Uma das palavras que mais amiúde citamos, é o "vivo ergo jam non ergo, vivit vero in me Christus." (Gal. 2, 20). Repetição plenamente justificada, porque não existe talvez passagem das Epístolas que expresse mais ao vivo a alma do Apóstolo e possa também propor à nossa imitação mais sublime ideal de vida; repetição, porém, que, por sua própria freqüência, talvez algo tenha empanado o brilho do texto e vedado o seu significado mais profundo. Tão profundo entretanto é este significado, que vem propor ao teólogo um dos problemas mais interessantes e mais árduos que lhe possam solicitar a sagacidade. O teólogo com efeito — por felicidade e desdita sua! — não se contenta de repetir as sentenças bíblicas, nem mesmo de crê-las cegamente, ele deseja entendê-las e entendê-las o melhor possível, logo conhecer-lhes o por quê e o como. Fides quaerens intellectum, este legado do primeiro dos grandes escolásticos, deve continuar mesmo no século vigésimo, a ser o lema de todo teólogo digno desse nome; não é supérfluo recordá-lo quando assistimos a tantas tentativas para transformar a ciência teológica em uma mistura de exegese, de patrística e de história dos dogmas. Fides quaerens intellectum... o teólogo não ignora sem dúvida que, cedo ou tarde (mais cedo do que tarde!), será obrigado a se deter diante do mistério insondável; acredita, porém, que um progresso na intelecção, por mínimo que seja, constitui um antegozo daquela visão na qual conhecemos o Senhor como dEle somos conhecidos.
Interrogando, pois, um principiante em teologia sobre o sentido do "vivo jam non ego", obteríamos sem dúvida a boa resposta seguinte: a vida é princípio intrínseco de operações; como o corpo de Paulo vivia naturalmente pela alma de Paulo, assim a alma do Apóstolo, por sua vez, vivia sobrenaturalmente pela graça de Cristo, participação à vida divina que, ao movimentar-lhe as potências, tornava-se fonte de operações divinas.
Interrogando em seguida um aluno mais adiantado no estudo da ciência sagrada, obteríamos uma nova resposta, que tentaria aprofundar a precedente, explicitando o "como" da participação à vida divina pela graça. Explicar-nos-ia o futuro teólogo que participar da divindade não consiste em partilhar-lhe a essência. Deve ser considerada pura quimera aquela partícula da natureza divina, aquela centelha incriada que, segundo Mestre Eckart, brilharia no ápice de nossa mente, divinizando-a. A graça, em verdade, pertence à ordem dos acidentes, sua função é elevar e ordenar nossa alma à vida profunda de Deus, por uma relação de conhecimento e de amor, de maneira que esta vida divina, no que tem de mais íntimo — a Trindade — torne-se objeto a ser contemplado e possuído pela nossa inteligência e pela nossa vontade. Portanto, a inteligência iluminada pela fé e a vontade inflamada pela caridade, nos unem desde já — se bem incoativamente — à vida da SS. Trindade.
Todavia, nem esta segunda resposta, conquanto exata, satisfaz plenamente, porque sendo de ordem geral, não parece aclarar o caso particular de S. Paulo. Com efeito, o Apóstolo não alude apenas àquela união com Cristo que é comum a todos os fiéis, mas a uma especial transformação em Cristo, mercê da qual não só Cristo nele vivia — como vive nos demais fiéis — mas ainda Paulo não mais vivia, o que não se verifica de todos os fiéis. Uma simples elevação ou ordenação da vida humana ao nível do divino, não constitui, no sentido pleno da palavra, transformação da vida humana em vida divina. Outra coisa é divinização, como participação ao divino, outra coisa divinização como transformação do humano em divino. A esta dificuldade, responderia sem dúvida o aprendiz teólogo que, em última análise, é a mesma vida sobrenatural que, iniciada no batismo, atinge o seu completo desenvolvimento no cenícola. A diferença reside tão somente no grau de intensidade. Ora, S. Paulo não era cristão ordinário, mas cristão perfeitíssimo, no qual a vida da graça chegara ao máximo compatível com a condição de viageiro. Não é de espantar, portanto, que a sua vida humana houvesse sido como que transformada na vida de Cristo Deus.
