Do Ecumenismo à Apostasia Silenciosa
25 anos de pontificado
Menzingen 2004
1. O 25o aniversário da eleição de João Paulo II é ocasião para reflectir na orientação fundamental que o Papa deu ao seu pontificado. Na sequência do Concílio Vaticano II, quis colocá-lo sob o signo da unidade: «A restauração da unidade de todos os cristãos era um dos fins principais do II Concílio do Vaticano (cf. UR no1) e, desde a minha eleição, empenhei-me formalmente em promover a execução das suas normas e das suas orientações, considerando que tal era para mim um dever primordial» 1. Essa “restauração da unidade dos cristãos” marcou, segundo João Paulo II, um passo em direcção a uma unidade maior, a da família humana inteira: «A unidade dos cristãos está aberta sobre uma unidade sempre mais vasta, a da família humana inteira» 2.
2. Em razão desta escolha fundamental:
- João Paulo II estimou dever «retomar em mãos essa “magna carta” conciliar que é a Constituição Dogmática Lumen gentium 3, a qual definiu a Igreja como um «sacramento, quer dizer, simultaneamente sinal e meio da união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano» 4. Essa “retomada em mãos” era feita com vista a «realizar sempre melhor a comunhão vital em Cristo de todos os que crêem e esperam n’Ele, mas igualmente com vista a contribuir para uma mais ampla e mais forte unidade da família humana inteira» 5;
- João Paulo II consagrou o essencial do seu pontificado à prossecução dessa unidade, multiplicando encontros inter-religiosos, arrependimentos e gestos ecuménicos. Esta foi também a principal razão das suas viagens: «elas permitiram alcançar as Igrejas particulares em todos os continentes, levando-lhes uma atenção sustentada no desenvolvimento das relações ecuménicas com os cristãos das diferentes Confissões» 6;
- João Paulo II deu o ecumenismo como traço característico do Jubileu do ano 2000 7.
Em completa verdade, pois, «pode dizer-se que toda a actividade das Igrejas locais e da Sé Apostólica tiveram estes últimos anos uma inspiração ecuménica» 8. Hoje, passaram-se vinte e cinco anos, o Jubileu acabou: soou a hora do balanço.
3. Durante muito tempo, João Paulo II creu que o seu pontificado seria um novo Advento 9 permitindo «na alvorada deste novo milénio erguer-se sobre uma Igreja que reencontrou a sua plena unidade»10. Então, ter-se-ia realizado o «sonho» do Papa: «Todos os povos do mundo em marcha, de diferentes lugares da Terra, para se reunirem junto do Deus único como um só família» 11. A realidade é completamente outra: «O tempo em que vivemos mostra-se como uma época de desvario [em que] muitos homens e mulheres parecem desorientados» 12. Por exemplo, reina na Europa uma «espécie de agnosticismo prático e de indiferentismo religioso», a ponto de «a cultura europeia dar a impressão de uma “apostasia silenciosa”» 13. O ecumenismo não é estranho a esta situação. A análise do pensamento de João Paulo II (1a parte) far-nos-á verificar, não sem profunda tristeza, que a prática ecuménica é herdade de um pensamento estranho à doutrina católica (2a parte), e leva à “apostasia silenciosa” (3a parte).
Capítulo I - ANÁLISE DO PENSAMENTO ECUMÉNICO
A unidade do género humano e o diálogo inter-religioso
Cristo, unido a cada homem
4. Na base da concepção do Papa encontra-se a afirmação segundo a qual «Jesus Cristo [que] “Se uniu de uma certa maneira a todos os homens” (Gaudium et spes, no 22), mesmo se estes disso não estão conscientes» 14. Com efeito, João Paulo II explica que a Redenção trazida por Cristo é universal, não somente no sentido de que é superabundante para todo o género humano e que é proposta a cada um dos seus membros em particular, mas, sobretudo, porque é aplicada, de facto, a todos os homens: logo, se por um lado, «em Cristo, a religião já não é uma “procura de Deus como às apalpadelas” (Actos 17, 27), mas uma resposta da fé a Deus que Se revela [...], resposta tornada possível por este Homem único [...] em que todo o homem se tornou capaz de responder a Deus», por outro, o Papa acrescenta: «[que] neste Homem, a criação inteira responde a Deus» 15. Com efeito, «cada um foi incluído no mistério da Redenção, e Jesus Cristo uniu-Se a cada um, para sempre, através deste mistério. [...] É isso, o homem em toda a plenitude do mistério do qual se tornou participante em Jesus Cristo e do qual participa cada um dos quatro mil milhões de homens vivendo no nosso planeta, desde o instante da sua concepção» 16. Desta forma, «no Espírito Santo, cada pessoa e cada povo tornaram-se, pela Cruz e Ressurreição de Cristo, filhos de Deus, participantes na natureza divina e herdeiros da vida eterna» 17.
O Congresso de Assis
5. Este universalismo da Redenção encontra a sua aplicação imediata na maneira com a qual João Paulo II pratica as relações entre a Igreja Católica e as outras religiões. Com efeito, se a ordem da unidade atrás descrita «é aquela que remonta à criação e à redenção e se é, portanto, neste sentido, “divina”, estas diferenças e estas divergências [citadas anteriormente], mesmo religiosas, devem-se, sobretudo, a um “facto humano”» 18 e devem, assim, «ser ultrapassadas no progresso para a realização do grandioso desígnio de unidade que preside à criação» 19. Daí as reuniões inter-religiosas tais como a de Assis, em 27 de Outubro de 1986, na qual o Papa quis desvendar «de maneira visível, a unidade escondida mas radical que o Verbo Divino [...] estabeleceu entre os homens e as mulheres deste mundo» 20. Com tais gestos, o Papa entende fazer proclamar à Igreja que «Cristo é a realização da aspiração de todas as religiões do mundo e, por isso mesmo, delas é fim único e definitivo» 21.
