O texto que ora publicamos é a resposta do articulista ao Padre Lucien, autor do livro Les Degrés d’autorité du magistère [Os graus de autoridade do magistério], em que este contesta a tese cara aos católicos tradicionais, qual seja, de que o Concílio Vaticano II não se valeu da infalibilidade, nem da indefectibilidade da Igreja, ao declarar o que se promulgara naquele concílio. Embora não esteja disponível em vernáculo a obra e os artigos do Padre Lucien acerca do tema, o dominicano Pierre-Marie expõe-nos com retidão e circunstância os argumentos utilizados por aquele; assim sendo, nada impede a leitura deste artigo, nem sua nímia compreensão, à falta da leitura do livro e artigos aos quais já referimos.
O magistério conciliar é infalível?
Pe. Pierre-Marie, O.P.
A posição do padre Lucien
O Padre Bernard Lucien considera o Concílio Vaticano II infalível, pelo menos nos “pontos centrais”. Eis o esquema da argumentação:
1. O magistério ordinário universal (MOU) da Igreja é infalível;
2. Ora, o Concílio Vaticano II exerceu o MOU nos pontos centrais;
3. Logo, o Concílio Vaticano II foi infalível, pelo menos nos “pontos centrais” do ensinamento.
1. Acerca da primeira proposição, descreve o Padre Lucien o MOU desta forma:
O “magistério ordinário e universal” é aquele exercido de forma usual, cotidiana, em cada época pelo papa e os bispos subordinados, com unanimidade moral.
Tal magistério é infalível, pois que propõe uma doutrina como revelada, ou necessariamente ligada à revelação, ou certa, ou para se conservar como definitiva 1.
2. No que tange à segunda proposição de seu raciocínio, eis o que afirma o Padre Lucien:
Algumas passagens do Vaticano II estão cobertas pela infalibilidade do magistério ordinário e universal. Tais são passagens em que a doutrina está diretamente afirmada, e em que esta doutrina se apresenta como revelada, ou necessariamente ligada à revelação, ou obrigatória de forma absoluta para todos os fiéis. Estas são de fato diversas maneiras de dizer que uma doutrina é para se crer (ou se conservar) de forma definitiva e de modo irrevogável 2.
Explica o Padre Lucien que se não deve confundir o MOU com “o cânon Leriniano” 3.
No Communitorium, declarou São Vicente de Lerins que há-de se crer no que se ensinou “em todo lugar, sempre e por todos (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus)” 4. Trata-se dum critério que permite afiançar a ortodoxia duma doutrina, i. é, que se repita durante certo tempo.
Nestas condições, o ensino ordinário de concílio, caso seja novo, não pode aspirar à infalibilidade.
O cônego René Berthod 5, Michel Martin 6 e Arnaud de Lassus 7 sobressaíram-se na defesa desta opinião.
O Padre Lucien combate tal opinião: não é preciso, diz ele, para que o MOU seja infalível, que o magistério se exerça durante um certo tempo. Basta que todos os bispos (unanimidade moral) num dado momento, ensinem a mesma doutrina como revelada ou necessariamente ligada à revelação, para que uma pessoa esteja na presença dum magistério infalível.
Ora, foi o que precisamente se deu no Concílio, pensa o Padre Lucien, no que tange aos pontos centrais do ensino.
3. Como terceira proposição de seu raciocínio, o Padre Lucien dá como exemplo o ensinamento central da declaração Dignitatis Humanae. Eis o que ele escreveu:
Sejamos exatos: o que aqui sustentamos, e diversos autores “tradicionalistas” negam, é que a infalibilidade do magistério ordinário e universal cobre a afirmação central de Dignitatis Humanae, afirmação contida no primeiro parágrafo de DH, 2, o qual transcrevemos:
“O Concílio Vaticano II declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Consiste esta liberdade em que todos os homens devem ser eximidos do constrangimento da parte de indivíduos, quanto da parte de grupos sociais ou de qualquer poder humano, de tal sorte que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra sua consciência, nem impedido de agir, nos justos limites, conforme sua consciência, tanto em privado como em público, sozinho ou associado a outrem. Além disso, declara que o direito à liberdade religiosa funda-se na dignidade mesma da pessoa humana, tal como fê-la conhecer a palavra de Deus e a própria razão.”
A análise literária elementar demonstra à evidência que esta passagem é verdadeiramente central na declaração, é a ela que se tem em vista. Demais, possuímos em registro uma confirmação quase oficial desta “centralidade”. A comissão teológica encarregada de examinar, acrescentar ou recusar as correções que demandavam os padres afirmou na declaração exarada quando da 164ª reunião geral (19 de novembro de 1965). [...]
