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Considerações sobre o Amor Próprio

Retomamos aqui o fio das considerações tecidas em torno da irreligiosidade de nosso tempo e bem arrematadas, queremos crer, pelas vigorosas palavras do glorioso concílio ecumênico Vaticano I. Seguindo outra direção começaremos hoje pelas vicissitudes humanas na porta fechada do paraíso perdido pelo pecado de nossos primeiros pais.

 

Inventariemos a herança que nos vem pelo pecado original: a primeira e principal conseqüência do pecado de Adão é o próprio pecado original em nós. Atingida em seu vértice, ponto singular que a integra e a totaliza, a humanidade inteira foi atingida em cada um de seus membros. Nascemos com essa tara terrível que coloca o mais inocente e atraente dos recém-nascidos, segundo todos os padrões humanos, fora da comunhão dos santos e da amizade divina. À primeira vista parece pesada demais para o recém-nascido a tara do pecado original. Freqüentemente a nossa religião parecerá, aos espectadores do mundo, antipática e desumana. Para responder a esse eventual espectador de nossos passos e de nossos testemunhos, diríamos que, pela misericórdia de Deus e pela obra de Jesus, nada é mais leve e mais fácil do que a água do batismo que, pela força salutar do sangue de Jesus, apaga e extirpa da alma recém-nascida a pesada herança. Nos dias de sua passagem pelo mundo, Jesus disse que seu jugo era leve e suave; e disse bem, porque, para isto, Ele tomou sobre si todo o peso dos nossos pecados; não foi para Ele, leve a cruz que lhe puseram no ombro previamente flagelado, nem foram suaves para suas mãos e pés os pregos que o pregaram na Cruz. Para nós homens, e para nossa salvação, nada nos compete fazer na ordem sobrenatural; mas muita coisa teremos de fazer em nossa vida natural para que, no último dia possamos dizer como Paulo que “em mim não foi vã a graça de Deus”.

 

O leitor, evidentemente, não espera de nós um resumo, um comprimido do preciosíssimo Sangue, numa dúzia de mal traçadas linhas. Nossa intenção, hoje, é outra. Queremos estudar e transmitir alguma coisa sobre as conseqüências do pecado original em nossa natureza. Comecemos por dizer que as águas do batismo não apagam em nós as marcas naturais do pecado original. Mas é doutrina assentada, e muito densamente formulada no glorioso Concílio de Trento que, todos nós, descendentes de Adão, ainda que em estado de graça e em via de santificação, carregamos uma natureza decaída, em conseqüência do pecado original e por isso não podemos realizar nossos trabalhos naturais em todo o esplendor de nossa bela natureza feita à imagem e semelhança de Deus. (Vale a pena ler e reler os decretos do Concílio de Trento, especialmente o Decreto sobre o Pecado Original e Suas Conseqüências). Temos em nossa atual natureza decaída, a inteligência obnubilada e a vontade vacilante e enfraquecida; e para ainda mais nos fustigar, trazemos em nós uma natural tendência de fazer mal feitas as coisas que fazemos, e de nos afastar de Deus. Essa raiz de todos os pecados, terrível e traiçoeiro inimigo que, em conseqüência do pecado original, trazemos dentro de nós nos torna, segundo Santo Agostinho, mais semelhantes ao diabo que a Deus. Essa concentração das conseqüências do pecado original tem recebido ao longo da tradição católica vários nomes. Em São Paulo, o termo “carne” e a expressão “viver segundo a carne” são traduzidos por Santo Agostinho (Cidade de Deus) como desregrado amor de si mesmo, ou vontade de ser a sua própria lei. Assim, quando São Paulo nos diz “viver segundo a carne”, o autor de “Cidade de Deus” nos propõe a fórmula “vivere secundo seipsum” que bem exprime a fome de autonomia de nossa vontade própria que quer ser a sua própria lei, auto-nomia. Essa expressão e também esta outra “desregrado amor de si mesmo” são assumidas por Santo Tomás (I, IIae, Q. 25, a 4). Alguns autores medievais usaram a curiosa expressão fomes peccati, mas a grande tradição dominicana, principalmente em Santa Catarina de Sena, consagra o termo “amor-próprio” para designar este inimigo de nossa alma que tantas vezes confundimos com nossa virtude e nossa honra. Eis algumas amostras da doutrina de Santa Catarina: “O amor-próprio que destrói a caridade e o amor do próximo, é o princípio e fundamento de todo mal”...“É o amor-próprio que envenenou todos os homens e feriu o corpo místico da Santa Igreja”. Convém lembrar a exceção singular que devemos abrir para a Imaculada Conceição.

 

O Catecismo de Trento quando ensina que são três os cruéis inimigos da Igreja e da alma, volta ao termo Paulino e assim diz que esses três inimigos são “o mundo, o diabo e a carne”. Hoje parece-nos que é mais didático o trinômio “o mundo, o diabo e o amor-próprio”.

 

A rigor podemos dizer que as purgações e as purificações tão usadas pelos grandes autores espirituais designam o combate da alma com seus cruéis inimigos e especialmente a luta com o amor-próprio, o mais próximo e o mais traiçoeiro inimigo da alma que tantas vezes, com a colaboração do diabo e do mundo, tomamos como nossa virtude e nossa honra, e assim fazendo, a alma se crispa e se agarra ao inimigo que toma como o melhor de si mesmo.

 

Gostaríamos de escrever ou reescrever as páginas de Dois Amores e Duas Cidades, sobre esse fascinante problema que o mundo moderno e principalmente “a moderna Igreja” tão crassamente ignora. Cheguei mesmo a sonhar com um estudo mais alargado e aprofundado que trouxesse um subsídio para a moderna psicologia, e para o estudo da alma humana que hoje se desviou da tradição católica para procurar nas instâncias freudianas uma explicação do paradoxo que faz do animal racional o mais absurdo e menos razoável de todos os bípedes implumes.

 

O amor-próprio, nosso demônio interior, é o principal agente de todas as contradições humanas. Chesterton dizia que o dogma do pecado original é o mais patente e visível dos mistérios cristãos. Inimigo pessoal e, diríamos, diabólico da virtude da santa humildade, que é a base de todas as virtudes, “o amor-próprio” é a base de todos os vícios, e é o intrigante que, em nós mesmos, nos torna inimigos de Deus e conseguintemente, inimigo primeiro de nossa alma. O mundo moderno, nas pesquisas de psicologia profunda, desviou-se de toda a riqueza da tradição cristã, e por isso se extraviou numa fenomenologia do homem exterior. Erick Fromm no seu livro Sane Society, mais uma vez, depois de Man for Himself, distingue os dois amores de si mesmo, com os termos “self love” e “selfshness”. Não conhecendo as doutrinas trazidas por Santo Agostinho e Santo Tomás, Erick Fromm, depois de umas felizes aproximações se extravia e volta ao empirismo em que se atola toda a moderna pseudoprofunda psicologia. Não tendo força, tempo e vida para tão grande empreendimento, estamos à espera de que outro retome com mais vigor o estudo do “amor-próprio” e da verdadeira psicopatologia dos atos quotidianos; e assim consiga reencontrar a verdadeira psicologia profunda, que é impossível sem o apoio teológico desprezado por todos os modernistas.

 

 

O GLOBO, 01-07-1978.

 

 

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