De acordo. Eis, porém, que esta terceira resposta vem suscitar uma nova e embaraçante questão: como se processa, concretamente, esta transformação? À quarta pergunta o aluno de teologia não saberia, por certo, responder e quiçá tampouco saberia o seu professor. Felizmente um Doutor da Igreja respondeu por nós. S. João da Cruz, com efeito, desvendou na sua vigorosa plenitude o texto de S. Paulo que nos preocupa. Depois de explicar como a alma santa tem o seu Amado, Cristo, delineado na inteligência pelas verdades da fé, e na vontade pelo fogo da caridade, prossegue o Doutor Místico: "o semblante do Amado tão fiel e vivamente se retrata na vontade quando existe união de amor, que é verdade dizer que o amado vive no amante e o amante no amado. O amor, ao transformar os amigos, torna-os a tal ponto semelhantes que cada qual, pode-se dizer, é o outro e ambos são um só. Com efeito, na união e transformação de amor, um dá posse de si ao outro e assim cada um vive no outro, um é o outro e ambos são um só pela transformação de amor. É o que quis dar a entender S. Paulo ao dizer: "vivo autem jam no ego, vivit vero in me Christus" porque, afirmando "vivo, porém não vivo eu", significava que apesar de viver, a sua vida não era sua, era mais divina do que humana, já que ele estava transformado em Cristo. Por isso adianta que não vivia ele, mas sim Cristo nele, de maneira que sua vida e a a vida de Cristo eram uma só vida, pela união de amor." (Cântico, estrofe 11, verso 5).
Realizamos um novo e importante progresso; à questão: "como se processa a transformação da vida humana da alma em vida divina de Cristo", estamos agora em medida de responder: a alma se transforma pela união de amor.
Que haja transformação, não apenas metafórica mas propriamente falando, tal é a doutrina constante de S. João da Cruz. Poderíamos aduzir, além do texto acima, muitos outros; bastará citar mais um apenas, particularmente claro: "o matrimônio espiritual é um estado muito superior ao desposório, porque é uma transformação total no Amado... união pela qual a alma torna-se divina e Deus por participação, quanto é possível nesta vida... consumado o matrimônio espiritual entre Deus e a alma, são duas naturezas em um só espírito e amor de Deus." (Cântico, estr. 27, v. 1). Donde resulta com evidência que o "vivo ego jam non ego" não deve ser interpretado apenas como uma sublime exclamação proferida num arroubo de entusiasmo, mas deve ser aceito no sentido mais próprio e mais forte das palavras, como expressão da pura verdade: transformação da vida humana de Paulo na vida divina de Cristo, pelo perfeito amor de Cristo por Paulo e de Paulo por Cristo. É compreensível aliás que o amor de Deus acima de todas as coisas, primeiro e principal mandamento, seja o instrumento da nossa deificação, o meio formal de atingirmos a maior perfeição acessível ao viageiro.
Entretanto, a santa e insaciável curiosidade do teólogo não se dá ainda por apagada. Surge uma quinta pergunta: admitido que a transformação da alma em Deus se processe pelo amor, resta saber como o amor pode realizar obra tão assombrosa. Embaraçante quesito, ao qual tentaremos esboçar uma resposta.
De início, dois pontos parecem fora de toda dúvida:
1o. É óbvio que a transformação mística não se processa sobre o plano da essência; desaparece pois todo e qualquer perigo de panteísmo porquanto a substância da alma não se torna divina, nem tampouco a alma e Deus se fundem em uma só essência, permanecem "duas naturezas", o que é único é o amor ("em um só espírito e amor de Deus") sobre cujo plano se processa a transformação, graças à união afetiva. Logo, na medida em que lograremos perceber como o amor consegue transformar no ser amado o ser que ama, na mesma medida vislumbraremos algo da transformação da alma em Deus. Vislumbraremos, digo, porque os místico de todos os tempos e de todas as escolas insistem de comum acordo sobre a inefabilidade e a transcendência de sua experiência, afirmando que ela se encontra acima de tudo quanto dizer e pensar se possa. Se, pois, a compreensão plena de tão elevado assunto está fora do alcance do teólogo, todavia algo lobrigar — embora pouco e obscuro — é sempre preferível a nada saber.
