiam... Tornaram-se assim muito mais afoitos nas novidades que propunham, mais apaixonados de idéias gerais, mais ferrenhos contemptores da antiga sabedoria, mais confiantes ainda na sua razão individual”.

Dos “economistas” (ou fisiocratas) traça Tocqueville este perfil magistral: “... É já reconhecível nos seus livros esse temperamento revolucionário e democrático que nós tão bem conhecemos; eles não apenas têm aversão a certos privilégios; a simples diversidade lhes é odiosa; adorariam a igualdade até a servidão. Tudo o que tolhe seus planos merece apenas a destruição. Os contratos inspiram-lhes pouco respeito; os direitos privados nenhuma consideração; ou antes, a seus olhos não há mais a bem dizer direitos particulares, mas apenas uma utilidade pública. E, contudo são gente geralmente morigerada, de hábitos tranqüilos: homens de bem, honestos magistrados, hábeis administradores; mas a índole característica da sua obra os arrasta. O passado é para os economistas o objeto de um desprezo sem limites. (...) Não há instituição tão antiga e que pareça tão bem fundada na nossa história de que não exijam a abolição, por pouco que ela prejudique a simetria de seus planos. Um deles propôs a idéia de abolir de um golpe todas as antigas divisões territoriais e mudar os nomes de todas as províncias, quarenta anos antes que a Assembléia constituinte a executasse”.

O que expus até aqui é suficiente, se não me engano, para caracterizar a natureza das preocupações que em toda parte alertam os verdadeiros humanistas. Não é preciso encarecer a necessidade de reagir contra o Moloch insaciável e ao mesmo tempo infinitamente estúpido que é o “progresso” tornado religião, ideal supremo, objeto de devotamento incondicional.

Os malefícios dessa religião do progresso são patentes em torno de nós. A cidade transforma-se num organismo desconforme, afetado de paralisia agitante; inerte enquanto centro de cultura ou de civismo, mas furiosamente bracejante, saltitante, saculejante em todas as exterioridades da vida gregária. A arte agoniza. A família se fragmenta. A universidade, dedicada não à formação do homem, mas à preparação de profissionais, irradia barbárie tecnológica. Enfim, a religião, corroída (segundo Karl Rahner) por uma “heresia sob a forma de indiferença”, transforma-se num amálgama de “opiniões” sem eixo dogmático, frouxamente agregadas por um vago pacifismo.

Eis porque é imperioso tomar consciência das verdadeiras dimensões de uma doutrina humanista. Reconhecer antes de tudo os limites da nossa natureza: de um lado sua exigência de devotamento e de transcendência; de outro seus anseios de continuidade e de inserção nas verdadeiras “imanências” (ou permanências) terrestres (a família, a profissão, a nacionalidade, a naturalidade, as comunidades de culto etc.) nas quais se apóiam e de onde arrancam os surtos para o ilimitado, a progressividade, o “dépassement”. Condicionar assim um instinto realista na escolha de nossos critérios de ação.

Mas a melhor maneira de lutar contra os males que apontei acima é da ordem do testemunho concreto. Em primeiro lugar (segundo as luzes que tivermos) praticar a humilde adoração. Depois, restaurar em nós outros o sentimento de piedade natural, inseparável do respeito pelas raízes humanas, terrestres, da cultura. Reavivar, pelo estudo do passado, a consciência das continuidades históricas. Cultivar a língua, honrar os modelos; estudar as formas de arte e o patrimônio de costumes e de crenças recebidas por tradição.

Fundar os centros de estudo e de cultura dedicados à difusão e à prática desses princípios.

 

II

A PAIXAO IGUALITÁRIA

Os moços que em toda parte inquietam os meios universitários, e que, ainda recentemente, iniciaram uma sublevação social em França, podem ser vistos alternadamente sob uma luz favorável ou desfavorável, conforme apareçam como protagonistas de uma revolta dirigida contra a mecanização da vida, a onipotência, ora suave ora violenta, do Estado moderno, enfim, contra a desordem constituída em sistema (um sistema baseado na renúncia moral do indivíduo) ou então como mais um grupo de pressão que, levando ao extremo essa mesma abdicação da pessoa, agita a bandeira terrorista do “nulismo” ou “aniquilacionismo”, a fim de obter do governo facilidades que redundarão afinal no endurecimento do Sistema.

Pois, como observou o P. Alain Birou, a sociedade tornou-se uma grande Potência ou Sistema; o homem é apenas uma engrenagem dessa “máquina técnico-burocrática”, e dela só escapa “na medida em que consegue evadir-se pelos interstícios da sua quotidianidade aplastada”, a fim de encontrar-se a si mesmo e à realidade da vida.

“Os meninos da New Left, escreve o Sr. Paulo Francis, ... são anarquistas no sentido de que repelem a onipotência do Estado moderno (...) ou a tirania, em nome de ideologias salvacionistas. Eles próprios não têm ideologia definida, mas combatem sistematicamente toda e qualquer forma de coação à liberdade instintiva, à identidade individual, ambas negadas pelo Estado Tecnológico, seja ele capitalista ou comunista”. (Correio da Manhã, 2-6-1968).

O conhecido comentarista chama de anarquista aos rapazes do New Left. Ora, a palavra “anarquismo” presta-se aqui à confusão. Na medida em que a autoridade,  participação moral na sociedade, se opõe ao poder, que é o peso material das estruturas, o Estado tecnológico representa em rigor de termos o princípio anarquista; é o resultado histórico da substituição do governo de homens pela “administração de coisas”. Com efeito, anarquia (como observou Augustin Cochin) quer dizer não negação da ordem, mas negação da autoridade. (Evidentemente, não se pode exercer autoridade, mas só domínio sobre as coisas). Na medida em que visa à instauração de uma ordem sem autoridade, o próprio marxismo é uma forma de anarquismo.

O anarquismo é a ausência de um princípio humano no tecido mais íntimo da sociedade. Do lado do cidadão, esse princípio humano chama-se participação voluntária, obediência, lealdade; do lado do dirigente, autoridade. A autoridade é um princípio vital e que nessa medida deve ser participado e distribuído pelo corpo social [xiii]. Foi lastimável que os sistemas regressivos dos fascismos comprometessem o princípio de autoridade na medida em que pretenderam restaura-lo sem alterar no seu cerne o sistema liberal, simplesmente jogando o poder monolítico do Estado a favor de uma “ordem exterior”, que não passa afinal de uma pseudo-ordem do “anarchisme masqué” dessa mesma sociedade liberal.

De qualquer sorte, sem um princípio moral de estruturação, que se traduza visivelmente numa direção publicamente reconhecida e fundada em autoridade (e não secreta e fundada na coação), não há sociedade propriamente dita nem participação humana na sociedade. No mundo de hoje, escreve Stuart Holroyd, intelectual inglês da geração dos “angry young men”, “as forças políticas e econômicas se deslocam como imensas geleiras, numa progressão geológica e inexorável, que escapa à compreensão e à direção do homem. A única maneira de me sentir entrosado num grupo humano — acrescenta Holroyd — seria participar por minha própria conta e de modo original nos seus processos. E para participar desse modo, era mister que lhe pudesse comunicar o meu sentimento dos valores” [xiv]. Essa aspiração básica vê-se hoje em toda parte frustrada. No estado tecnológico, não há participação vivida nos ideais sociais. Não há portanto sentimento dessa participação, o que claramente se reflete no romance contemporâneo. Numa “sociedade de massa” o romancista vê-se por assim dizer perdido no meio de uma multidão desconhecida. Ora, para haver romance lembra Michel Butor, “é indispensável que a narrativa romanesca apreenda o conjunto da sociedade não do exterior, como uma multidão que consideramos com o olhar de um indivíduo isolado, mas do interior, como alguma coisa a que pertencemos” [xv].

A origem desse estado de coisas remonta ao século XVIII. Com efeito, a idéia de uma sociedade diferenciada, disposta em “ordens” ou hierarquias, dotada de uma elite dirigente e de uma direção pessoal e responsável, repugnava profundamente aos iluministas. A supressão da antiga nobreza representou a abolição não de uma classe dominante como qualquer outra, mas de uma elite cuja relação com o povo era natural e visível e cuja eminência baseava-se na consagração a ideais universalmente reconhecidos. A revolução que derrubou a antiga nobreza não trouxe a mera substituição de uma classe por outra; trouxe o advento de um poder impessoal e secreto. Pois a instauração de uma nova elite responsável e de um principio legítimo de autoridade era incompatível com a religião do igualitarismo.