A Igreja de Cristo e o Ecumenismo
A única Igreja de Cristo
6. Uma ordem dupla: unidade divina permanecendo inviolada, e divisões históricas que não derivam senão do humano; tal é ainda a grelha aplicada à Igreja, considerada como comunhão. Com efeito, João Paulo II distingue a Igreja de Cristo, realmente divina, das diferentes Igrejas, frutos das “divisões humanas” 22. A Igreja de Cristo, de contornos assaz mal definidos pelo facto de exceder os limites da Igreja Católica23, é uma realidade interior 24. Ela reúne pelo menos o conjunto dos cristãos 25, qualquer que seja a sua pertença eclesial: todos são «discípulos de Cristo» 26, «numa pertença comum a Cristo» 27; eles «são um porque, no Espírito, estão na comunhão do Filho e, n’Ele, na comunhão com o Pai» 28. A Igreja de Cristo é, assim, comunhão dos santos, para além das divisões: «A Igreja é Comunhão dos Santos» 29 Com efeito, «A comunhão na qual os cristãos crêem e esperam é, na sua realidade mais profunda, a sua unidade com o Pai por Cristo e no Espírito Santo. Desde o Pentecostes é dada e recebida na Igreja, comunhão dos santos» 30.
As divisões eclesiais
7. Conforme João Paulo II, as divisões eclesiais acontecidas no decurso da História não teriam afectado a Igreja de Cristo, ou, dito de outro modo, teriam deixado inviolada a unidade radical dos cristãos entre eles: «Pela graça de Deus, o que pertence à estrutura da Igreja de Cristo contudo não foi destruído, nem a comunhão que permanece com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais» 31. Com efeito, estas divisões são de outra ordem; só respeitam à manifestação da comunhão dos santos, o que a torna visível: os tradicionais laços da profissão de fé, dos sacramentos e da comunhão hierárquica. Recusando um ou outro destes laços, as Igrejas separadas não ferem senão a comunhão visível com a Igreja Católica, e somente de maneira parcial: esta última comunhão é capaz de mais ou menos, conforme um maior ou menor número de laços tiverem sido salvaguardados. Falar-se-á então de comunhão imperfeita entre as Igrejas separadas e a Igreja Católica, permanecendo salva a comunhão de todas na única Igreja de Cristo 32. A expressão “Igrejas irmãs” será utilizada frequentemente 33.
8. Segundo essa concepção, o que une entre elas as diferentes Igrejas cristãs é maior do que o que as separa 34: «O espaço espiritual comum vence muitas barreiras confessionais que ainda nos separam uns dos outros» 35. Este espaço espiritual, eis a Igreja de Cristo. Se esta não «subsiste» 36 «em um único sujeito» 37 senão na Igreja Católica, não deixa de manter uma «presença activa» nas Comunidades separadas, em virtude dos «elementos de santificação e de verdade» 38 que nelas estão presentes. É este pretendido espaço espiritual comum que João Paulo II quis consolidar com a publicação de um martirológio comum às Igrejas: «O ecumenismo dos santos, dos mártires, é talvez o que mais convence. A voz da communio sanctorum é mais forte que a dos fautores de divisão» 39.
Nem absorção nem fusão, mas dom recíproco
9. Portanto, «o fim último do movimento ecuménico» não é senão «o restabelecimento da plena unidade visível de todos os baptizados» 40. Tal unidade não mais se realizará pelo “ecumenismo de regresso” 41: «Rejeitamo-lo como método de procura de unidade. [...] A acção pastoral da Igreja Católica, tanto latina como oriental, já não tende a fazer passar os fiéis de uma Igreja para outra» 42. Com efeito, seria esquecer duas coisas:
— Estas divisões, que o Concílio Vaticano II analisa como faltas de caridade 43, são imputáveis a uma e outra parte: «Evocando a divisão dos cristãos, o decreto sobre o ecumenismo não ignora “a falta dos homens de uma e outra parte”, reconhecendo que a responsabilidade não pode ser atribuída unicamente “senão aos outros (UR, 3)”» 44.
— O ecumenismo é também «troca de dons»45 entre as Igrejas: «A troca de dons entre as Igrejas, na sua complementaridade, torna fecunda a comunhão» 46.
É por isso que a unidade desejada por João Paulo II «não é absorção nem mesmo fusão» 47. Aplicando este princípio às relações entre a Igreja Católica e os ortodoxos, o Papa expõe: «As duas Igrejas irmãs do Oriente do Ocidente compreendem hoje que sem uma escuta recíproca das razões profundas que tendem em cada uma delas à compreensão do que as caracteriza, sem um dom recíproco dos tesouros do génio de que cada uma é portadora, a Igreja de Cristo não pode manifestar a plena maturidade da forma que recebeu no início, no Cenáculo» 48.
A recomposição da unidade visível
10. «Do mesmo modo que na família as eventuais dissenções devem ser ultrapassadas pela recomposição da unidade, é assim que se deve fazer na família mais vasta da comunidade cristã inteira» 49. Ultrapassar as dissenções humanas pela recomposição da unidade visível, tal é a metodologia do Papa. Será necessário aplicá-la nos três laços tradicionais da profissão de fé, dos sacramentos e da comunhão hierárquica, porque são eles que constituem a visibilidade da unidade.
A unidade de sacramentos
11. Sabe-se como Paulo VI se entregou a essa tarefa em matéria de sacramentos: nas sucessivas reformas litúrgicas que aplicaram os decretos conciliares, «a Igreja foi guiada [...] pelo desejo de tudo fazer para facilitar aos nossos irmãos separados o caminho da união, afastando qualquer pedra que pudesse constituir nem que fosse a sombra de um risco de tropeço ou de desagrado» 50.