2o. É igualmente claro que o amor místico não é amor sensual nem mesmo amor espiritual de ordem natural, como, por exemplo, a amizade virtuosa. Sem embargo, já que Sto. Agostinho não se pejou de buscar no amor uma imagem, por longínqua que fosse, da processão do Espírito Santo, com maioria de razão a análise da união afetiva natural poderá ministrar-nos uma analogia — imperfeita, porém fecunda — do amor místico. Donde, nos escritos dos autores espirituais, o freqüente recurso às imagens nupciais, com espanto e por vezes escândalo de quem não consegue elevar-se acima da carne e do sangue.
1. A união afetiva natural
Por que amamos? Porque tal bem concreto nos alicia, nos seduz, nos atrai. E se nos atrai é porque existe certa conformidade entre aquele bem e o que desejamos — talvez secretamente — como podendo levar nosso ser a uma perfeição maior. Daí certas simpatias súbitas e, à primeira vista, inexplicáveis. Apenas percebido, consciente ou subconscientemente, um bem que nos convenha, este nos faz vibrar, provoca ressonâncias em toda a nossa psique, e desperta na nossa vontade um impulso que para ele nos inclina. Impulso, inclinação, atração (pondus amoris, dizia Sto. Agostinho) eis o que constitui a presença do amado no amante. Como se vê, a presença afetiva muito difere da presença das coisas na nossa inteligência. A idéia é a coisa presente em nós na ordem representativa, isto é, como objeto de contemplação, como conquista nossa, presa nossa. A inteligência é justamente a função que nos permite apoderar-nos dos seres para reiterá-los em nós, fazendo-os viver em nosso espírito. Ao contrário, o ser amado está em nós, na ordem afetiva, como princípio de uma atividade cujo termo será a união real com a coisa e não com uma simples idéia. O mais egocêntrico dos amantes, aquele que só almeja gozar do objeto amado, começou entretanto por ser dominado, fascinado, subjugado pelos atrativos do bem exterior a ele. A inteligência se apodera da coisa, mas a coisa se apodera da vontade. Pela inteligência possuímos a semelhança mental do objeto em nós, pelo amor somos forçados a sair de nós para ir ter com o próprio objeto e a ele nos juntar. Como bem explica S. Boaventura (I Sent., d. 10, a. 1, q. 2, sed contra 2) esta saída de si — este "êxtase" diria o Areopagita — não deve ser entendido fisicamente, como se o amor fosse uma espécie de fluído emanado da pessoa e indo ao encontro do objeto. O "êxtase" consiste na inclinação imanente para um objeto real precisamente enquanto ele existe fora de nosso espírito, a fim de a ele ulteriormente nos unir, seja pelo dom (amor desinteressado ou "puro") seja pela posse (amor egocêntrico ou de concupiscência). Num e noutro caso, quem ama vive naquele que ama. Em se tratando do amor egocêntrico, esse viver no objeto amado significa não se contentar com a posse superficial e exterior, mas procurar um gozo cada vez mais profundo e total; no amor desinteressado, ao contrário, de tal modo nos identificamos com o bem ou o mal do amigo, que no amigo gozamos e nele sofremos. (Sto. Tomás, I-IIae, q. 28, a. 2).
