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Id, Ego, Super-ego: entes reais ou de razão?

Perguntados como se divide o corpo humano, respondiam os estudantes da antiga História Natural: em cabeça, tronco e membros.

Cabeça, tronco e membros, e o corpo humano inteiro, existem concretamente, têm realidade entitativa. Também a têm os demais entes da natureza, tanto em suas partes, como em sua integridade.

São entitativamente reais homens, animais, pedras, plantas, astros, flores, todas as criaturas espirituais e materiais de nosso universo.

Foi dado ao homem um poder que tem analogia com a criação; o de produzir atos intencionais. A intencionalidade tende aos entes do universo pelo entendimento e pelos desejos. É também capaz de instrumentalizá-los. Efetua assim o homem uma “criação” intencional sobre a criação.

Pode, em sua mente, ainda criar entes de razão. Alguns sem nenhuma realidade, tais a cegueira e o nada; outros com fundamento no real.

As ciências empíricas, das quais o melhor modelo é a física- matemática, descrevem o ente físico e seu comportamento através de entidades físico-matemáticas. Entes de razão, “extraídos” do fundamento real por observação ou por medidas. A definição que lhes atribui o cientista lhes confere existência e significado. Assim se constituem as diversas grandezas físicas: força, massa, potência, energia, entropia, intensidade de campo elétrico e magnético e todas as demais. Algumas delas, a massa, por exemplo, parecem ter a mesma realidade que seu fundamento, freqüentemente homônimo na linguagem comum.

Entre essas entidades há as relações matemáticas, as quais correspondem e substituem em sua representação a causalidade eficiente da natureza pela causalidade formal da matemática.

A Física é uma ciência empiriométrica. As ciências, que não medem, mas que ordenam e classificam a realidade através de entes de razão, são ciências empiriológicas. Ambas, as empiriométrica e as empiriológicas, propõem uma “mitologia” de entes de razão, os quais explicam e permitem comandar a realidade.

Perguntados como se divide o homem, respondem os doutores da moderna Psicologia: em id, ego e super-ego.

A observação do comportamento e dos conflitos do psichê humano ensejou a proposta de uma fundamental estrutura de funções psiquícas denominadas id, ego e super-ego. São entes de razão imaginados como habitus, os quais em muitas eventualidades facilitam a compreensão e a terapia no domínio psicológico. Não têm, porém, a consistente realidade entitativa da tripartição cabeça, tronco e membros.

Não conflitam com a realidade entitativa do homem, nem com seu corpo, nem com seu espírito. Não contrariam a fé, nem a reta filosofia. Não há inconveniente em seu adequado uso. Haverá se ajustados a perversos preconceitos ideológicos e materialistas, inoculados pelo terapeuta ou pelo envoltório cultural. Desses preconceitos não esteve Freud imune. Já ao propor o termo id (das Es) o contaminou com a conceituação proveniente de Nietzsche e Graddeck: “como o que há de não pessoal e necessário em nós, como força desconhecida e indomável, como aquilo que é mais forte do que nós” 1.

Daí, segue-se a bipolaridade conceitual do id. O que não é consciente; inaceitável por não se definir algo pelo que não é. Reservatório da libido, fonte da energia produtora das pulsões; nessa definição possível fica a dúvida se é o termo energia tomado da imprecisa linguagem popular, ou se corresponde a ente de razão da precisa linguagem científica.

A energia e sua pulsões, das quais se propõe a psicanálise desvelar o significado, ensejaram Paul Ricoeur a considerar a psicanálise como uma energética e uma hermenêutica.

É possível alguma identidade entre paixões e pulsões? São também as paixões impulsos e movimentos. Situam-se no apetite sensível.

Na natureza humana, antes da queda, as paixões se submetiam à ordenação racional, ao espírito.

Decaída a natureza, podem surgir e progredir sem controle, sentido e manifesto significado. Despojam-se de nítida identidade, ficam aparentemente mascaradas e dissimuladas. Pulsões?

Há ainda a possibilidade de umas a outras se oporem. Hábitos adquiridos passiva ou ativamente, sucessos felizes ou traumáticos, em uma natureza imperfeita, podem tornar-se opacos à memória e à consciência, embora permaneçam atuantes nessa natureza. O super- ego e o id se opõem.

No sonho, com a consciência intencional eclipsada, mais facilmente afloram associações de pulsões que velam e revelam apetites “codificados”.

Propõe-se serem o id., o ego, o superego entes de razão definidos para explicar dados empíricos, interpretar comportamentos e atuar no campo psicológico. Semelhante às entidades físico-matemáticas, contribuem para a abertura da intencionalidade ao real. Na Física, para os fenômenos eletromagnéticos, há explicação e domínio, tanto pelos entes de razão estruturados no modelo corpuscular, quanto no ondulatório. Assim, podem também outras estruturas de entes de razão na Psicologia, como as de Jung e de Adler, permitir explicações e procedimentos válidos e eficazes. Não é raro haver dificuldades em distinguir ente de razão de ente real, modus mentis de modus rei.

Em tempo:

Pode haver uma ciência puramente empírica do homem?

— Sim, pode, porém nem única, nem mais importante.

I. Transcende o homem o plano físico-biológico. Composto de espírito e corpo, tem vida intelectual e moral. Elevado à ordem da graça, vida sobrenatural.

A psicanálise só cura em seu domínio. Não salva o homem. A saúde psico-biológica é também prejudicada por erros da inteligência e por males morais. O pecado produz vício e doença. A cura total do homem excede a terapia psicoanalítica (e muitas outras).

Não só do homem o conhecimento não é redutível ao empírico, o do próprio universo material exige também uma correta visão metafísica e, principalmente, considerá-lo criado e sujeito à providência divina.

II. O fato de na cultura ser a validade setorial de alguns conhecimentos empíricos, considerada universal, causa graves malefícios.

Aconteceu com o determinismo extrapolado da Física de Newton e Galileu. Acontece com o poderoso inconsciente freudiano da divulgada visão psico-analítica da atual cultura. Acontece com o “tudo é relativo”, cuja autoria quando atribuída a Einstein lhe causava ira.

III. Há ainda a explicação pelos mitos. O mito é uma explicação pelos símbolos. Remete o símbolo ao simbolizado, sem com ele confundir- se. Simultaneamente oculta e revela. É um claro-escuro.

Usou Platão mitos para superar dificuldades da exposição racional, como os da Caverna, Prometeu, Alma, Er. Há mitos que se perdem no passado histórico, como o de Édipo; ou que se inculcam históricos, mas, puramente fantasias, são carentes de qualquer realidade, tal “A morte do pai primitivo”.

A confusão do mito com a realidade é do mesmo gênero do que as do ente real e de razão, e da validade setorial e validade universal.

  1. 1. J. Laplanche; J. - B. Portalis — Vocabulário da Psicanálise
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