A nova religião democrática volta-se frontalmente contra os valores da antiga cristandade. “Fé no mundo, no progresso, na ciência, no futuro; fé na vida, fé em tudo o que vem de baixo e vai ao mesmo tempo para cima e para a frente”. Eis nas palavras de Louis Salleron a essência do novo Credo [xvi]. Uma tal concepção dispensa qualquer princípio moral de estruturação social e portanto todo critério que sirva para avaliar objetivamente atitudes, situações ou valor pessoal em face de algum princípio. O conceito de bem comum tende a se confundir cada vez mais com a prosperidade material da sociedade. Não há uma classe moralmente responsável pelo atingimento dos valores comuns; o progresso resulta automaticamente da expansão dos conhecimentos. O regime político é orientado para o que Cochin chama “democracia pura”, isto é, “o regime de permanente consulta à opinião”. De onde a abolição da monarquia. “Através da monarquia, a Revolução visava ao princípio cristão de que toda a autoridade vem de Deus. Daí por diante toda autoridade proviria do homem: do homem eleito, do homem povo, do homem número” [xvii]. Ao “ancien régime” baseado na visibilidade dos laços pessoais (como os laços de família ou de “allegiance” (lealdade jurada) do antigo feudalismo e na natureza pública dos critérios de diversificação social, sucedia a sociedade secreta dos magnatas e a influência irresponsável dos demagogos, derivada do poder anônimo das massas.

A instauração do novo sistema — o sistema do poder impessoal (que na realidade é um poder pessoal e secreto) — deve-se em grande parte às chamadas “sociedades filosóficas” ou “societés de pensée” (como a franco-maçonaria) onde se travou o combate contra os princípios cristãos do ancien régime [xviii]. Essas associações proliferaram extraordinariamente na Europa do século XVIII, sobretudo nos anos que precederam a Revolução Francesa. “Um pouco antes da revolução, — escreve Augustin Cochin — apresenta-se um fenômeno ainda mal conhecido, de que não divisamos claramente nem as causas nem as últimas conseqüências: as “Sociedades”. As Sociedades; esse termo é empregado sem qualquer qualificação. Em outubro de 1788 ouve-se dizer que os parlamentares estão de antemão vencidos porque foram “expulsos de todas as Sociedades”. Citam-se as palavras pronunciadas por tal personagem influente numa “Sociedade”. Menciona-se a opinião das Sociedades (...) Essa maneira de falar tem a sua razão. Não se trata mais dos salões literários do século XVII, mas das sociedades de “filósofos” (...). 

“Graças a Voltaire e aos Enciclopedistas, a ‘república das letras’, simples alegoria em 1720, tornou-se por volta de 1770 uma palpabilíssima realidade (...) Formou-se um corpo de iniciados, uma “malta” para dar caça à “infame”. No seu livro sobre “Os Filósofos e a Sociedade francesa do século XVIII” com muita razão insistiu Roustan na formação, por alturas de 1760, da “seita filosófica” e do que ele chama o “clero laico”. A seita reina na Academia, sob d’Alembert, dispõe da censura através de Malesherbes, lança interdições sobre os livros dos adversários, atira seus autores na prisão de Vincennes e da Bastilha, enfim, exerce sobre a opinião e sobre o mundo das letras uma espécie de terror seco” [xix].

No regime que Cochin chama “democracia pura” ou regime de permanente consulta à opinião (em contraposição à democracia parlamentar e constitucional), as sociedades de idéias (a que sucederam em certa fase os clubes jacobinos) tornam-se o órgão encarregado de segregar ou “sintetizar” a opinião, isto é o pensamento impessoal e socializado. “Para que a opinião governe (...), escreve Cochin, é preciso que seja “organizada” ou em outras palavras fixada, formulada, centralizada”[xx] .“Na democracia pura, ou democracia direta, a vontade atual da coletividade a todo momento dita a lei: desde logo, não é possível conceber o governo pessoal do povo a não ser sob a forma de consulta permanente, logo de Sociedades permanentes de livre discussão”[xxi]. Mais precisamente: as sociedades de idéias são o mecanismo através do qual a opinião pública é suscitada e depois manipulada, canalizada, dirigida e afinal escamoteada e substituída, como num passe de mágica, pela opinião anônima, que é não propriamente a opinião da maioria, mas a opinião abstrata do povo “em si”. Daí, sob pena de contradição intrínseca, a necessidade do segredo social, do segredo como peça social constitutiva dessas organizações. O poder que maneja de fato a sociedade, e que evidentemente é o de alguém, ou de alguns, é necessariamente oculto.

Cochin nos sugere como se faz essa manipulação. “Toda deliberação oficial é precedida por uma deliberação oficiosa e por ela determinada; todo grupo franco-maçônico é ‘profano’ relativamente a outro, quer dizer, dirigido sem o saber por um grupo mais restrito, cujo número é suficientemente reduzido para atuar com unidade de ação... A força e o perigo da instituição maçônica, diz ele, consiste em dar a todas as suas decisões a aparência da vontade geral”. Assim: “(1°) Quanto à composição das lojas. Nenhum membro é recebido sem a aprovação da maioria. Será isto uma garantia? De modo algum; o candidato deve ser apresentado por dois membros do comitê; a maioria não o conhece, e vota ao acaso. (2°) Quanto às moções. São votadas pela maioria? Sem dúvida, mas redigidas pelo comitê e apresentadas por ele” [xxii]. Em outras palavras, o anonimato dos dirigentes, graças ao qual é mantido o mito da “vontade geral” não é um segredo participado por todo um grupo, mas um princípio secreto de organização aplicado ao próprio grupo. Não apenas o poder, mas o princípio dele, o mecanismo atual do poder é secreto [xxiii].

Antes de entrar na sua fase política propriamente dita, fase dos “complôs” de opinião, fase de pressão extra-legal, oficiosa, a entravar e tiranizar a ação dos poderes constituídos (1789-1793), a que sucederá uma breve fase revolucionária (1793-94), os clubes passaram por um estado filosófico (1750-1789). Nesse período são Academias ou sementeiras de uma república literária ou filosófica, uma espécie de “commonwealth” dos espíritos. As “sociedades” realizam como que o ensaio geral da nova ordem política. “Seu objeto, diz Cochin, é suscitar uma opinião pública. São ao mesmo tempo agências de notícias, sociedades de encorajamento ao patriotismo e tribunas de espírito público. Para atingir esse fim criam uma república ideal, à margem e à imagem da verdadeira, possuindo uma constituição, magistrados, povo, honras e conflitos... Debatem-se as questões do dia, julgam-se os homens de governo (les hommes en place). Em suma, esse pequeno Estado é uma cópia exata do grande, com uma única diferença: não é grande e não é real. Seus cidadãos carecem tanto de interesse direto, como de responsabilidade empenhada nos assuntos de que discorrem (...) Nesse Estado das nuvens, “dans cette cité des nuées, on fait de la morale loin de l’action, de la politique loin des affaires; c’est la cité de la pensée (...) Esse estado de coisas, prossegue Cochin, tem graves repercussões sobre o movimento das idéias, pois impõe de antemão, e sem apelo, aos escritores e ao público, o ponto-de-vista intelectual, irreal. Nunca talvez esteve a corrente geral das idéias, da literatura, tão afastada do mundo das realidades, do contato com as coisas como nesse fim de século. Basta citar os filósofos da política como Rousseau e Mably, um historiador como Raynal, economistas como Turgot, Gournay e a escola do “laisser faire”, homens de letras como La Harpe, Marmontel, Diderot” [xxiv].