Quais serão as conseqüências do movimento de "êxtase", em se tratando da amizade perfeita que, por hipótese, alguém votar a uma pessoa cuja imensa superioridade moral ele reconhecer? Será o mais absoluto dom de si, que se manifestará pela mobilização completa de suas energias em prol do amigo, pela tendência a se identificar de mais a mais com ele, conformando as idéias, os gostos, os quereres aos do amigo, partilhando-lhe as alegrias e as agruras. Relembremos os grande movimentos religiosas: em torno do profeta, do reformador, do fundador, surgem as figuras dos discípulos que só anseiam por plasmar a sua personalidade à semelhança daqueles que amam. Por amor pelo Mestre, adotam-lhe as concepções, os afetos, as normas de conduta, o vestuário até. Comportam-se em tudo como se comportaria ele, reproduzindo-lhe a vida. O que é a conversão, a não ser a transformação moral, operada sob o influxo de uma personalidade eminente do passado ou do presente? Dois grandes filósofos contemporâneos, Max Scheller e Henri Bergson, colocaram em especial relevo este papel criador e renovador das personalidades de elite, na evolução moral da humanidade. Mesmo deixando de lado o influxo desses indivíduos excepcionais, podemos verificar a cada passo, na vida quotidiana, a força transformadora do amor. Quantos modos de pensar e de sentir abraçamos, não já pelo seu intrínseco valor, mas simplesmente porque são modos de sentir e de pensar daqueles que nos são caros?
Um psiquiatra americano, Samuel D. Hartwell, que se dedicou à nobre tarefa de reeducar meninos delinqüentes, muito insiste, no volume no qual enfeixou algumas de suas experiências, sobre a necessidade de estabelecer entre o psiquiatra e a criança uma relação de pessoa a pessoa, e, nos casos mais graves, um contato que atinja o eu profundo do paciente, de maneira que este aceite as concepções e as normas de conduta que o médico lhe inculcar, não mais pelo valor objetivo que possam ter, mas por simples sugestão ativa, porque são as concepções e norma de um amigo no qual o menino confia. Faltando o laço afetivo, verifica-se que os mais eloqüentes apelos, os mais impecáveis raciocínios, são tão pouco eficazes como as setas que o selvagem atiraria contra o sol. Estabelecido este laço, obtêm-se em compensação radicais transformações na mentalidade e na conduta socialmente inadaptadas.
II. O amor assimilante do místico por Deus
Se tal é a força assimiladora do amor, que impele quem ama a se identificar com o ser amado, e se a identificação é tanto mais estreita quanto mais profundo é o amor, podemos antever que o amor místico levará ao auge esta tendência, porquanto é o afeto mais total e veemente que conceber se possa, tendo por objeto a suma amabilidade: Deus uno e trino. Inflamado por esta chama, o místico só anseia por sair de si para em Deus ser perder, fazendo-lhe entrega de sua alma com todas as suas atividades. Este "sair de si" — tão fácil de se dizer e tão árduo de se praticar — dá um sentido positivo a tudo quanto no itinerário místico é aparentemente negativo. Renunciar não só ao pecado que é fruto do egoísmo, como ainda desapropriar-se de todo o criado, mesmo dos bens que mais legitimamente se possui, é certamente sair de si para se perder no Amado, tudo Lhe reservando, ao ponto de recusar um pensamento sequer ao que não seja para Deus, ao ponto de afugentar uma lembrança sequer que se não refira a Deus, ao ponto de negar uma parcela sequer de amor ao que não seja Deus. Porque, como poderia sinceramente chamar a Deus "Amado", quem não estivesse todo inteiro nEle perdido, não tendo coração para si mesmo nem para coisa alguma fora dEle? (Cântico, estr. 9, v. 3). Amar a Deus de verdade consiste em não se contentar com algo que não seja Deus. Eis por que o místico embevecido de amor tornar-se alheio a tudo quanto é terreno.
Sair de si é ainda submeter-se a um longo trabalho de simplificação interior, visando desligar as energias psíquicas de seus objetos habituais, para mobilizá-los em prol do amor. Assim, ao tratar com Deus, a alma deixa a meditação discursiva que lhe é natural, em busca duma contemplação intuitiva que é atenção cheia de afeto, simples, cândida, como quem abre os olhos a fim de olhar com amor (Llama, estr. 3, v. 3, § 6). O que mais necessitamos para progredir é calar-nos junto de Deus quanto aos apetites e às palavras, porque a língua que Deus melhor entende é o silêncio de amor.