12. Afastado, assim, obstáculo de uma liturgia católica demasiado expressiva do dogma, faltava ultrapassar a dificuldade das liturgias das comunidades separadas. A reforma cedeu, então, o lugar ao reconhecimento: se bem que não contenha as palavras consagratórias, a anáfora assíria (nestoriana) de Addaï e Mari foi decretada válida num documento expressamente aprovado por João Paulo II 51.
A unidade na profissão da fé
13. Em matéria de fé, João Paulo II estima que, muito frequentemente, «as polémicas e as controvérsias intolerantes transformaram em afirmações incompatíveis o que era de facto o resultado de dois olhares perscrutando a mesma realidade, mas de dois pontos de vista diferentes. É preciso encontrar hoje a fórmula que, apreendendo esta realidade integralmente, permita ultrapassar as leituras parciais e eliminar as interpretações erradas» 52. Isto reclama uma certa latitude em relação às fórmulas dogmáticas até aqui empregadas pela Igreja. Recorre-se, portanto, ao relativismo histórico, a fim de tornar as fórmulas dogmáticas dependentes da sua época: «As verdades que a Igreja entende realmente ensinar pelas suas fórmulas dogmáticas são sem dúvida distintas das concepções mutáveis próprias de uma época determinada; mas não se exclui que sejam eventualmente formuladas, mesmo pelo Magistério, em termos que transportem os traços de tais concepções» 53.
14. Duas aplicações destes princípios são citadas com frequência. No caso da heresia nestoriana, João Paulo II estima que «as divisões que se produziram eram devidas em larga medida a mal entendidos» 54. Com efeito, se é claro o princípio afirmando que «em primeiro lugar, perante as formulações doutrinais que se separam das fórmulas em uso na comunidade à qual pertencem, convém manifestamente discernir se as palavras não cobrem um conteúdo idêntico»55, é pervertida a aplicação que dele é feita. É assim que o reconhecimento de fé cristológica da Igreja Assíria do Oriente, sem que lhe tenha sido reclamada a adesão à fórmula de Éfeso, segundo a qual Maria é Mãe de Deus, despreza as condenações anteriores, sem ter em conta a sua característica de infalibilidade 56. Mais característica ainda é a declaração comum com a Federação Luterana Mundial. O seu cuidado não foi afirmar a fé e afastar o erro, mas somente encontrar uma formulação apta a escapar aos anátemas do Concílio de Trento: «Esta declaração comum é apresentada na convicção de que a ultrapassagem das condenações e das questões até então controversas não significa que as separações e as condenações sejam tomadas com ligeireza ou que o passado de cada uma das nossas tradições eclesiais seja desautorizado. É apresentada no entanto na convicção de que novas apreciações acontecem na história das nossas Igrejas» 57. Numa bem simples palavra, o Cardeal Kasper comentará essa declaração: «Ali onde tínhamos visto inicialmente uma contradição, podemos ver uma posição complementar» 58.
A comunhão hierárquica
15. Quanto ao ministério de Pedro, os desejos pontifícios são conhecidos. Encontrar, de concerto com os pastores e teólogos das diferentes Igrejas, «as formas pelas quais este ministério poderá realizar um serviço de amor reconhecido por uns e por outros» 59. Introduzir-se-á, então, o regulador da necessitas Ecclesiae 60, compreendido hoje como realização da unidade dos cristãos, para atenuar o que, no exercício do ministério petrino, poderia ser obstáculo ao ecumenismo.
16. Segundo o Cardeal Kasper, esta diligência não basta. É preciso ainda ultrapassar os obstáculos presentes nas comunidades separadas, por exemplo, a decretada invalidade das ordenações anglicanas 61. A pista que para isso propõe é uma redefinição do conceito de sucessão apostólica, não já «no sentido de uma cadeia histórica de imposição das mãos remontando através dos séculos a um Apóstolo — seria uma visão muito mecânica e individualista», mas como «participação colegial num colégio que, como um todo, remonta aos Apóstolos pela partilha da mesma fé apostólica e pela mesma missão apostólica» 62.
Capítulo II
OS PROBLEMAS DOUTRINAIS COLOCADOS PELO ECUMENISMO 63
17. A prática ecuménica deste pontificado repousa inteiramente sobre a distinção Igreja de Cristo / Igreja Católica, a qual permite avançar que, se a comunhão visível foi ferida por divisões eclesiais, a comunhão dos santos, considerada como partilha dos bens espirituais na comum união a Cristo, não foi quebrada. Ora, esta afirmação não se mantém perante a fé católica.
A Igreja de Cristo é a Igreja Católica
18. Nãos se pode distinguir a Igreja de Cristo da Igreja Católica, assim como supõe a prática ecuménica. Pelo próprio facto de ser considerada como realidade interior, essa “Igreja Corpo de Cristo”, distinta realmente da Igreja Católica, junta-se à noção protestante de uma «Igreja invisível para nós, visível só aos olhos de Deus» 64. É contrária aos ensinamentos constantes da Igreja. Leão XIII, falando da Igreja, afirma por exemplo: «é porque [a Igreja] é corpo que ela é visível aos nossos olhares» 65. Pio XI não diz outra coisa: «A Sua Igreja, Cristo Nosso Senhor estabeleceu-a como sociedade perfeita, exterior por natureza e perceptível aos sentidos» 66. Pio XII concluirá então: «É afastar-se da verdade divina imaginar uma Igreja que não se poderá ver nem tocar, que não seria senão “espiritual” (pneumaticum), na qual as numerosas comunidades cristãs, ainda que divididas entre si pela fé, seriam, apesar disso, reunidas por um laço invisível» 67.