Essas sociedades são também seminários encarregados da formação do “clero laico” ou melhor “laicista”. Pois a partir do século XVIII, como diz Marcel de Corte, “a antiga elite foi substituída por uma classe dirigente sem exemplo na história (...) Nesse momento, a tarefa de conduzir a vida humana foi assumida por uma nova aristocracia: os ‘filósofos’ (...) o partido intelectual, como dizia Péguy, a “intelligentzia” na acepção empregada pelos russos, os “mandarins” de Simone de Beauvoir. Homens de letras, artistas, cientistas, pensadores, todos os que Thibaudet reunirá na sua “República dos Professores” e que hoje situaria na tecnocracia dos especialistas da razão prática, da política, da informação, das relações sociais, da economia e até (desde o recente Concílio) da religião, todos ou quase todos trazem ao homem contemporâneo as suas mensagens, injunções, instruções, diretivas e palavras de ordem...” [xxv]. Todos ou quase todos (acrescento eu) são “alienados”, isto é, desarticulados da realidade concreta, uns porque, em razão mesma da sua especialidade (ou antes da filosofia da especialidade) renunciaram a uma visão global em proveito de uma visão parcial (mas, segundo eles, eficaz) das coisas; outros porque o seu postulado do primado da praxis (conhecer é ordenar ou compor, refazer o objeto para produzi-lo) importa a superfluidade do pensamento especulativo. Para eles trata-se não de saber o que é o homem, mas de mudar o homem (ou de criar o homem) isto é impor o molde a priori de uma natureza abstrata sobre criaturas viventes. A verdadeira filosofia é uma dedicação à sabedoria; por isso não podem esses letrados considerar-se filósofos a não ser num sentido todo particular. Como os demais membros da intelligentzia, são especialistas das idéias gerais, isto é, os mais desentrosados de todos os alienados. Se, como eles próprios julgam, o papel do pensamento consiste não em descobrir o que é mas em transformar a realidade, não há lugar na sociedade para os “teóricos”. Profetas do progresso necessário, sua função é abrir caminho para outros reformadores, na medida em que se apagam e vivem na sua carne o drama da ineficácia. O que não impede que todos eles, como diz de Corte, se consideram investidos de uma missão: reformar os costumes, mudar as idéias e os gostos, propor e impor uma nova concepção do mundo, fazer que das retortas da Revolução ou das mágicas da Revolução surja um homem novo, uma sociedade nova”. São estes os grãos-sacerdotes da nova religião democrática, os arautos da deificaçao do Homem Coletivo, os profetas da instauração do seu reino, o reino da fraternidade universal sob a democracia planetária.

Essa “religião democrática” tem duas componentes inseparáveis: a paixão igualitária e o pensamento utópico, a primeira do lado da vontade, o segundo da inteligência, aquele predominando no seio da massa, este último na “intelligentzia”.

Comentemo-los por partes:

A paixão igualitária. Em meado do século passado, Alexis de Tocqueville apontava no igualitarismo, esse importante componente da mentalidade revolucionária, ou antes no predomínio da paixão igualitária sobre o amor da liberdade, o fator destrutivo por excelência das liberdades democráticas. Com profética penetração, o famoso autor de “Democracia na América” observava: “Em meio às trevas do futuro podemos desde já divisar três verdades muito claras: a primeira é que os homens de hoje se vêem arrastados por uma força desconhecida, que será talvez possível regular e amortecer, mas não anular, que ora os tange suavemente, ora os precipita para a destruição da aristocracia; a segunda é que, entre todos os tipos de sociedade, as que mais dificilmente escapam por muito tempo ao governo absoluto são precisamente as sociedades onde a aristocracia não mais existe nem mais pode existir; a terceira enfim é que em nenhuma outra produz o despotismo efeitos mais perniciosos do que nessas tais sociedades”.

“Aí, como não mais se acham ligados entre si por nenhum laço de casta, de classe, de corporação ou de família, os homens tendem a se preocupar apenas com seus interesses particulares, sempre demasiadamente propensos a só considerar a sua pessoa e a se trancar num individualismo estreito, de onde todo espírito público é banido. Longe de lutar contra essa tendência, o despotismo torna-a irresistível, pois retira aos cidadãos toda paixão comum, todo interesse mútuo, toda necessidade de se entender e toda ocasião de agir de concerto; mura-os por assim dizer na sua vida privada”.

“Na sociedade dessa espécie, onde nada é fixo, cada um se sente aguilhoado pelo temor de descer e pelo ardor de subir; e como o dinheiro, que aí se tornou o traço que serve principalmente para classificar e distinguir entre si os homens, adquiriu ao mesmo tempo uma singular mobilidade, passando incessantemente,de mãos em mãos, transtornando a condição dos indivíduos, elevando ou rebaixando as famílias, ninguém estará praticamente dispensado de fazer contínuos e desesperados esforços para adquiri-lo. O desejo de enriquecer a todo transe, o gosto dos negócios, o amor do lucro, a busca do bem-estar e das vantagens materiais serão pois nessas sociedades as paixões mais comuns (...) Ora, é da essência mesma do despotismo favorece-las e incrementa-las” [xxvi]. Sobretudo depois da Restauração e da Monarquia de Julho, nós vemos a burguesia insinuar-se no lugar da nobreza, tentar desempenhar o seu papel, adotar seus princípios e a sua responsabilidade de elite. A situação porém mudara radicalmente. De um lado o princípio do igualitarismo se opunha à instauração de uma elite responsável. De outro as virtudes caracterizavam a antiga classe média: a operosidade, a poupança, a competência profissional, virtudes que exerciam um papel benéfico na sociedade, quando a elas se sobrepunham os princípios de honra e de legitimidade, postas agora a serviço da concorrência como valor supremo, levam — como é intuitivo — à destruição de toda solidariedade social. Por trás da hierarquia aparente das situações de família, da prosperidade nos negócios, da respeitabilidade visível, a fonte real do poder continuava oculta e sua influência emanava de manobras e coalizões tramadas entre indivíduos e grupos desconhecidos. Depois de derrubar a nobreza “ancien régime”, o princípio igualitário continua a minar o poder dos novos “barões” do aço e das finanças. De onde, como observou o historiador Arnold Hauser, a sufocante ansiedade que permeia o mundo dos romances de Balzac.

O pensamento utópico. O pensamento utópico — já o vimos — fornece o combustível mental de que se alimenta a paixão igualitária. O horror de todas as desigualdades reclama uma concepção abstrata do indivíduo reduzido aos traços estereotipados do “homem em geral” e perfeito no seu estado de natureza, antes que a civilização o perverta. O homem nasce bom, a sociedade o corrompe. Para os utopistas, naturalmente, essa sociedade são as instituições herdadas do passado cristão. Por isto, removidos os “preconceitos” recebidos por via de tradição, nada se opões à realização do paraíso na terra.

O pensamento realista (foi um ponto em que já nos demoramos) parte do homem concreto, com sua natureza dividida, sua herança de erros, sua ânsia de pureza, sua “nostalgia da lama”. É a ele que se dirige a mensagem cristã. Os homens são salvos um por um. É na alma de cada homem que se realizam a graça e as outras formalidades sobrenaturais. Ao contrário, o pensamento utópico põe as suas esperanças no “homem universal”, que é uma entidade coletiva, e prega uma salvação social. Pela mudança das estruturas, o homem será divinizado.

Esse “homem em geral” resulta da concepção idealista de um “eu absoluto” (ou eu ideal) separado do eu empírico (isto é, real). Do homem real, nós já o vimos, o “homem universal”, como é o “ser genérico” de Feuerbach, a Razão em geral dos Aufklärers ou o Eu absoluto dos idealistas, apresenta só os traços sumários mas imprescindíveis de que revestimos na imaginação a natureza abstrata ou comum (traços como subsistir por si mesmo e ser distinto dos demais) para formar a noção de “um homem qualquer” (aliquis homo). É com esse elemento de base, a mais apagada e dócil das criaturas, uma abstração personificada, um ser de razão, que os Iluministas e revolucionários de 1789 construíram o moderno liberalismo.

Imensa é a utilidade desse ser de razão, observou D. H. Lawrence, num ensaio famoso. Como estalão numérico “ele serve para comparar entre si homens viventes e reduzir a uma comum medida as suas necessidades materiais. Assim, o dinheiro, que em si mesmo não é nada, permite, por redução a uma comum medida, comparar um pernil de carneiro com um volume de poemas de Keats”. Mas tomado como homem universal ou ideal, como elemento básico de uma ordem, como razão de igualdade e móbil da fraternidade, não passa de um monstrengo: um manequim de alfaiate alçado num pedestal. Começa por despojar o homem do que lhe é essencial. Pois o Homem Médio é ainda Lawrence quem fala — representa o que todos os homens necessitam e desejam fisicamente, funcionalmente, materialmente. O homem médio é o estalão das necessidades materiais. As coisas do espírito, essas, não se podem reduzir a médias.