Todo este esforço ascético, pertinaz, heróico, persegue uma só finalidade: sair de si para consumar o dom magnífico do amor, conformando e configurando todas as energias da alma ao Amado, nada querendo fora de Deus, nada desejando a não ser Deus, de nada gozando a não ser de Deus, nem mesmo pensando em querer o que Deus não quer. O ato de caridade perde, aos poucos, este caráter isolado, espaçado, que apresenta no comum dos fiéis; ele torna-se um incêndio imenso e devorador, que invade a alma inteira e banha, embebe, tinge-lhe todas as atividades. Esta alma encontra-se, na verdade, transformada em amor, e pelo amor vive em Deus. Estará, porém, transformada em Deus? Podemos sem dúvida responder que não mais a si pertence: é propriedade de Deus; podemos acrescentar até que, assim como vivemos naquilo que amamos, assim esta alma (que não só tem amor por Deus mas é amor de Deus) vive em Deus muito mais do que no próprio corpo (Cântico, estr. 8, v. 1); é evidente, enfim, que esta vida em Deus revestirá crescente intensidade, porquanto em cada novo ato de amor repercute o eco dos atos anteriores, para torná-lo mais profundo e forte: o misticismo longe de ser estático é perene movimento do amor a mais amor. Apesar de tudo, este amor, conquanto faça viver a alma em Deus, não tornará divinos os atos humanos. Haverá por certo assimilação, imitação; não haverá, propriamente falando, "transformação". Para isso não é suficiente que a alma viva em Deus, é ainda necessário que Deus viva na alma. A fim pois de manter toda a sua força ao termo empregado por S. João da Cruz, urge a intervenção de um novo fator: o amor de Deus pela alma.
III. O amor transformante de Deus pelo místico
Enquanto na mística neoplatônica, a alma ama a Deus mas não sabe nem tem meio algum de saber se Deus corresponde a este amor, na mística cristã o amor é essencialmente mútuo. Se o Santo procura Deus com amor, Deus o procura com infinitamente mais amor. A esta alma que Lhe deu tudo, Deus tudo dá; tudo, isto é, Ele mesmo. Não sem motivo empregam pois os místicos as metáforas nupciais a fim de indicar a reciprocidade do dom. A um tempo conforta a nossa fraqueza e envergonha a nossa tibieza, o meditar sobre este amor divino que bate à porta de nosso coração esperando apenas que nós lha abramos, para ser nosso. "Quando uma alma tudo fez quanto dela dependia, é impossível que Deus, por seu lado, não faça o necessário para a ela se comunicar, pelo menos no segredo do silêncio; é mesmo mais impossível do que, ao raio de sol, não iluminar um espaço sereno onde não encontra obstáculos. O sol está muito pronto a entrar desde a manhã em vosso aposento apenas abristes as janelas. Tal é a conduta do Deus que vela sobre Israel; Ele não dorme, mas entra na alma absolutamente destacada de todas as criaturas e a cumula de seus tesouros. Deus está pois tão disposto a penetrar nas almas, como o sol num aposento". (Llama, estr. 3, v. 3, § 9). Apenas requer que Lhe abramos as janelas, isto é, que afastemos os obstáculos. Pré-requisito indispensável: como poderia Deus ocupar verdadeiramente um coração que de tudo não estivesse desprendido? Apenas, porém, removemos os obstáculos e este Amor que estava à porta irrompe e submerge a alma qual torrente impetuosa.
Como, entretanto, indaga o insaciável teólogo, como se processa esta transformação da criatura pelo amor divino? A resposta permanecerá, de certo, envolta nas trevas do mistério, como sói acontecer quantas vezes a inteligência humana procura perscrutar diretamente a ação divina. Muito mais poderemos dizer, negativamente, o que ela não é, do que determinar positivamente o que ela é.