19. Ora bem, a fé católica obriga a afirmar a identidade da Igreja de Cristo e da Igreja Católica. É o que faz Pio XII identificando «o Corpo Místico de Jesus Cristo» com «essa verdadeira Igreja de Jesus Cristo — a que é santa, católica, apostólica, romana» 68. Antes dele, o Magistério havia afirmado que «não há outra Igreja além da que, construída exclusivamente sobre Pedro, em um corpo unido e agrupado [entenda-se, visível], se ergue na unidade da fé e da caridade» 69. Recordemos, enfim, a exclamação de Pio IX: «Não há, com efeito, senão uma única religião verdadeira e santa, fundada e instituída por Cristo Nosso Senhor. Mãe e ama das virtudes, destruidora dos vícios, libertadora das almas, indicadora da verdadeira felicidade; chama-se: Católica, Apostólica e Romana» 70. No seguimento de um magistério constante e universal, o 1o esquema preparatório de Vaticano I tinha legitimidade para avançar este cânone condenatório: «Se alguém disser que a Igreja, a quem foram feitas as promessas divinas, não é uma sociedade (coetus) externa e visível de fiéis, mas uma sociedade espiritual de predestinados ou de justos só conhecidos de Deus, seja anátema» 71.
20. Por via de consequência, a proposição do Cardeal Kasper segundo a qual: «A verdadeira natureza da Igreja – a Igreja na qualidade de Corpo de Cristo – está escondida e não é apreendida senão pela fé» 72 é certamente herética. Acrescentar que «essa natureza apreensível unicamente pela fé se actualiza sob formas visíveis: na Palavra proclamada, na administração dos sacramentos, nos ministérios e no serviço cristão» 73 é insuficiente para dar conta da visibilidade da Igreja: “tornar-se visível” — ainda mais, por simples actos — não é “ser visível”.
A pertença à Igreja pela tripla unidade
21. Visto que a Igreja de Cristo é a Igreja Católica, não se pode afirmar com os partidários do ecumenismo que a tripla unidade de fé, de sacramentos e de comunhão hierárquica não é necessária senão unicamente à comunhão visível da Igreja, sendo esta asserção tomada no sentido de que: a ausência de um destes laços, se manifesta ruptura da comunhão visível da Igreja, não significa a separação vital da Igreja. É preciso, pelo contrário, afirmar que estes três laços são constitutivos da unidade da Igreja, não no sentido de que um só uniria à Igreja, mas pelo facto de que se um só destes três laços não for possuído in re vel saltem in voto74, aquele a quem ele faltaria estaria separado da Igreja e não beneficiaria da vida sobrenatural. É o que fé católica obriga a crer, tal como se mostra a seguir.
Unidade de fé
22. Se a necessidade da fé é por todos admitida 75, é necessário ainda precisar a natureza dessa fé que é necessária à salvação, logo, constitutiva da pertença à Igreja. Não é «este sentimento íntimo criado pela necessidade divina», denunciado por São Pio X 76, mas bem essa fé descrita pelo Concílio Vaticano I: «uma virtude sobrenatural pela qual, sob a inspiração e com o socorro da graça de Deus, cremos que o que nos foi revelado por Ele é verdadeiro: nós cremo- lo não por causa da verdade intrínseca das coisas vistas à luz natural da nossa razão, mas por causa da mesma autoridade de Deus que nos revela essas verdades, e que não pode enganar-Se nem enganar-nos» 77. É por isso que aquele que recusa nem que seja só uma verdade de fé conhecida como revelada perde totalmente a fé necessária à salvação: «Aquele que, mesmo sobre um só ponto, recusa o seu assentimento às verdades divinamente reveladas, realmente abdica completamente da fé, pois recusa submeter-se a Deus que é a soberana Verdade e o motivo próprio de fé» 78.
Unidade de governo
23. «A fim de manter sempre na Sua Igreja esta unidade de fé e de doutrina, Ele [Cristo] escolheu um homem entre todos os outros, Pedro...» 79: é assim que Pio IX apresenta a necessidade de unidade na cátedra de Pedro, «dogma da nossa divina religião [que] sempre foi pregado, defendido, afirmado com coração e voz unânimes pelos Padres e Concílios de todos os tempos.» No seguimento dos Padres, o mesmo Papa expõe: «é dela [a cátedra de Pedro] que decorrem, sobre todos os direitos à união divina 80; [...] aquele que a deixa não pode esperar permanecer na Igreja 81, aquele que come o Cordeiro fora dela não tem parte com Deus» 82. Daí a celebra palavra que Santo Agostinho dirige aos cismáticos: «O que é vosso, é que tivestes a impiedade de separar-vos de nós; porque, se em tudo o resto pensais e possuis a verdade, perseverando, apesar disso, na vossa separação [...] não vos falta senão o que falta àquele a quem a caridade faz falta» 83.
Unidade de sacramentos
24. «Quem crer e for baptizado será salvo» 84. Por esta palavra de Nosso Senhor, todos reconhecemos a necessidade, além da unidade de fé e de propósito, de uma «comunidade [...] de meios adequados ao propósito» 85 para constituir a unidade da Igreja: os sacramentos. Assim, tal é «a Igreja Católica [que Cristo instituiu], adquirida com o Seu Sangue, como única morada de Deus vivo [...] o corpo único animado e vivificado por um Espírito único, mantido na coesão e na concórdia pela unidade de fé, de esperança e de caridade, pelos laços dos sacramentos, do culto e da doutrina» 86.
Conclusão
25. A união deste triplo laço obriga, assim, a crer que «aquele que recusa ouvir a Igreja deve ser considerado, segundo a ordem do Senhor, “como pagão e publicano” (Mt 18,17) e aqueles que estão divididos por razões de fé ou de governo não podem viver nesse mesmo Corpo nem, por consequência, desse mesmo Espírito divino» 87.
Fora da Igreja não há salvação
Os não católicos são membros da Igreja?