Por isso mesmo a moderna democracia (nós diríamos não a democracia mas o democratismo) e o socialismo, que assentam sobre a Igualdade, ou antes, sobre uma Média, afirma Lawrence, são ideais mortos. São aparelhos (devices) destinados à promoção das mais elementares necessidades de um povo. Prosseguindo, explica o escritor inglês que essa unidade da espécie humana não passa de uma abstração, de uma criação da mente (o que nós chamamos um ser de razão). Mas por aplicação a Pedro, a Antonio, a Tomás, essa abstração tornou-se uma unidade substancial, material, operante. (Ou melhor, foi a unidade substancial que se “abstratizou”). Aí está a raiz da desordem. Está em que o “mundo fictício, ideal, do homem é imposto (ou sobreposto) a criaturas vivas, homens e mulheres que por sua vez se convertem em unidades abstratas, mecânicas, funcionais” [xxvii].

Sua “vontade suposta” (volonté supposée) ou volonté générale é que está na base do sistema político implantado em 89-93. “Il y a une manière d’agir conformément à la volonté générale sans consulter le peuple, observa Augustin Cochin, c’est d’agir conformément à la raison pure, telle que tout homme l’a em lui (...) violà la volonté du peuple éminemment”. A “volonté générale” não é a vontade da maioria, é a vontade teórica de um homem abstrato (e é também a opinião decantada no alambique das “societés de pensée”). A “sociedade de idéias”, prossegue Cochin, representa por princípio a vontade geral do Povo em si; a assembléia nacional, apenas a vontade da maioria (...). Que é pois essa vontade do povo? A vontade da maioria? Não; é a volonté générale e a vontade geral pode ser a de um único indivíduo. Nem por isso deixa de valer contra todos, pois é a vontade do Povo em si [xxviii].

Outrora, diz ainda, referindo-se ao ancien régime, o mesmo historiador, outrora o direito privado absorvia o direito público. Tudo era pessoal e desigual, o que não quer dizer coagido, mas as liberdades eram privilégios. Cada qual recebia a sua medida, conforme um tratado à parte. Era uma propriedade, como a terra. Os laços de lealdade jurada (allegiance) eram essencialmente pessoais. Tudo tinha um nome. É provável que na democracia do futuro as grandes cidades sejam numeradas. Como regime do “Contrato Social” é que aparece a uniformidade, o que é bem compreensível. O Contrato [xxix] tem como ponto de partida uma igualdade fictícia. A igualdade, com efeito, é aqui o ponto de partida, (...) não o termo, o ponto de tornada contratual, cada um de nós é despojado da sua personalidade. Na democracia do futuro, quando cair a última barreira entre o direito público e o privado, quando todo ato for público, social e regido pelo contrato, nosso eu fictício e igualitário crescerá na mesma proporção e absorverá inteiramente a nossa pessoa. [xxx]

A moral de um homem abstrato, regra de uma virtude fictícia, será também uma moral “teórica”. Foi ainda Cochin quem mais claramente desvendou esse traço da “vertu démagogique”. Quanto ao ideal revolucionário, escreve ele, “ce qui fait sa force c’est qu’il est une morale à l’usage de ceux qui n’en ont pás” (...) É a moral dos que de são só têm a cabeça, e que constroem uma moral com a dialética, uma vida honesta com o auxílio de palavras e uma consciência tranqüila graças ao bom conceito dos outros” (págs. 47-8).

“A virtude demagógica — eis o seu traço distinto — tem curso apenas na vida pública, nunca na vida particular (...). Não é necessário praticar o bem para defende-lo. Com efeito, é um ideal pensado, argumentado. Ao passo que o ideal cristão é por essência um ideal vivido. Para ser um bom pregador é preciso ser um santo: condição necessária, sem a qual é possível não fazer o mal, mas nunca se há de fazer o bem. Ao contrário, é possível ter todos os vícios e ao mesmo tempo ser um excelente advogado da Humanidade. É que esse ideal está na mente, na razão, não no coração. Mas as razoes de um pregador nada são se vêm da cabeça sem passar pelo coração (...)”.

“O revolucionário discute, argumenta, deduz; quando não lhe respondem cuida que venceu. Acaso combatia um erro doutrinário? Longe disso; altercava com um fato, com uma realidade, talvez ilógica, como todo ser real, mas que nem por isto existia menos, a despeito da lógica. É então que ele persegue, fere e mata, pressentindo que ataca uma força superior a suas razoes e que a mera razão não pode sobrepujar a não ser com a violência e a corrupção” (Ibid. págs. 84-5).

E eis ainda uma página de Cochin, que era preciso citar na íntegra e se possível na língua original:

“Tomemos uma cidade típica da França de 1789: nobreza, burguesia, etc. Nenhuma dessas ordens alcança um especial destaque; hábitos muito burgueses em toda a parte; homens nem bons nem maus; não há santos nem demônios; se alguém pratica a caridade, é sempre o vigário, são as ordens religiosas, de resto por hábito, por rotina. O nível em suma é uniforme. Ou melhor, sê-lo-ia, não fosse uma meia dúzia de advogados que se declararam em estado de guerra pelo bem de seus concidadãos, dos franceses ou melhor de toda a Humanidade; estão dispostos a tudo sacrificar: corpo, alma, fortuna, talento e tempo a essa causa sagrada! Teria o Cristianismo nascido de novo em Carpentras? Como se dá então que ao primeiro olhar não reconhecêssemos os novos São Paulo e São Francisco nos cafés que freqüentam diariamente, nos salões? É que nada os distingue dos outros; apenas eles inventaram a virtude.

A virtude demagógica tem uma particularidade: é usada só em público. O cidadão virtuoso está na tribuna, ou no seu gabinete, a compor um panfleto. Troveja pela justiça; pelo bem-estar dos desvalidos, pela solidariedade social; mas em casa, no seio da família, no meio dos amigos, é um pequeno burguês igual aos outros, muito preso aos seus negócios, áspero com os humildes. Os princípios que o norteiam quando fala ou quando escreve são formidáveis demais para que os invoque no círculo restrito de sua vida privada, de seus interesses particulares; sua virtude é um corcel de batalha que monta fremente, cavalga durante as poucas horas (poucas, mas fatigantes) dos torneios oratórios e que se apressa a recolher à estrebaria, terminado o combate.

O que espanta na vida desses revolucionários é a grandeza, a imensidade dos princípios a que conformaram a sua conduta pública comparados com a mediocridade dos princípios que norteiam sua vida particular. A nobreza tinha isto de bom, apesar de seus vícios e fraqueza, a despeito de sua ignorância, de sua tola vaidade: é que estava muito longe desse execrável espírito: subir à tribuna, falar da pátria, da Humanidade, oferecer o peito ao golpes dos tiranos, ofertar até a ultima gota de sangue pelo bem dos concidadãos, chorar, clamar, brandir o punho — e depois voltar para casa e o joguinho habitual com os amigos. Eis o que um advogado de 1789 fazia diariamente e o que um verdadeiro gentleman seria incapaz de fazer.

Quando alguém pretende reabilitar ou louvar um dos grandes homens de 1789, costuma citar trechos de sues discursos: tudo são palavras nessa famosa época” [xxxi].

Notemos mais uma vez que o funesto engano cometido pelo pensamento racionalista e consumado pela Revolução de 1789-93 consistiu não em considerar o homem, os direitos do homem, etc. universalmente mas, como bem viu D. H. Lawrence, em pretender “realizar” essa abstração sem passar pelas complexidades da natureza concreta e portanto em impor ou sobrepor à força um molde ideado sobre criaturas vivas, homens e mulheres que assim se convertem em ‘unidades abstratas, mecânicas, funcionais’”.

Essa “abstratizaçao”, se assim podemos falar, tem lugar tanto no espaço, ou seja no ambiente físico e moral da cultura, como no tempo. Quanto ao espaço da cultura, devemos considerar duas coisas: 1°) a substituição das liberdades pela “liberdade” e 2°) a destruição das “mediações” ou sejam, das instancias coletivas do enraizamento humano.