“[Resposta da comissão] – O inteiro teor do texto faz-se necessário no lugar em que se encontra: é como que um ponto central da declaração. Além disso, já que se trata de ponto fundamental, não há por isso necessidade de argumentos.”
Assim, afirma a comissão que a passagem é o ponto central da declaração, e ela determina que a afirmação fundamental faz parte deste ponto central, sendo logo por si mesma necessária, não podendo relegá-lo ao simples papel de argumento 8.
Contrariamente ao Sr. Padre Lucien, pensamos que o ensinamento do Concílio não está coberto da infalibilidade do MOU 9. Fundamos a argumentação sobre dois pontos:
1. Para fazer parte do MOU, é preciso que o ensinamento se apresente como verdade para se crer ou se conservar de modo firme e definitivo. Ora, no Concílio, o ensinamento se não apresentou desta maneira.
2. O magistério ordinário e universal da Igreja é o ensinamento dos bispos dispersos. Ora, no Concílio, os bispos estavam reunidos.
Em seu livro, o Sr. Padre Lucien toma para si a segunda razão. Esta segunda é menos importante que a primeira, como explicamos em Le Sel de la terre 41 (p. 239): “Este ponto é secundário, pois que, desde o final do Concílio, os bispos agora dispersos continuam a ensinar os erros deste Concílio.”
A razão principal por que afirmamos que o MOU não cobre o ensinamento conciliar sobre a liberdade religiosa (por exemplo), é a de que o magistério conciliar não se apresenta no ensino das verdades a se crer ou a se conservar de modo firme e definitivo 10.
Dito isto, uma vez que o Padre Lucien criticou-nos a segunda razão [o magistério ordinário e universal da Igreja é o ensinamento dos bispos dispersos], vamos examinar seus argumentos. Se superiores aos nossos, não nos imiscuiremos de lhe dar razão.
Os argumentos de autoridade
Numa querela teológica, os argumentos de autoridade são os mais importantes. Citamos para defender nosso ponto de vista diversos autores, sobretudo o Concílio de Trento, Pio IX, os esquemas preparatórios dos dois últimos concílios e o DTC 11.
O Padre Lucien não examina esses textos. Contenta-se em conceder que uma “rápida leitura de vários textos oficiais (com autoridades diversas) pode dar a impressão de identificação entre o ‘magistério ordinário e universal’ e ‘magistério disperso’”. Acrescenta:
Enfim, encontram-se teólogos que, antes do Concílio Vaticano II, exprimiam-se como se houvesse identidade entre “magistério ordinário e universal” e “magistério disperso” [p. 170].
Reconhece o Padre Lucien que “vários textos oficiais” e “teólogos” exprimem-se como nós 12.
Para defender sua posição, o Padre Lucien limita-se a citar apenas um texto, uma intervenção de Mons. Zinelli, membro da deputação da fé, no Concílio Vaticano I:
O acordo dos bispos dispersos possui valor idêntico a quando estão reunidos: prometeu-se a assistência à união formal dos bispos, e não tão-somente à união material 13.
O texto pode impressionar. Mas quando uma pessoa observa o contexto, vê que Mons. Zinelli comenta um projeto de anátema acerca das definições solenes:
Se alguém diz que o assentimento da Igreja dispersa não possui valor de estatuir um dogma de fé, e que, em conseqüência, é necessário que os bispos se reunam para definir questões de fé e costume, que seja anátema 14.
Neste texto, Mons. Zinelli não fala como membro da deputação da fé, mas como bispo de Treviso. Contempla o caso em que alguém renunciaria definir o dogma da infalibilidade do papa (por causa da oposição dalguns bispos que julgavam tal definição inoportuna), propondo dar não obstante ensinamento acerca da questão (na forma de quatro cânones), de modo a convencer grande número de bispos. Neste projeto de anátema, vislumbra-se uma definição papal, a que se acorde ou apoie uma parte do episcopado. Explica que não é preciso reunir os bispos para fazer tal definição. Não fala do MOU, mas de condições que permitem ao papa fazer uma definição infalível.
O acordo entre os bispos dispersos sobre que se fala, é aqui um acordo dos bispos para permitir ao papa “estatuir um dogma de fé”, “definir as questões de fé e costumes”.
