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Ciência e Fé

Todos nós sabemos que é impossível viver uma sombra do cristianismo se não cremos num Deus pessoal, e se não cremos ou não compreendemos que nossa alma ultrapassa o nível ontológico do mundo físico. Já o simples senso comum nos adverte que é fútil limitar a realidade ao campo direto ou indireto de nossos sentidos. Seria estranho, estranhíssimo que a totalidade do ser tivesse a medida do homem sem ter sido o homem o Criador de tal totalidade. É absolutamente inconcebível o materialismo, que só se sustenta porque seus adeptos se detêm, e se detêm precisamente no ponto em que era vitalmente decisivo o avanço. É tola, fátua ou desvairadamente soberba a atitude de quem imagina um só instante que a totalidade do ser, o real total, o que existe, o “tudo” se limita aos níveis de percepção de nossa sensibilidade. Para o empirista, o real absoluto e total, deus de si mesmo, criador e sustentador de sua própria substância, não pode exceder os limites de nossa percepção sensível. Haverá maior audácia, maior extravagância do que esta mesquinharia?

Vale a pena considerar mais de perto esta bizarra retração mental que se acantona no real sensível e se nutre do sacramento do fenômeno, isto é, do encadeamento de fatos observados no mundo sensível. Chamam de progresso esse estado acabrunhante que se mede por pequenas satisfações colhidas do domínio do mundo inferior. Relembro Platão a dizer que a admiração é o começo da Filosofia, e transponho a sentença para o domínio da Fé. A razão humana só guarda aptidão de filosofar, e de crer na Trindade, na divina maternidade de Maria, na Encarnação e na Ressurreição de Cristo, enquanto conserva a capacidade anterior de se admirar. Ora, uma das coisas que o mundo exteriorizado e agitado produz é o aturdimento que embota a admiração. E aqui neste ponto vale a pena realçar o funesto papel do cientificismo e do tecnicismo: essas duas atmosferas culturais viciam o homem prendendo-o à visão próxima e estrita do encadeamento dos fenômenos. Quem vive e respira esse ar fica atrofiado, doente, reumático. Faltam-lhe olhos de ver mais longe, falta-lhe até pescoço para deixar que a cabeça se eleve. Não precisa ser cientista ou técnico; se vive na cultura que só valoriza essa concatenação, esse imediatismo de causas, não terá ânimo, coragem, esperança para alongar os olhos da alma para as causas primeiras e últimas. Receio que essa raça de homens vigorosamente horizontalizados um dia venha a esquecer que o céu tem estrelas. E é isto que chamam de progresso? Passam a plaina do critério científico em torno de si, e pensam que estão mais ligados ao real do que os homens dos séculos passados, que admiravam, que rezavam e que adoravam um Deus pessoal, e pessoalmente interessado nos fios de cabelo, e nos lírios dos campos. Reduzem o real, retraem o espírito, amordaçam o coração, e terminada esta tarefa nos vêm dizer com enorme satisfação que são homens modernos.
 
A que coisa se referem os escritores católicos ou protestantes quando contrapõem a Ciência às formulações clássicas da Fé? Se se trata das disciplinas que estudam os fenômenos, suas concatenações e seus parâmetros mensuráveis, não existe Ciência, e sim ciências, cada uma em seu campo e com seus métodos. Essas ciências se comunicam, se ajudam numa certa direção, mas não nos proporcionam síntese alguma merecedora do singular e da maiúscula, a não ser que reduzamos todo o quadro fenomenológico de uma ciência ao de outra, anterior, e mais simples. 0 biólogo precisa conhecer química, física e matemática, mas deixará de ser biólogo no momento em que se convencer de que todos os fenômenos da vida se reduzem à química, ou à mecânica. Qual dessas ciências poderá contrapor-se a um dado da Fé? Poderá a fé na Trindade ser objetada por um químico em vista das últimas experiências feitas na síntese das proteínas, como as descobertas de Jacob e Monod? Poderá a virgindade de Maria ser contestada por astrônomos ou por botânicos? Em certas circunstâncias, pareceu ao mundo civilizado que a descoberta de habitantes humanos na América e nas ilhas da Polinésia constituía um óbice ao dogma do pecado original e do monogenismo. Mais tarde surgiram fortes indícios de que não eram autóctones os habitantes da América encontrados pelos descobridores europeus, e sim migrantes asiáticos que em vários pontos e de vários modos atravessaram o Pacífico. Mas suponhamos que esse passo não tivesse sido dado e que ainda permanecêssemos na falta de informações sobre os selvagens americanos. Seria lícito dizer que a ciência tirava desta falta de informações uma prova da impossibilidade da migração? Já mencionamos há pouco os equívocos produzidos pela má interpretação dos achados paleontológicos e já vimos que essa pobre ciência que opera sobre vestígios e sinais não tem competência para afirmar um fato, muito menos quando se trata de uma averiguação que escapa ao domínio do fenômeno observável. Julgar por sua semelhança anatômica que uma ossada pertenceu a um homem é plausível. Jurar que efetivamente foi um animal especificamente racional que nos legou sua caveira é inteiramente insensato. Tal afirmação escapa inteiramente à jurisdição das ciências da natureza física. Como pode então alguma ciência, ou como podem todas as ciências juntas, numa espécie de Congresso, impugnar as verdades da Fé? O contrário já tem sido feito. A fé já deixou os cientistas sem resposta nos milagres de Lourdes; mas não há um só dos chamados “milagres da ciência” que tenha a virtude de incomodar uma consciência católica.
 
O verdadeiro cientista deve ser marcado por uma confiança e por uma dúvida, confiança na experiência que leva o fenômeno à evidência, e dúvida em relação principalmente às conclusões e às correlações.
 
De qualquer modo, e para não nos alongarmos demasiadamente neste problema epistemológico, podemos dizer que a humildade (e o brio) do cientista está nessa espécie de dúvida. Não deverá dizer que a ciência se apóia em si mesma e em coisa nenhuma, mas pode perfeitamente reconhecer que seus itinerários são trôpegos e tateantes. Como querer trazer para outros domínios tais critérios? Os tolos, como costumam ser em sua maioria os progressistas, pensam que a Ciência nos dá certezas eternas e absolutas, ou então certezas válidas para determinada conversatio cultural, e por isso se entende que queiram trazer para os domínios da fé o “espírito científico” da análise empireológica. Para uma pessoa familiarizada com o ambiente de verdadeiros cientistas, é inadmissível tal qüiproquó. A mesma inteligência que sente, que até exagera a fragilidade das flores que colhe no seu campo não tem razão nenhuma para tentar trazer o amargo da dúvida para os fundamentos das verdades reveladas, a menos que ponha em dúvida a totalidade da religião, a começar por sua presunção à origem divina.
 
É impossível, então, falar de fé e de ciência nos mesmos anfiteatros, porque é impossível falar das coisas de Deus sem a admiração ingênua das crianças. (“Quem não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele”, Luc. XVIII, 17). (1976)
 
(PERMANÊNCIA, 1990, julho-agosto, números 260/261.)

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