A propósito do primeiro ponto lembremos, com Augustin Cochin, que “antes de 1789 a sociedade era complexa, as relações dos homens entre si e com o Estado correspondentemente diversificadas. Outrora tudo era pessoal, nada abstrato ou genérico; considerava-se tal homem, tal cidade, tal província; a cidade x gozava de uma situação especial resultante do seu passado, de direitos que adquirira em tal ou qual circunstância e que lhe constituíam um pequeno código à parte” [xxxii]. Nesse estado de coisas, o domínio do direito público e a obra do bem comum não eram certamente negadas, mas a sua integração via-se de certo modo dificultada pela multiplicidade e diversificação dos fatores sociais. A reforma de Rousseau e dos enciclopedistas consistiu não no reforço e alargamento dessa esfera pública, contra a intrusão dos privilégios, mas ao contrário numa privatização absoluta e desta vez dogmática e igualitária de todas as relações sociais. Graças à ficção do “contrato social” pelo qual “cada um se unindo a todos, só obedece no entanto a si mesmo”, o Estado recebia todo o poder e abdicava de toda a autoridade.

“Sob o regime antigo, assinala Cochin, esse contrato não era vago, nem absoluto, nem aplicável a todos os homens e a todas as regiões, como é o de Rousseau; cada cidade, cada província, cada família nobre tinha seus direitos e deveres particulares (...), seu pequeno “contrato social” que, à diferença do de Rousseau, não era absoluto, nem ideal, nem era assinado entre o indivíduo e o Estado, mas sempre entre um grupo ou uma família e o Estado, e real. Tudo isto mudou (...) Doravante cidades, províncias, famílias não terão mais história, ao menos em face da legislação. Os fatos que pouco a pouco modificaram o direito público de cada recanto de província, que eram o fundamento de seu status, que serviam para interpretar os seus costumes, ingressam doravante no domínio privado; a lei conhece só indivíduos, isto é, abstrações. Ocupa-se de Bordeaux enquanto cidade de 60.000 habitantes, de Pedro ou Paulo enquanto cidadãos de tal ou qual idade, etc”. [xxxiii]

A segunda consideração que nos propúnhamos fazer sobre o processo de abstratização do homem no espaço da cultura diz respeito à destruição das comunidades naturais. Historicamente, o modo pelo qual o racionalismo preparou a anulação coletivista do indivíduo foi despoja-lo dos envoltórios onde se encarnam culturalmente os valores ligados ao enraizamento humano da sua personalidade, como a família, a profissão, a pátria, a Igreja. Esses envoltórios, na expressão de de Corte, constituem um “corps de surcrôit” animado pelos valores morais encarnados nessas “transcendências”, assim como a alma se encarna no corpo físico. E a insensatez do racionalismo, como observou ainda o pensador belga, foi querer instaurar uma moral sem previamente encarna-la nos costumes”. Um moral concreta, enviscerada na existência, só pode ser fundada no valor do exemplo”. [xxxiv]

Esses fatores alienantes levam à anulação do indivíduo em face da coletividade. “On ne s’occupe plus d’hommes ni de pays, mais d’abstractions, d’êtres em géneral, ou de circonstances abstraites et prises em elles-mêmes” [xxxv]. O que desaparece da lei moderna, nota Cochin, é 1°) a consideração da personalidade, do caráter próprio de um homem ou de um grupo (...), do presente de cada um; 2°) a consideração da continuidade, da dependência e do laço com o passado de cada um. Desaparecerem a tradição, a família, a história.

Essa observação nos conduz ao tópico sobre a abstratização do indivíduo no tempo. Evidentemente o homem “em si” não tem história. O pensamento utópico só conhece o momento presente. De onde esse terrível atentado contra o homem e contra o espírito: a destruição do passado; primeiro, do sentimento do passado, da tradição; depois, das continuidades encarnadas nos costumes, no ambiente, na cultura; finalmente dos vestígios, dos restos do passado, nas metrópoles da era tecnológica. (Como observava Cocqueville, “o passado é para os economistas o objeto de um desprezo sem limites”).

“A oposição entre o futuro e o passado é absurda, escrevia Simone Weil; o porvir nada nos traz, nada nos dá; nós é que para construi-lo devemos dar-lhe tudo: a nossa mesma vida. Mas para dar é preciso possuir, e nós nada temos, nem vida, nem seiva que não venha dos tesouros herdados do passado, por nós assimilados, digeridos e recriados. De todas as necessidades da alma humana a mais vital é a do passado (...) O passado destruído nunca mais retorna. A destruição do passado é talvez o maior dos crimes. Hoje a conservação do pouco que resta deveria tornar-se quase uma idéia fixa”. [xxxvi]

A necessidade do passado, nós já o vimos, deriva desse instinto vital de conservação, que é particularmente vivaz no ser jovem, pois, como é natural, nele é mais pronta a tendência para conservar as condições constitutivas do seu ser e, por via de conseqüência, é também mais viva, a reação contra toda mudança capaz de afeta-las. E é em suma a fim de conservar a sua forma que todo ser mutável deseja renovar-se. A renovação, com efeito, não é uma mudança pura e simples, uma mudança pela mudança (pensemos numa árvore que refloresce na primavera) mas uma reposição das mesmas formas no seu vigor primeiro. Por isso o culto da inconseqüência, também chamado religião do progresso, é uma tentação de morte e uma forma de desespero. Sem dúvida, essa tentação não se insinua como tal, nem apresenta a morte como um objetivo desejável (ou nem sempre) mas — como veremos mais detidamente adiante — se disfarça com as cores da vida, isto é, da continuidade profunda. Tanto assim que as revoluções de regra propõem inicialmente como objetivo um “retorno às origens”, uma restauração da integridade original das coisas (reparem no duplo sentido da palavra original: o que é novo, inédito e o que se prende às origens e nesse sentido é antigo). “É bem sabido que nas sociedades cujo passado é mais ou menos longo (observa Salleron) uma técnica revolucionária eficaz é o retorno às origens. Não mais se trata de podar a árvore para faze-la produzir bons frutos, mas de serra-la rente ao solo sob o pretexto de revigorar as raízes” [xxxvii]. Assim é que certos nacionalistas, cujos vínculos com o esquerdismo revolucionário são notórios, odeiam o nosso passado colonial e quereriam repudiar toda a herança lusa, como se o autêntico Brasil fosse uma nação tupi. Também na Igreja a “religião do progresso” insinuou-se e se choca com a verdade da Religião revelada. Uma concepção modernista extremada opõe a Religião, com seus dogmas, definições, elaborações teológicas e instituições, à fé “relação viva, despontar de uma descoberta incessante”; opõe-nos como o morto ao vivo, o passado ao futuro; a esclerose, o sistema, o fechamento, à renovação, ao dinamismo, à “abertura”. Tal é a aplicação ao campo religioso da idéia de revolução, que é o progresso realizado de fora para dentro, e graças a uma ruptura com o passado. 1°) De fora para dentro, quer dizer, não por um desdobramento do princípio vital, orgânico, que “inventa as formas do seu crescimento”, mas por meio de uma “reforma de estruturas”. Haja vista a febre de reformismo que, ultrapassando todo o “aggiornamento” do Concílio, abrange desde o culto e a liturgia até os códigos e as estruturas de governo. 2°) Graças a uma ruptura com o passado: com efeito, assistimos, como diz a Encíclica Ecclesiam Suam, a uma revivescência do “modernismo”, isto é, de uma suposição herética de que os dogmas evoluem, mudam de sentido no decorrer da história, a fim de se adequarem aos tempos que passam e às concepções que mudam. E desde Lutero até os modernistas e neo-modernistas a rejeição das elaborações teológicas, preceitos, imagens e símbolos é apresentada como uma restauração da religião evangélica, uma vota às fontes originais da fé. (Na realidade, essa “regressão” a uma vaga religiosidade sem doutrina representa o fenômeno que Karl Rahner caracteriza como uma heresia oculta ou latente). [xxxviii]

Vemos que esse “retorno” ou regresso às origens apresenta como um padrão permanente [xxxix]. Sempre o passado recente é repudiado como um desvio do caminho direito, um artifício que se opõe à espontaneidade da natureza ou um crescimento desordenado que sufoca a vitalidade primeira. E essa simples verificação nos inculca que não só o fetichismo do passado que se opõe ao crescimento. A negação indiscriminada do passado na sua continuidade esconde um “passadismo” radical; muito mais regressiva do que qualquer “fixação saudosista” é a aspiração a abolir o passado para se perder na bem-aventurança anterior ao crescimento. E mais: vemos também que essa aspiração regressiva projeta para o futuro a imagem da plenitude inicial sob a forma de um re-começo, um segundo nascimento, uma esperança de renovação total. É a Revolução.