Não é o caso do magistério ordinário, entre cujos objetos não está o definir dogmas, mas o de transmitir a doutrina, e menos ainda o do magistério ordinário universal que é exercido pelo conjunto dos bispos, e não só pelo papa.
Por isso, não pode o Padre Lucien conferir autoridade a este texto para apoiar sua tese 15.
Poderíamos parar por aqui a discussão.
De fato, ao passo que temos muitos argumentos de autoridade em favor de nossa tese, o Padre Lucien não pode citar nenhum em favor da sua.
Todavia, como acusa-nos o Padre Lucien de “desconhecer completamente a verdadeira causa da infalibilidade do magistério universal, em cada época” 16, prossigamos ainda um pouco esta resenha.
A verdadeira causa da infalibilidade do MOU
Em Le Sel de la terre 35 (p. 48), escrevemos:
Quando todos os bispos dispersos sobre a terra ensinam a mesma doutrina como sendo de fé, é a razão da unanimidade tão-somente sua origem comum, a saber, a Tradição Apostólica. Se o ensinamento é comum, a só razão disso está em que se nutrem da mesma fonte: a Tradição Apostólica.
Mas se os bispos estão reunidos, alguém pode encontrar outros motivos para a unanimidade do ensinamento: pode existir pressões, influências 17, etc.. Precisamente, foi o que ocorreu no Concílio Vaticano II. Se uma pessoa perguntasse aos padres, antes de irem ao Concílio, quando estavam ainda dispersos, se a doutrina conciliar sobre a liberdade religiosa fazia parte da fé de suas Igrejas, é evidente que a maioria esmagadora, senão a unanimidade, responderia por uma negativa. Mas no Concílio, depois de quatro anos de pressão, de insistirem por seis vezes (no caso da declaração sobre a liberdade religiosa), conseguiram que quase todos se curvassem 18.
Comenta o Padre Lucien:
O Padre Pierre-Marie desconhece completamente a verdadeira causa da infalibilidade do magistério universal, em cada época. A causa é Nosso Senhor Jesus Cristo agindo sempre de forma atual, ao longo dos séculos, enquanto Cabeça da Igreja. Esta é a doutrina do Corpo Místico. Nosso Senhor age de modo permanente, invisível e visivelmente. Invisível, por si mesmo e pelo Espírito Santo que envia 19.
Antes nos parece que é o Padre Lucien que desconhece a natureza do magistério, e de forma mais geral a natureza da causalidade.
Nosso Senhor, cabeça e chefe da Igreja, assiste (pelo Espírito Santo) invisivelmente o magistério (“estarei convosco todos os dias” Mt 28, 20), mas isso não obriga os agentes segundos em seu modo humano e visível e agir.
Assiste invisivelmente o Espírito Santo a Igreja, de sorte a assegurar a transmissão visível da Revelação em cada época, de modo humano, de mão em mão 20, desde os Apóstolos até a nós.
Podemos constatar tal transmissão, e logo vejamos a unanimidade no ensinamento ordinário dos bispos de toda a terra, asseguramo-nos tanto pela razão 21 quanto pela fé 22 que este ensinamento remonta aos Apóstolos e faz parte da Revelação.
Temos agora o caso dos bispos reunidos em concílio.
Caso um concílio se equivoque numa definição (a que todos são obrigados a se submeter), a Igreja teria falhado: Nosso Senhor não o permitirá jamais, os concílios são infalíveis em suas definições 23.
Mas se um concílio ensina um erro sem o definir (e portanto sem o impor como obrigatório), alguns bispos (minoritários no concílio ou ausentes) poderiam resistir e continuar a transmissão da verdadeira fé, e, após certo tempo, reduzir seus colegas.
A indefectibilidade da Igreja não requer, de modo sistemático, a infalibilidade do magistério ordinário dos concílios, na mesma medida em que requer a do magistério ordinário dos bispos dispersos.
Foi isso que o Padre Lucien não entendeu: para ele, a reunião dos bispos em concílio ou sua dispersão pelas dioceses é uma diferença acidental 24.
Realmente, essa diferença não é acidental aos olhos da fé, uma vez que em um dos casos estão implicados todos os bispos, e a indefectibilidade da Igreja está diretamente comprometida (se todos os bispos do mundo se enganam em seu magistério ordinário, a Igreja não teria conservado a fé), enquanto que no outro caso não estão implicados todos os bispos, e logo não se compromete a indefectibilidade (se um concílio se engana num ensinamento ordinário, alguns bispos podem resistir e reduzir seus colegas) 25.