26. Em consequência do que acaba de ser dito, a proposição seguinte: «aqueles [nascidos fora da Igreja Católica, logo, não podendo “ser acusados do pecado de divisão”] que crêem em Cristo e que receberam validamente o baptismo, encontram-se numa certa comunhão, se bem que imperfeita, com a Igreja Católica», a ponto de que «justificados pela fé recebida no baptismo, incorporados em Cristo, usam a justo título o nome de cristãos, e os filhos da Igreja Católica reconhecem-nos com razão como filhos do Senhor», enquanto que «divergências várias entre eles e a Igreja Católica sobre questões doutrinais, por vezes disciplinares, ou sobre a estrutura da Igreja, constituem numerosos obstáculos, por vezes muito graves» 88, deve ser cuidadosamente pesada; se essa proposição entende falar daqueles que permanecem nas suas divergências, contudo conhecidas deles mesmos, é contrária à fé católica. O inciso afirmando que «não podem ser acusados de pecado de divisão» é, pelo menos, temerário: permanecendo exteriormente em dissidência, nada indica que não aderem à divisão dos seus predecessores, a aparência levando sobretudo a crer o contrário. Presumir a boa fé não é aqui possível 89, conforme lembra Pio IX: «É necessário admitir de fé que, fora da Igreja Apostólica Romana, ninguém pode ser salvo. [...] No entanto é preciso reconhecer, por outro lado, com certeza, que aqueles que estão em relação à verdadeira religião numa ignorância invencível, não têm falta diante do Senhor. Agora, na verdade, quem irá, na sua presunção, até marcar as fronteiras dessa ignorância?» 90
Há elementos de santificação e de verdade nas comunidades separadas?
27. A afirmação segundo a qual «numerosos elementos de santificação e de verdade» 91 se encontram fora da Igreja, é equívoca. Supõe, com efeito, a eficácia santificante dos meios de salvação materialmente presentes nas Comunidades separadas. Ora, este propósito não pode ser afirmado sem distinção. Entre estes elementos, os que não exigem disposição específica da parte do sujeito – baptismo de uma criança – são efectivamente salvíficos, no sentido de que produzem eficazmente a graça na alma do baptizado, que então pertence à Igreja Católica de pleno direito, enquanto não atinge a idade das escolhas pessoais 92. Quanto aos outros elementos, que exigem disposições da parte do sujeito para serem eficazes, deve dizer-se que são salvíficas somente na medida em que o sujeito já é membro da Igreja pelo seu desejo implícito. É o que afirma a doutrina dos concílios. «Ela [a Igreja] professa que a unidade do corpo da Igreja tem tal poder, que os sacramentos da Igreja não tem utilidade em vista da salvação senão para aqueles que nela permanecem» 93. Ora, enquanto separadas, estas comunidades opõe-se ao desejo implícito, único que torna os sacramentos frutuosos. Não se pode dizer, portanto, dessas comunidades, que possuem elementos de santificação e de verdade, senão materialmente.
Serve-se o Espírito Santo das comunidades separadas como meios de salvação? As “Igrejas irmãs”
28. Não se pode afirmar que «o Espírito de Cristo não recusa servir-Se delas [das comunidades separadas] como meios de salvação» 94. Com efeito, afirma Santo Agostinho: «Não há senão uma Igreja, só ela chamada católica, e é ela que, nas comunidades separadas da sua unidade, engendra pela virtude o que, nessas seitas, permanece sua propriedade, seja o que for que ela ali possua» 95. A única coisa que estas comunidades separadas podem realizar por sua própria virtude é a separação dessas almas da unidade eclesial, como ainda indica Santo Agostinho: «Não é nada vosso [o baptismo], o que é vosso é que tendes sentimentos maus e práticas sacrílegas, e que tivestes a impiedade de vos separardes de nós» 96. Na medida em que põe em causa a afirmação segundo a qual a Igreja Católica é a única detentora dos meios de salvação, a asserção do documento conciliar está próxima da heresia: se, concedendo-lhes uma «significação e um valor no mistério da salvação» 97, reconhece a essas comunidades separadas uma quase legitimidade – tal como deixa entender a expressão “Igrejas irmãs” 98 — vai num sentido oposto à doutrina católica, porque nega a unicidade da Igreja Católica.
O que nos une é maior do que aquilo que nos separa?
29. A proposição permanece verdadeira materialmente, no sentido de que todos estes elementos são outros tantos pontos podendo servir de base a discussões visando a trazê-los para a única família. Se as Comunidades separadas não são formalmente detentoras dos elementos de santificação e de verdade – tal como foi dito mais atrás — a proposição segundo a qual «o que une os católicos aos dissidentes é maior do que aquilo que os separa» não pode ser formalmente verdade, e por isso Santo Agostinho diz: «Em muitos pontos eles estão comigo, somente em alguns não estão comigo; mas por causa destes certos pontos nos quais se separam de mim, não lhes serve de nada estarem comigo em tudo o resto» 99.
Conclusão
30. O ecumenismo não pode estar próximo senão da “teoria dos ramos”100 condenada pelo Magistério: «O seu fundamento [...] é tal que inverte de cima a baixo a constituição divina da Igreja» e a sua oração pela unidade, segundo «uma intenção profundamente manchada e infectada pela heresia, não pode ser absolutamente tolerada» 101.
Capítulo III - OS PROBLEMAS PASTORAIS CAUSADOS PELO ECUMENISMO
31. Além do facto de se apoiar em teses heterodoxas, o ecumenismo é nocivo para as almas, no sentido em que relativiza a fé católica, contudo indispensável à salvação, e perverte a Igreja Católica, única arca de salvação. A Igrejas Católica não age mais como farol da verdade que ilumina os corações e dissipa o erro, mas mergulha a humanidade na bruma do indiferentismo religioso, e em breve nas trevas da «apostasia silenciosa» 102.