Esse padrão ou “estrutura” do pensamento é fundamente implantado no homem. A maior parte da vida consciente da espécie decorreu talvez sob o regime do mito, anteriormente à idéia de história, que é a de um curso irreversível e linear de acontecimentos caminhando para um termo (real ou convencional) cujo atingimento lhe confere um sentido.

Na visão cíclica do mundo, ao contrário, o fim se sobrepõe e emenda no princípio. O “sentido” das coisas consiste num regresso. As coisas “voltam” um dia ao seu esplendor lustral. No decorrer da sua trajetória natural perdem o impulso e as cores primitivas mas, ao mesmo tempo, sendo essa trajetória circular, o emurchecimento e o declínio são o prelúdio de um re-começo cosmológico. “Os mitos do Fim do Mundo, escreve Eliade, implicam mais ou menos claramente a re-criação de um universo renovado e exprimem todos a mesma idéia, arcaica e extremamente difundida, de uma degradação progressiva do Cosmos, necessitando sua destruição e sua re-criação periódicas. Desses mitos de uma catástrofe final, mas que será ao mesmo tempo o sinal prenunciador da iminente re-criação do mundo, é que derivam e se desenvolvem em nossos dias (prossegue Eliade) os movimentos proféticos e milenaristas das sociedades primitivas... Juntamente com o quiliasmo marxista, acrescenta Eliade, esses milenarismos primitivos constituem as únicas revalorizações modernas do mito do Fim do Mundo” [xl].

A imagem radiosa do futuro por eles projetada corresponde à “imagem ideal do eu” ou projeto de realização ideal do eu, cuja função na dinâmica individual do crescimento, (sabem-no os psicanalistas) consiste em transfigurar e ao mesmo tempo em fixar tendências regressivas, atribuindo-lhes objetivos imaginários e uma significação de plenitude. Análoga aspiração regressiva é que produz o tipo social do imaturo, que é o homem “abstratizado”, desinserido das comunidades naturais (família, profissão, Igreja, pátria), despojado de todos os gravames de uma complexa história tanto pessoal como comunitária, e “imobilizado numa eterna juventude”. De um lado, o totalitarismo encontra nele a maleável matéria-prima ou matéria plástica para os seus projetos. Em troca da sua renúncia a uma “história” pessoal, a um passado feito de opções e de sacrifícios consentidos, enfim a uma personalidade a pouco e pouco enraizada no real, o Estado assistencial (ou de colher) lhe oferece os cuidados necessários à subsistência e ao conforto material (“Omnia tibi dabo...”). De outro lado, a “revolução” é o sonho do imaturo. Pois o que acima de tudo ele almeja é escapar às agruras do crescimento e às renúncias da personalização. Com efeito, crescer é ver-se banido da fase assistencial dos cuidados maternos, da incomparável segurança conferida pelo amor incondicional da mãe, a fim de afrontar os riscos de uma aventura singular e personalíssima. Pois todo crescimento é solitário. Ele impõe abandono de estruturas comprovadas de comportamento e a renúncia a um estado de integração e de segurança pela opção do risco, da aventura, da formação de novos padrões de adaptação baseados na iniciativa individual. Ora, como observou Erich Fromm, a separação de um universo que, em comparação com o existir isolado do indivíduo, é imensamente poderoso, provoca sentimentos de impotência e de ansiedade e pode determinar o aparecimento de impulsos a criar com a nova realidade um tipo de relação pela submissão e pela dependência, análoga ao tipo primitivo. Solução autoritária e solução revolucionaria, ambas regressivas, diferem no modo de transferir à instância coletiva com a qual o indivíduo deve entrar em relações diretas ao sair da adolescência (isto é a sociedade civil) o modo de relacionamento estabelecido com as chamadas “figuras significativas” da primeira infância. A primeira solução concebe essas relações segundo um modelo familiar. O monarca ou governante supremo é uma figura ao mesmo tempo repressora e benévola, análoga ao pater-familias numa estrutura patriarcal. A segunda solução, muito mais radical e regressiva, reverte a uma situação pré-edipiana. Nessa fase a mãe representa a realidade no seu todo e ao mesmo tempo encarna o seu lado mais favorável. Nenhum aspecto da realidade escapa à sua mediação. A realidade materna envolve e abrange o conjunto das relações do ser infantil com o mundo. De onde o caráter totalitário das soluções maternalistas.

Essa assimetria tem uma base natural. “A submissão ao pai, escreve o psicólogo Erich Fromm, difere da fixação à figura materna. Esta última é um prolongamento da natureza. Na medida em que são filhos da mãe-natureza os homens são todos iguais. Têm os mesmos direitos e exigências (...). Em outras palavras, a mãe encarna a natureza e o amor incondicional, o pai representa a consciência, o dever, a lei, a hierarquia. O amor do pai pelo filho não se assemelha ao amor incondicional da mãe (...) mas é preferência pelo filho que melhor preenche as suas expectativas e que se mostra mais capacitado para se tornar o herdeiro da sua propriedade e das suas funções sociais” [xli].

Trata-se evidentemente aqui de paradigmas psicológicos. O psiquismo normal integra ambas essas tendências, à proporção que interioriza o seu objeto pois, com o amadurecimento psicológico, tornamo-nos crescentemente independentes das figuras significativas originais (tornamo-nos, como diz Fromm, cada vez mais nosso próprio pai e nossa própria mãe). Voz materna e voz paterna, princípio do amor e princípio do dever, coexistem na consciência normal; cada um deles serve de contrapeso e de compensação para o seu contrário. Sua harmonização é a tarefa criadora proposta à idade adulta da consciência. Ao contrário, dissociadas no psiquismo do imaturo, essas mesmas tendências se “absolutizam” ou “infinitizam”. E é nesse estado que clamam pelas soluções regressivas em escala social: o Estado paternal e autoritário, de um lado; o Estado maternal e revolucionário, de outro.

Na sociedade liberal, por razões óbvias, seu apelo se torna mais premente. Contra a subversão reinante dos valores, as tendências do 1° tipo invocam a necessidade da ordem, da disciplina. Apelam para as virtudes de outrora, os valores de tempos mais austeros, as glórias e conquistas do passado. Pretendem coibir a insubordinação das tendências instintivas nos moldes de formas invariáveis. Mas agitando o tema da revolução, as aspirações do segundo tipo exprimem um anseio regressivo muito mais profundo: o ideal de um recomeço absoluto, a restauração da era de inocência e de fraternidade, anterior à separação entre os homens, anterior à prosperidade privada, à inimizade, à competição. O tema autoritário da “volta aos bons tempos” realça a importância das soluções de equilíbrio graças à submissão a uma benevolente (conquanto severa) autoridade paterna, mas está longe de contrabalançar a promessa de uma maternal socialização de todas as coisas. O “appeal” do poder paternalista concentrado na figura de um rei ou de um ditador é facilmente desbancado não pelas capacidades de crescimento do indivíduo, que assume a responsabilidade por suas opções mais decisivas, mas pela vertigem da submissão irrestrita à realidade maternal circundante, infinitamente poderosa e difusa, e cuja consciência se espelha na onisciência humanitária e “cientifica” do “Partido”. Em suas mãos o individuo depõe, agradecido, o fardo da liberdade.

A primeira espécie de aspiração encontrou recentemente satisfação nos regimes discricionários de tipo fascista, a segunda em duas formas de totalitarismo ou vitalismo revolucionário: o nacional-socialismo e o comunismo soviético.