Esta diferença não é tampouco acidental aos olhos da razão. Explicamos como se exercem pressão num concílio. Provavelmente, é o motivo por que o papa Pio XI, bem aconselhado pelo cardeal Billot, renunciou a convocação dum concílio:
Sabe-se que o Concílio Vaticano I haveria de se interromper por causa da guerra de 1870. Pio XI, que desejava prosseguir com os trabalhos do concílio, consultara os cardinais sobre a oportunidade de convocar os bispos para concluir o Vaticano I. Segundo as pesquisas de Giovanni Caprile, vinte e seis resposta se conservaram nos arquivos vaticanos. Somente dois cardeais responderam pela negativa: o cardeal austríaco Andreas Früthwirth O.P. (1845-1933) e o cardeal Billot, S.J.. O argumento de Billot está cada dia mais atual, pois parece descrever – com quarenta anos de antecedência – o clima e a atmosfera do Vaticano II. “Parece, considera Billot, que a era dos concílios ecumênicos está totalmente acabada, em razão das dificuldades e perigos que comportam, sobretudo: o prolongamento excessivo dos debates; o grande número de participantes; a dificuldade dos padres em guardar segredo, assediados por uma chusma de jornalistas de todos os países, municiados dos meios que a ciência e os costumes moderníssimos põem a sua disposição; a repercussão imediata, fora da aula conciliar, da menor das discussões, da menor polêmica; a preponderância dalguns blocos nacionais; a duração excessiva do conjunto do Concílio; o perigo dos elementos extremistas – os modernistas – se aproveitarem do Concílio “para fazer a revolução, um novo 1789, objeto de seus sonhos e esperanças”. (O texto entre aspas é da pluma do cardeal Billot: ver La Pensée Catholique nº 170, setembro-outubro 1977, p. 48 e 49). Que diria Billot assistindo ao Concílio Vaticano II, manipulado pelos periti, influenciado pelos “marx-midia”, invadido pelas coortes germânicas que preparavam a Revolução de Outubro? 26
Da infalibilidade do magistério ordinário num concílio
Das precedentes explicações, não se deve tirar conclusões apressadas, de que o magistério ordinário jamais seria infalível por ocasião dum concílio.
Realmente, participa o concílio da infalibilidade papal 27: no caso das definições, participa da infalibilidade papal falando ex cathedra; afora as definições, é infalível como papa em seu magistério ordinário.
Ora, o magistério ordinário do papa pode ser infalível. Sobre este ponto a posição de Dom Paul Nau parece-nos equilibrada: para que haja infalibilidade, é preciso continuidade e coerência do ensinamento pontifical 28. Em conseqüência, o magistério ordinário pontifical deve se repetir durante um certo tempo para ser infalível 29.
Assim, para que o magistério ordinário dum concílio seja infalível, forçoso é que haja continuidade e coerência do ensinamento conciliar 30.
Imagina o Padre Lucien que o ensinamento ordinário dum concílio é infalível nos “pontos centrais”, conceito novo e difícil de captar. Se por “ponto central” entende ele as definições, estaríamos de acordo. Mas neste caso, Dignatis humanae não é infalível, porque o papa Paulo VI admitia que o Concílio “evitou a promulgação de definições dogmáticas solenes que se valesse da infalibilidade do magistério eclesiástico” 31.
Todavia, notemos que o magistério ordinário conciliar, até quando não infalível, tem excelente autoridade. Diga-se o mesmo do magistério ordinário do papa nos documentos mais importantes (como uma grande encíclica). Alguns teólogos chegam a pensar que nunca se permitira a um mero fiel criticar tal ensinamento 32.
Eis porque, para que se nos permita contestar o Vaticano II, expusemos outros argumentos com antecedência 33.
Concluindo, as considerações do Padre Lucien se nos deparam bem frágeis; continuamos a pensar que fora possível ao Vaticano II enganar-se, até nos “pontos centrais” de seu ensinamento.
O Padre Lucien exagera a autoridade do Concílio; nesta exageração, está próximo aos sedevacantistas, a ponto de amiúde remeter pura e simplesmente a suas obras para criticar nossa posição 34.
Neste primeiro erro acerca da autoridade do Concílio, acrescenta o Padre Lucien outro: pensa ele que a declaração Dignitatis Humanae não está errada em seu “ponto central”.
Refutamos em diversas ocasiões tal erro, explicando os sofismas do Padre Lucien 35. Sobre este ponto, não encetou debate conosco. Não há nada que responder?
(Tradução: Permanência)