O ecumenismo cria o relativismo da fé
Relativisa as fracturas operadas pelos heréticos
32. O diálogo ecuménico encobre o pecado contra a fé que o herético comete – razão formal da ruptura – para realçar o pecado contra a caridade, arbitrariamente imputado tanto ao herético como ao filho da Igreja. Chega, por fim, a negar o pecado contra a fé que constitui a heresia. É assim que João Paulo II, sobre a heresia monofisita, afirma: «As divisões que se produziram eram devidas em larga medida a mal-entendidos» 103, acrescentando: «As formulações doutrinais que se separam das fórmulas em uso [...] cobrem um conteúdo idêntico» 104. Tais afirmações negam na mesma proporção o Magistério, não obstante infalível, que condenou essas heresias.
Pretende que a fé da Igreja pode ser aperfeiçoada pelas “riquezas” do outro
33. Mesmo se o Concílio Vaticano II precisa, ainda que em termos bem moderados, a natureza do “enriquecimento” trazido pelo diálogo — «um conhecimento mais conforme à verdade, ao mesmo tempo que uma consideração mais justa do ensinamento e da vida de cada comunhão» 105 — a prática ecuménica deste pontificado deforma esta afirmação para fazer dela um enriquecimento da fé. A Igreja abandona um olhar parcial para apreender a realidade integralmente: «As polémicas e as controvérsias intolerantes transformaram em afirmações incompatíveis o que era de facto o resultado de dois olhares perscrutando a mesma realidade, mas de dois pontos de vista diferentes. É preciso encontrar hoje a fórmula que, apreendendo essa realidade integralmente, permite ultrapassar leituras parciais e eliminar interpretações erradas» 106. É assim que «a troca de dons entre Igrejas, na sua complementaridade, torna fecunda a comunhão» 107. Tais afirmações, se pressupõem que a Igreja não é definitivamente e integralmente depositária do tesouro da fé, não são conformes à doutrina tradicional da Igreja. Por isso o Magistério alertava contra essa falsa valorização das supostas riquezas do outro: «Regressando à Igreja, não perderão nada do bem que, pela graça de Deus, é realizado neles até ao presente, mas pelo seu regresso esse bem será mais (potius) completo e levado à perfeição. Evitar-se-á, todavia, falar sobre este ponto de tal maneira que, regressando à Igreja, eles imaginem trazer-lhe um elemento essencial que lhe teria faltado até aqui» 108.
Relativisa a adesão a certos dados da fé
34. A suposta «hierarquia das verdades da doutrina católica» 109 é certamente bem restabelecida teologicamente pela Congregação para a Doutrina da Fé: ela «significa que certos dogmas têm a sua razão de ser em outros que ocupam o primeiro lugar e os esclarecem. Mas todos os dogmas, pois que são revelados, devem igualmente ser cridos de fé divina» 110. No entanto, a prática ecuménica de João Paulo II liberta-se desta interpretação autêntica. Por exemplo, na sua mensagem à “Igreja” evangélica, sublinha “o que importa”: «Sabeis que, durante dezenas de anos, a minha vida foi marcada pela experiência dos desafios lançados ao cristianismo pelo ateísmo e pela incredulidade. Tenho tanto mais claramente diante dos olhos o que importa: a nossa comum profissão de Jesus Cristo. [...] Jesus é a salvação de nós todos. [...] Pela força do Espírito Santo, tornamo-nos seus irmãos, verdadeiramente e essencialmente filhos de Deus. [...] Graças à reflexão sobre a Confissão de Augsburgo e a múltiplos encontros, tomámos uma nova consciência do facto que juntos cremos e professamos tudo isso» 111. Leão XIII condena este tipo de prática ecuménica, que encontra o seu apogeu na Declaração sobre a Justificação: «Sustentam que é oportuno, para ganhar os corações dos desencaminhados, relativizar certos pontos de doutrina como sendo de menor importância, ou de os atenuar ao ponto de não lhes deixar o sentido ao qual a Igreja sempre se ateve. Não há necessidade de longos discursos para mostrar quanto é condenável uma tal concepção» 112.
Promove a “reforma permanente” das fórmulas de fé
35. A latitude que a prática ecuménica se atribui com as fórmulas dogmáticas já foi dita. Falta mostrar a importância deste procedimento no processo ecuménico: «O aprofundamento da comunhão numa reforma constante, realizado à luz da Tradição apostólica, é sem dúvida um dos traços distintivos mais importantes do ecumenismo. [...] O decreto sobre o ecumenismo (UR no 6) apresenta a maneira de formular a doutrina entre os elementos de reforma permanente» 113. Tal procedimento foi condenado por Pio XII: «Alguns entendem reduzir o mais possível a significação dos dogmas e libertar o próprio dogma da maneira de se exprimir em uso na Igreja desde hás longo tempo, e dos conceitos filosóficos em vigor entre os doutores católicos. [...] É claro [...] que estas tentativas não somente conduzem ao que eles chamam “relativismo” dogmático, mas já o contém de facto. [...] Decerto, não há ninguém que não veja que os termos para exprimir tais noções, e que são utilizados tanto nas escolas [teológicas] como pelo próprio Magistério da Igreja, podem ser melhorados e aperfeiçoados. [...] É igualmente claro que a Igreja não se pode ligar a qualquer sistema filosófico, cujo reinado só dura pouco tempo: mas o que durante séculos foi estabelecido pelo consentimento comum dos doutores católicos para chegar a uma certa compreensão do dogma, não repousa certamente sobre um fundamento tão frágil. [...] Por isso não é de espantar se certas destas noções não foram apenas usadas pelos concílios ecuménicos, mas igualmente foram por eles sancionadas, de modo que não é permitido afastar-se delas» 114.