Ambas as motivações pesavam como incitamentos secretos, ou sob a forma de inquietantes ressentimentos, nas profundezas do inconsciente coletivo, durante o decênio que se seguiu ao fim da Primeira Guerra Mundial. Numa das regiões mais ameaçadas — a Alemanha — esses fenômenos da alma afloram nos temas e “motivos” de uma arte eminentemente popular e que por essa mesma época descobria os seus recursos próprios: o cinema. O cinema expressionista apresenta uma floração desses conteúdos, de uma densidade simbólica impressionante. A alma defrontada pelo dilema: a tirania ou o caos (conforme a análise de Siegfried Krakauer na sua notável “História Psicológica do Cinema Alemão”), tal é o tema de filmes como: Dr. Caligari, Mabuse o Jogador, Homunculus, o Golem, o Estudante de Praga, o Anjo Azul e tantos outros. Só uma autoridade demente pode medrar no solo envenenado de uma sociedade decomposta em seus elementos e convertida num aglomerado informe pelo individualismo anárquico. O tema da autoridade maléfica, surgindo ao mesmo tempo como alternativa e como conseqüência do desbordamento dos instintos, é o motivo que constantemente recorre nas figuras de sinistros violadores da alma coletiva, como Caligari, Nosferatu, Homunculus, Ivan o Terrível, Jack o estripador. Por outra parte, por volta de 1922 começam a surgir apologias mais ou menos intencionais dos “velhos tempos” (Fredericus Rex, Ein Glass Wasser, etc.) o tema da “volta aos bons tempos” não é bastante profundo para despertar representações simbólicas do quilate das anteriores. (É curioso que o autor incluísse esses filmes juntamente com os primeiros, entre os prenúncios da revolução nazista. Pois nada revela melhor a diferença de nível psicológico entre os motivos “discricionário” e “revolucionário” do que a diferença de nível artístico entre esses filmes de tese, expressões mais ou menos banais de saudosismo político, e as obras primas de Carl Mayer, Fritz Lang, F. W. Murnau, Robert Wien, Lupo Pick, G. W. Pabst etc).

De qualquer sorte, nenhuma dessas pseudo-soluções é capaz de incrementar o consumo e de promover a abundância, mas que deixou de ser uma sociedade de seres livres e responsáveis. Alexis de Tocqueville, numa página famosa, visualizava-o como “uma imensa multidão de homens nivelados”, que se reúnem “a fim de fruir de pequenos e vulgares prazeres”, e acima dos quais “paira um poder imenso e tutelar, que se encarrega, sozinho, de assegurar seus prazeres e de velar sobre sua sorte... Esse poder, acrescenta ele, é absoluto, meticuloso, regular, previdente e suave. Parecer-se-ia com a autoridade paternal se, como essa, tivesse o objetivo de preparar  os homens para a idade viril; ao contrário disso, esse poder não procura senão fixa-los irrevogavelmente na infância” [xlii].

Outro grande visionário dos tempos modernos previu com espantosa clarividência o caráter imaturo das revoltas que um dia se acenderiam contra o fenômeno social que de Corte chamou “a organização do inorgânico”[xliii]. Na parábola Dostoievskiana do Grande Inquisidor, dizia, apostrofando o Cristo, esse porta-voz do Estado ateu e satanocrático: “Eu Vos juro. O homem é mais fraco e mais baixo por natureza que Vós o supuseste (...) Ele é débil e vil. Não importa que em toda a parte esteja agora em revolta contra o nosso poder, e todo garboso de sua rebeldia. Eles são como crianças que fazem arruaças e impedem que o professor entre na Escola. Mas a sua patuscada em breve terminará. Sair-lhe-á muito cara. Derrubarão templos e embeberão a terra de sangue. Mas verão afinal que embora rebeldes, são rebeldes importantes, incapazes de manter acesa a chama da sua própria rebeldia”[xliv].

Com efeito, o socialismo revolucionário é impotente contra o socialismo assistencial e humanitário — o welfare state — criado pela sociedade liberal e institucionalizado no Estado totalitário; é impotente simplesmente por ser a expressão do princípio de violência que no seu âmago substitui o princípio de autoridade. O infantilismo revolucionário debalde se levanta contra o pseudo-humanitarismo nascido de uma renúncia infantil. O anarquismo, no sentido vulgar e terrorista de “subversão da ordem vigente”, não passa de uma frenética e inútil convulsão aparentemente voltada contra o anarquismo fundamental e acéfalo de uma ordem sem autoridade: “ordre logique masquant un désordre vécu”, como diz de Corte, que na realidade se exerce a seu favor. Seria com efeito espantoso que essa desordem constitutiva pudesse ser vencida por uma desordem que afinal não passa de seu desmascaramento ou manifestação aberta, isto é, dos sobressaltos que periodicamente se tornam incoercíveis.

A solução estará para além do anseio igualitário (ou paixão do gregário), essa entropia social que agora invoca o nome mágico de “socialização”; a salvação — repito — só pode resultar de uma vontade de ascensão, de crescimento, de personalização, que é inerradicável do coração humano, pois que faz parte da sua natureza, mas que, na presente etapa da história, deve ainda criar a sua expressão teórica em escala social. Na verdade não há sequer o esboço desse novo estado de coisas. Falem agora os inventores do futuro. Querem-se idéias. Precisam-se de teorias.

Dentro dos quadros propostos pela doutrina moral da Igreja (também chamada “doutrina social da Igreja”) falta preencher toda uma paisagem. É preciso traduzir em programa concreto e em termos de criação, a harmonização social entre o que Erich Fromm chamou a voz materna e a voz paterna em nós, o “princípio do amor” e o “princípio do dever”.

[...] 

(Progresso e Progressismo, Cadernos Permanência, Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1970.)

 

Notas

[i] “Subversion de la Liturgie” Ap. Itinéraires, Nov. de 1967.

[ii] É também revolucionário, isto é, quer inovar, quer adaptar-se, descobrir novas formas de adaptação. Quer com força as duas coisas: mudar e também permanecer. Mas o fim não pode ser a mera mudança. Ao contrário se todo o ser mutável quer renovar-se, é para permanecer.

[iii] Resposta ao Inquérito de “Espirit”, out. de 1967, p. 618.

[iv] “La Philosophie après le Concile” 3 de fev. de 1967.

[v] “The Mutants” Partisan Review, out. de 1965.

[vi] “Imanência significa etimologicamente “permanência em”. Enquanto implica um ‘não ultrapassar’, designa o contrário da transcendência (...) No domínio do conhecimento, imanência denota dependência da consciência (Para a filosofia realista, ao contrário, a realidade se apresenta como constituída independentemente da nossa atividade cognitiva). Em relação à nossa experiência, imanência significa estar circunscrito ao seu âmbito possível”. Brugger  “Dicionário de Filosofia”, Herder. S. Paulo, 1962.

[vii] “Antimoderne” Ed. de la Revue des jeunes, Paris, 1922, págs. 174-6.

[viii] M. Labourdette O.P. e M. J. Nicolas O.P., “L’Analogie de la Verité et l’Unité de la Science Théologique”. Rev Thomiste, 1947, n° 3, p. 1424.

[ix] “Dois Amores, Duas Cidades”, Agir Edit., Rio de Janeiro, 1967, vol. I, p. 54.

[x] “L’Ancien Régime et la Révolution” Gallimard, Paris, 1952, p. 68.

[xi] “La Religion Démocratique” Ap. “Itinéraires”, junho de 1963.

[xii] “L’Eglise dans le monde de notre temps” Ap. Nova et Vetera, Jan-Março, 1965, págs. 13-14.

[xiii] Nesse ponto a idéia de estruturação moral da sociedade encontra o princípio de subsidiaridade defendido pela Igreja: i. é, da natureza supletiva do Estado e dos grupos maiores em face dos grupos menores e do indivíduo.

[xiv] “Revolt and Commitment” Encounter. Abril de 1959.

[xv] Répertoire II Les Editions de Minuit, Paris, 1964, p. 83.

[xvi] “La Religion Démocratique”, Ap. Itinéraires n° 74, junho de 1963.

[xvii] L. Salleron. Ibid. p. 70.