O princípio metafísico-teológico que domina a matéria, é a não-passividade do amor em Deus. Tentamos expressar, em trabalho anterior, este princípio, de maneira menos negativa, pelas seguintes palavras: "Em Deus, o amor é, por essência, ativo; ele infunde a bondade nos objetos por ele amados: as criaturas não são queridas de Deus porque são boas, elas são boas porque Deus lhes quer bem; é amando-as que Deus as torna amáveis" (REB, 1942, fasc. 4, dez, p. 924). Encontramos na pena de S. João da Cruz uma aplicação deste princípio à união mística. Nas estrofes 21 e 22 do Cântico Espiritual, a alma narra como, pelas suas virtudes, conquistara o Esposo; temendo, porém, que o leitor atribuísse a Deus menos do que Lhe pertence, ela, na estrofe 23, corrige-se e afirma que, se a sua fé e o seu amor puderam cativas o Amado é por tê-la Ele contemplando com amor, torna-a assim graciosa e agradável a Ele mesmo; o que nela mereceu amor, foi a graça e o valor que dEle recebera. Em outras palavras: a alma foi por Deus amada, não em virtude de sua prévia amabilidade, mas ao contrário tornou-se amável porque Deus a amou. Aclarando ainda mais o seu pensamento, o Doutor Místico acrescenta: Deus, como não ama coisa alguma fora de si mesmo, assim nada ama diversamente de si, porque tudo ama para si e o amor tem razão de fim. Não ama pois as coisas pelo que são nelas mesmas. Donde, para Deus amar a alma é colocá-la de certo modo dentro de si mesmo, igualando-a a si. Ele ama pois a alma em si, consigo, como o mesmo amor pelo qual se ama (Cântico, est. 23, v. 3). Concluímos que não é a alma que se transforma, é Deus que a transforma. Também não escreveu S. Paulo que ele vivia em Cristo, mas sim que Cristo nele vivia. O Apóstolo como que insinuava destarte o caráter eminentemente ativo do amor divino.
Estas considerações permitem-nos dar maior exação ao nosso conceito de união mística. Tal qual a descrevíamos até agora, parecia resultar da conjunção de dois movimentos: um, ascendente, que é amor do homem à procura de Deus, outro, descendente, que é amor de Deus à procura do homem. Entretanto, ao penetrar mais fundo no problema verificamos que aquele movimento já é, na realidade, fruto deste: o homem não ascende senão porque Deus o chama e atrai; o sair de si, o "êxtase" da alma, é causado pela investida do amor divino que a impeliu. Esta inclinação, este pondus amoris que o místico experimenta e que, invencível, o faz subir até Deus, procede já duma iniciativa divina: o Senhor mostra-se primeiro e lhe sai ao encontro. "In hoc est caritas: non quasi nos dilexerimus Deum, sed quoniam ipse prior dilexit nos" (I Jo 4, 10). Estas palavras do discípulo amado, S. João da Cruz as traduz por graciosa comparação: se a ave de vôo baixo consegue apresar a águia real de vôo altíssimo, é porque esta desce e quer ser cativada (Cântico, estr. 22, v. 4).
Não há, portanto, como acreditávamos, dois movimentos convergentes, há um só movimento que parte do amor infinito, gratuito, incompreensível, da Bondade primeira por suas miseráveis criaturas, chamando-as a partilhar sua vida. Eis porque os místicos descrevem com tanto vigor a "passividade" da alma em face de Deus. Passividade todavia que nada tem a ver com a inércia dos montanistas ou dos quietistas, segundo os quais a alma deve ser reduzida ao estado de autômata, registrando mecanicamente a moção divina. Pelo contrário, os verdadeiros místicos insistem sobre a cooperação da alma que age vitalmente sob o influxo da graça. Assim é que S. João da Cruz ensina: "A alma não pode exercer as virtudes nem adquiri-las sozinhas sem a ajuda de Deus, mas tampouco Deus as produz sozinho na alma sem ela. Conquanto seja verdade que toda graça excelente e todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das Luzes, no dizer de S. Tiago, sem embargo nada disso pode ser recebido sem a capacidade e a ajuda da alma. Eis por que a esposa falando ao Esposo, nos Cantares, disse: "trahe me, post te curremus..." para expressar que se o impulso para o bem deve vir de Deus somente (trahe me), em compensação, o ato de correr não é privativo do Esposo ou da esposa; mas diz: "corremos ambos" porquanto constitui obra conjunta de Deus e da alma (Cântico, estr. 21, v. 3).