Recusa ensinar sem ambiguidade o conteúdo integral da fé católica
36. O postulado ecuménico segundo o qual «o método e a maneira de exprimir a fé católica não devem de modo nenhum ser obstáculo ao diálogo com os irmãos» 115 teve como resultado declarações comuns assinadas solenemente, mas equívocas e ambivalentes. Na Declaração Comum sobre a Justificação, por exemplo, nunca é claramente ensinada a infusão da graça santificante 116 na alma do justo; a única frase aludindo-lhe, das mais desastradas, pode até levar a crer o contrário: «A graça santificante não se torna nunca uma posse da pessoa da qual esta última se poderia reclamar ante Deus» 117. Tais práticas não respeitam mais o dever de expor integralmente e sem ambiguidade a fé católica, como “devendo ser crida”: «A doutrina católica deve ser proposta totalmente e integralmente; não pode passar em silêncio ou encobrir em termos ambíguos o que a verdade católica ensina sobre a verdadeira natureza e as etapas da justificação, sobre a constituição da Igreja, sobre o primado de jurisdição do Pontífice Romano, sobre a única verdadeira união pelo regresso dos cristãos separados à única verdadeira Igreja de Cristo» 118.
Coloca em pé de igualdade os santos autênticos e os “santos” supostos
37. Publicando um martirológio comum às diferentes confissões cristãs, João Paulo II põe em pé de igualdade os santos autênticos e os “santos” supostos. É esquecer a frase de Santo Agostinho: «Se, permanecendo separado da Igreja, é perseguido por um inimigo de Cristo [...] e que o inimigo de Cristo diz ao separado da Igreja de Cristo: “Oferece incenso aos ídolos, adora os meus deuses”, e o mata porque ele não os adora, poderá derramar o seu sangue, mas não receber a coroa» 119. Se a Igreja deseja piedosamente que o irmão separado morto por Cristo tivesse a caridade perfeita, não o pode afirmar. No seu direito, presume que o “obex”, o obstáculo da separação visível, tenha sido um obstáculo ao acto de caridade perfeita que constitui o martírio. Não pode, assim, canonizá-lo nem inscrevê-lo no martirológio 120.
Provoca, portanto, a perda da fé
38. Relativista, evolucionista e ambíguo, este ecumenismo provoca directamente a perda da fé. A sua primeira vítima é o Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, Cardeal Kasper, ele mesmo, quando afirma, por exemplo, sobre a justificação, que «o nosso valor pessoal não depende das nossas obras, quer sejam boas ou más. Antes mesmo de agir, somos aceites e recebemos o “sim” de Deus» 121; ou ainda, a propósito da Missa e do sacerdócio, que «não é o padre que opera a transubstanciação: o padre pede ao Pai, a fim de que ela tenha lugar por operação do Espírito Santo. [...] A necessidade do ministério ordenado é um sinal que sugere e faz também apreciar a gratuitidade do sacramento eucarístico» 122.
O ecumenismo afasta da Igreja
39. Além de destruir a fé católica, o ecumenismo ainda desvia da Igreja os heréticos, os cismáticos e os infiéis.
Já não reclama a conversão dos heréticos e cismáticos
40. O movimento ecuménico já não procura a sua conversão e o seu regresso à «única família de Cristo, fora da qual se encontra certamente todo aquele não está em nada ligado a esta Santa Cátedra de Pedro» 123. Tal está claramente afirmado: «Nós rejeitamo-lo [o uniatismo] como método de procura da unidade. [...] A acção pastoral da Igreja Católica, tanto a Latina como a Oriental, já não tende a fazer passar os fiéis de uma Igreja para outra» 124. Daí a supressão da cerimónia de abjuração no caso de regresso de um herético à Igreja Católica. O Cardeal Kasper vai muito longe neste tipo de afirmações: «O ecumenismo não se faz renunciando à nossa própria tradição de fé. Nenhuma Igreja pode praticar essa renúncia» 125. Acrescenta ainda: «Podemos descrever o “ethos” próprio do ecumenismo de vida da maneira seguinte: renúncia a toda a forma de proselitismo aberto ou camuflado» 126. Tudo isso é radicalmente oposto à prática constante dos Papas através dos séculos, que sempre trabalharam pelo regresso dos dissidentes à única Igreja 127.
Cria igualitarismo entre as confissões cristãs
41. A prática ecuménica engendra um igualitarismo entre os católicos e outros cristãos, quando, por exemplo, João Paulo II se regozija com o facto de que «à expressão irmãos separados, o uso tende a substituir hoje termos mais aptos a evocar a profundidade da comunhão ligada ao carácter baptismal. [...] A consciência da pertença comum a Cristo aprofunda-se. [...] A “fraternidade universal” dos cristãos tornou-se uma firme convicção ecumênica» 128. Mais ainda, é a própria Igreja Católica que, praticamente, é colocada em pé de igualdade com as Comunidades separadas: já mencionámos a expressão “Igrejas irmãs”; João Paulo II regozija-se igualmente que «o Directório para a Aplicação dos Princípios e das Normas sobre o Ecumenismo chame as Comunidades às quais pertencem os cristãos das “Igrejas e Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.” [...] Relegando para o olvido as excomunhões do passado, as Comunidades, rivais numa época, ajudam-se hoje mutuamente» 129. Regozijar-se com isso, é esquecer que «reconhecer a qualidade de Igreja ao cisma de Photius e ao Anglicanismo [...] favorece o indiferentismo religioso [...] e pára a conversão dos não católicos à verdadeira e única Igreja» 130.