[xviii] As “sociedades” propagam uma forma protestante da gnose chamada “Iluminismo” ou “teosofia”. Derivam, por um lado, dos “pietistas” e místicos dos países reformados, de outro, das sociedades secretas dos “deístas” sobretudo holandeses e ingleses, empenhados em fundar uma religião puramente racional. “Há dois séculos pelo menos, escreve Bernard Fay, a franco-maçonaria estava no ar; em toda parte sábios, eruditos e curiosos, irritados contra a disciplina social e intelectual da Igreja, tratavam de criar núcleos de resistência, agrupando-se em sociedades que lhes assegurassem poder e independência. Os deístas pretendem partir do Cristianismo legado pela Reforma, imbuído da necessidade de remontar às fontes históricas da Igreja e do desejo de restaurar uma fé que corresponda a todas as exigências intelectuais do seu tempo, mas perderam o sentimento e o gosto da religião. Estendem a luta da Reforma muito além dos objetivos que esta se propunha. Revoltam-se contra o Cristianismo, que atacam em nome da razão e da história, assim como os primeiros reformadores fustigavam o Catolicismo em nome do senso comum e das Escrituras (...) A Reforma se levantara contra o Catolicismo e sua filosofia, formada pela escolástica e a língua latina; reclamava formas, fórmulas e pensamentos religiosos adaptados às línguas modernas e à lógica contemporânea. Os deístas extraíram ainda do torrão natal e das exigências particulares do espírito inglês seus argumentos contra o Cristianismo; utilizaram não apenas, como os primeiros reformadores, a lógica e a sentimentalidade própria de cada povo, mas o humor, o sarcasmo e até a injúria de cada língua. Tal é um dos aspectos que mais impressionará Voltaire (...) e os “filósofos” franceses do fim do século XVIII”. Prossegue o historiador: “Em face da Igreja que deriva seu maior poderio social do prestígio de sua antigüidade e seus melhores títulos de uma tradição nunca interrompida, (os deístas) tratam de impor uma tradição ainda mais primitiva (...) Cada um deles, além de polemizar negativamente contra a Religião revelada, oferece afinal, com precaução e solenidade, uma religião anterior e mais venerável. Entre 1690 e 1750 enfrentam-se essas teorias numa profusão de livros socinianos, arminianos, deístas, ateus, materialistas, ímpios, blasfematórios, mágicos, místicos, pitagóricos, druídicos, egípcios e babilônicos que se editam (na Inglaterra assim como na Holanda). Os meros títulos de tais obras servem de testemunho. São, por exemplo, O Cristianismo tão antigo como a Criação de Tindal, O Cristianismo sem mistério, de Toland, Discurso sobre os milagres, de Woolston, O Cristianismo não fundado sobre o exercício da razão, de Dodwell, Tetradymus, Adeisidaemion e Pantheisticon, de Toland. Os dogmas são atacados e ridicularizados, respiga-se na Bíblia todo o texto que possa dar idéia de contradição e de absurdo (...) Há o empenho de atrair o homem para uma religião mais essencial do que o Cristianismo (...) Não há deísta que não possua uma alma religiosa e mística, ao mesmo tempo que anti-cristã”. (La Francmasoneria y la Revolucion Intelectual del Siglo XVIII, Trad. do francês. Editora Huemul, B. Aires, 1963, págs. 133, 79-82).

[xix] “La Révolution et la Libre-pensée”, Plon, Paris, 1924, págs. 28-9.

[xx] Op. cit., p. 4.

[xxi] Op. cit., p. XLI.

[xxii] “Abstraction Révolutionnaire et Réalisme Catholique” p. 118.

[xxiii] “O erro protestante (escreve ainda Cochin) é confundir a opinião pública com a opinião anônima, crer que o que é anônimo é desinteressado e geral. Erro aplicável pois que para afirmar o contrário é necessário conhecer toda a organização franco-maçônica. Ora, essa organização existe e é desse erro que ela vive” (Ibid., p. 120).

[xxiv] “La Révolution et la Libre-pensée”, págs. XXVIII a XXXIII.

[xxv] “L’intelligence en péril” Ap. Itinéraires, abril de 1968 – págs. 188-189.

[xxvi] “L’Ancien Régime et la Révolution”, Gallimard, Paris, 1952, págs. 50-51.

[xxvii] “Democracy” Ap. “Selected Essays”, Penguin Books, Gr. Brit. 1960, págs. 73-80.

[xxviii] “Abstract. Revol. et Réal. Cathol.” Desclée de Brouwer, Paris, 1935, págs. 71-3.

[xxix] O “Contrato Social”, com todos os seus direitos, ao Estado ou à sociedade é uma ficção de direito privado pela qual tudo se torna de direito público. Em outras palavras, nega-se a sociedade humana como instituição de direito natural a fim de tudo reduzir ao social por meio de um artifício da razão.

[xxx] Ibid., p. 99, O grifo é meu.

[xxxi] Ibid., p. 87-89.

[xxxii] Op. cit., p. 99.

[xxxiii] Op. cit., págs. 100-102. “O ensino corrente de História observa Henri Charlier, inculcava como fatal e como um lucro para a sociedade os acontecimentos do fim do século XVIII e as conseqüências da Revolução. Sob o efeito da derrota de 1870, Taine escrevera uma obra importante sobre As Origens da França Contemporânea. Dessa obra só o 1° volume nos era apresentado: ele continha uma crítica detalhada das anomalias jurídicas, políticas, financeiras, econômicas do Ancien Régime. Ninguém esclarecia que essas anomalias resultavam da formação pacífica do reino de França por meio de tratados particulares com uma multidão de cidades e de províncias; a maior parte dos chamados ‘privilégios’ (de classes sociais mas também de cidades, de comunas, de profissões, de simples particulares) eram de fato liberdades concedidas mediante um contrato pelo governo central. E escondiam-nos os outros volumes de Taine como ‘A anarquia revolucionária’. Ignorávamos que se Luís XVI não reagiu ante o ataque à Bastilha, é porque não tinha ‘direito de guarnição’ na cidade de Paris e achou por bem respeitar a legalidade” (Cf. “Maurras et l’Histoire”, Ap. Itinéraires, abril 1968, p.53).

[xxxiv] “Philosophie des Moeurs Contemporaines” Edit. Universitaires, Bruxeles, 1944, p. 62.

[xxxv] Aug. Cochin. “Abstraction Révoluctionaire” p. 102.

[xxxvi] “L’Enracinement” cit., por André Charlier, “Une Civilisation de Masse?” Ap. “Itineraires”, nov. 1967.

[xxxvii] “Subversion de la Liturgie” Ap. “Itinéraires”, nov. 1967.

[xxxviii] Cf. “On Heresy”, Herder and Herder, N.Y., 1964, págs. 58-9.

[xxxix] Nós vimos que os “deístas” e Iluministas do século XVIII pretendem estar ligados a uma “religião natural” ou a uma tradição religiosa anterior ao Cristianismo. Lutero e os reformadores atacam os dogma e a tradição em nome de um Cristianismo original e puramente escriturístico. Recentemente o “movimento litúrgico” invocava um regresso à espiritualidade patrística por cima da escolástica e da Idade Média. Em arte, Gropius e a escola de Bauhaus encontram uma saída para a crise da arte contemporânea numa volta ao espírito do artesanato medieval. Os nossos nacionalistas de esquerda querem pular por cima do Brasil colônia para ir buscar num solo virgem o segredo de não sei que poder criador nativo e de bom grado trocariam os tesouros da arte barroca pela cultura do capim. Etc.

[xl] “Aspects du Mythe”. Gallimard, Paris, 1963 p. 78. Com efeito, na visão cristã, o mundo caminha para um termo definitivo: o fim dos tempos. A partir daí desvenda-se uma nova dimensão das coisas. Seu curso terreno porém está encerrado. A História se inscreve entre acontecimentos irrecorríveis: a Promessa, a Encarnação, a Morte, a Ressurreição. O atrativo da concepção marxista consiste em combinar a idéia cristã de uma “plenitude dos tempos” com a concepção cíclica de uma re-pristinação mundana, temporal das coisas; o juízo final da Revolução que põe termo à velha ordem fundada no egoísmo e na exploração do homem pelo homem, segue-se um re-nascimento do homem na História. O marxismo ao mesmo tempo é uma forma de visão cíclica e uma heresia milenarista (da instauração de um Reino do Espírito Santo durante mil anos neste mundo).

[xli] “The Sane Society”, Rinehart and Co. N. York, 1955, págs. 45-6.

[xlii] Cit. Por G. Corção “Dois Amores Duas Cidades”, Agir Edit. Rio, 1967, Vol. I, p. 97.

[xliii] “Au lieu d’un ordre vécu nous aurons un ordre logique masquant un désordre vécu, bref ce que nous avons appelé ailleurs la logique du désordre ou l’organisation de l’inorganique”. “Philosophie des Moeurs Contemporaines”, p. 43.

[xliv] “Talvez vos apraze ouvi-lo de meus lábios. Ouvi pois: não estamos trabalhando convosco mas com ele. Esse é o nosso mistério. De há muito tempo — oito séculos — estamos do lado dele e não do Vosso”.

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