Humilha a Igreja e torna orgulhosos os dissidentes
42. A prática ecuménica dos arrependimentos dissuade os infiéis de se voltarem para a Igreja Católica, dada a falsa imagem que esta dá de si própria. Se é possível levar diante de Deus a falta daqueles que nos precederam 131, em compensação, a prática dos arrependimentos, tal como a conhecemos, deixa crer que é a Igreja Católica, enquanto tal, que é pecadora, pois é ela que pede perdão. O primeiro a crê-lo é o Cardeal Kasper: «[O Concílio Vaticano II] reconheceu que a Igreja Católica tinha uma responsabilidade na divisão dos cristãos e sublinhou que o restabelecimento da unidade supunha uma conversão de uns e outros ao Senhor» 132. Os textos justificativos, portanto, não fazem nada: a nota eclesial de santidade, tão poderosa para atrair as almas perdidas ao único lar, foi denegrida. Portanto, estes arrependimentos são gravemente imprudentes, porque humilham a Igreja Católica e provocam o orgulho nos dissidentes. Daí o alerta do Santo Ofício: «[Os bispos] impedirão cuidadosamente e com real insistência que, expondo a história da Reforma e dos Reformadores, muito se exagerem os defeitos dos Católicos e muito se dissimulem as faltas dos Reformadores, ou ainda que muito se exponham sobretudo elementos acidentais, que quase não se veja e não se sinta mais o que é essencial, a defecção da fé católica» 133DC no 1064, 12/3/950. col. 332.
Conclusão
43. Considerado sob o aspecto pastoral, deve dizer-se do ecumenismo destas últimas décadas que leva os católicos à apostasia silenciosa e que dissuade os não católicos de entrar na única arca de salvação. É preciso, portanto, reprovar «a impiedade daqueles que fecham aos homens a entrada no Reino dos Céus» 134. Sob cobertura de procurar a unidade, este ecumenismo dispersa as ovelhas; não tem a marca de Cristo, mas a do divisor por excelência, o diabo.
CONCLUSÃO GERAL
44. Por mais atraente que possa parecer à primeira vista, por mais espectaculares que possam mostrar-se na televisão as suas cerimónias, por mais numerosas que possam ser as multidões que reúne, a realidade permanece: o ecumenismo fez da cidade santa, que é a Igreja, uma cidade em ruínas. Marchando em perseguição de uma utopia – a unidade do género humano – este Papa não averiguou quanto o ecumenismo que perseguia era propriamente e tristemente revolucionário: inverte a ordem querida por Deus.
45. Revolucionário é, afirma-se revolucionário. Fica-se impressionado pela sucessão de textos que o lembram: «O aprofundamento da comunhão numa reforma constante [...] é sem dúvida um dos traços distintivos mais importantes do ecumenismo»135. «Retomando a ideia que o Papa João XXIII tinha exprimido na abertura do concílio, o decreto sobre o ecumenismo faz figurar a maneira de reformular a doutrina entre os elementos da reforma permanente»136. Por momentos, esta afirmação adorna-se com unção eclesiástica para se tornar “conversão”. Na ocorrência, a diferença importa pouco. Nos dois casos, é rejeitado o que preexiste: «“Convertei-vos”. Não há nenhuma aproximação ecuménica sem conversão e sem renovação. Não a conversão de uma confissão a outra. [...] Todos devem converter-se. Não devemos, portanto, perguntar primeiro “o que não está bem no outro”, mas “o que não está bem entre nós; por onde começar, entre nós, o trabalho?»137. O apelo ao povo que este ecumenismo reclama, é traço característico do seu aspecto revolucionário: «Na acção ecuménica, os fiéis da Igreja Católica [...] considerarão sobretudo com lealdade e atenção o que, na própria família católica, tem necessidade de ser renovado»138. Sim, verdadeiramente, nesta embriaguez de aggiornamento, a cabeça tem necessidade de ser ultrapassada pelos membros: «O movimento ecuménico é um processo um pouco complexo, e seria erro pensar, do lado católico, que tudo seja feito por Roma. [...] As instituições, os desafios devem também vir das Igrejas locais, e muito deve ser feito no nível local antes que a Igreja universal o faça seu»139.
46. Nestas tristes circunstâncias, como não ouvir o grito do Anjo em Fátima: «Penitência! Penitência! Penitência!»? Nesta marcha utópica, a meia volta deve ser radical. É urgente regressar à sábia experiência da Igreja, sintetizada aqui pelo Papa Pio XI: «A união dos cristãos não pode ser procurada de outro modo senão favorecendo o regresso dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, que outrora tiveram a infelicidade de abandonar»140. Tal é a verdadeira e caridosa pastoral para os desencaminhados, tal deve ser a oração da Igreja. «Desejamos que suba até Deus a súplica comum de todo o Corpo Místico (isto é, de toda a Igreja Católica], a fim de que todas as ovelhas errantes se reúnam mais brevemente ao único lar de Jesus Cristo» 141.
47. Esperando a hora feliz do regresso à razão, pela nossa parte guardamos o sábio aviso e a firme sabedoria recebidos do nosso fundador: «Queremos estar em unidade perfeita com o Santo Padre, mas na unidade da fé católica, porque só esta unidade nos pode reunir, e não uma espécie de união ecuménica, um género de ecumenismo liberal; porque creio que o que melhor define toda a crise da Igreja é, verdadeiramente, o espírito ecuménico liberal. Digo ecumenismo liberal, porque há um certo ecumenismo que, se bem definido, poderia ser aceitável. Mas o ecumenismo liberal, tal como é praticado pela Igreja actual, e sobretudo depois do Concílio Vaticano II, comporta necessariamente verdadeiras heresias» 142. Fazendo também subir a nossa súplica ao Céu, imploramos a Cristo pelo Seu Corpo que é a Igreja Católica, dizendo: «Salvum me fac, Domine, quoniam defecit sanctus, quoniam diminutae sunt veritatis a filiis hominum. Vana locuti sunt unusquisque ad proximum suum: labia dolosa in corde et corde locuti sunt. Disperdat Dominus universa labia dolosa et linguam magniloquam» 143.