Narra a Escritura que tão estreito afeto unia Jônatas a Davi que conglutinou-lhes as almas. Se a amizade humana pode atingir tal intensidade, qual será então a estreiteza da união entre Deus e a alma, sobretudo que tendo Deus a iniciativa poderá a onipotência de seu abissal amor absorver a alma com maior eficácia e força do que uma torrente de fogo lograria fazer evaporar uma gota de orvalho da manhã (Cântico, 2a. redação, estr. 22). Como descrever a transformação que na alma se opera, ao fazê-la Deus reclinar sobre seu peito, cheio de paz, de ternura, de silêncio? Balbuciando, narram os Santos as suas inefáveis experiências; o teólogo, com grande esforço lobriga nessas sublimes trevas algumas verdades que conserva com carinho. Sendo o amor de Deus pela criatura essencialmente generoso, podemos afirmar de início que, para Deus, amar a alma é, e não pode deixar de ser, comunicar-lhe os seus tesouros; no caso de S. Paulo, infundir-lhe a própria vida divina. Esta comunicação de vida parece-nos revestir um duplo aspecto; o primeiro é como que preparatório, dispositivo; o segundo consiste no próprio dom.
Psicologicamente, dar-se à alma significa, para Deus, identificar-lhe as operações às suas. Assim é que a graça mística simplifica e sublima o mecanismo das atividades psíquicas do homem, fá-las escapar ao modo humano de agir para elevá-las, na medida do possível, ao modo divino. O entendimento, que outrora agia segundo seu modo natural, sob a dependência da sensibilidade, doravante age pela virtude da luz divina e, neste sentido, torna-se divino. Insistem os místicos romanos e flamengos sobre esta transformação da inteligência movida pela graça; não só a mente ultrapassa a ordem discursiva para se tornar intuitiva, mas esta mesma intuição se processa sem imagens, sem idéias até, atingindo sem intermediários a realidade divina.
A vontade, por sua vez, que dantes amava de um amor natural e rastejante, transformada agora, adquire afetos divinos, vive do próprio amor pela qual Deus se ama. A memória enfim, que só guardava lembranças das criaturas, agora só recorda os anos eternos cantados por Davi. Em uma palavra, toda a vida interior acha-se sobreelevada, transformada, absorvida pela ação do divino amor que a atrai e chama a si. "O entendimento da alma é entendimento de Deus, sua vontade é a vontade de Deus, sua memória é a memória de Deus, suas delícias são as delícias de Deus. A sua substância não é substância de Deus, porque a alma não se pode transformar substancialmente nEle, todavia, sendo-Lhe unida, nEle estando absorvida, ela é Deus por participação" (Llama, estr. 2, v. 6).
À alma assim harmonizada, sintonizada com Ele, Deus comunica então a sua vida profunda, na simplicidade de seus atributos, na fecundidade de suas processões. E qual é o meio formal, o veículo deste dom supremo? Ainda e sempre o amor, porquanto o amor divino que tão generosamente se dá, reflete todos os atributos da divindade; experimentando este amor, portanto, a alma experimenta os diversos atributos divinos, ela experimenta, por exemplo, que seu Esposo é bom, porque sente que Ele a ama com infinita bondade; ela experimenta que Ele é sábio e onipotente porque O sente amá-la com sabedoria e poder; sabe também que Ele é santo, justo, misericordioso, forte, delicado, puro, verdadeiro, porque descobre todas estas perfeições no amor que ela experimenta (Llama, estr. 3, v. 1).
Através deste mesmo amor, participa a alma da vida da SS. Trindade; ela "acha-se transformada numa chama de amor, na qual o Padre, o Filho e o Espírito Santo lhe são comunicados", o que significa: neste amor que é indissoluvelmente de Deus que o dá e da alma que o vive, oferecem-se as três pessoas divinas como objeto direto de experiência. A caridade dos Santos atinge, pois, imediatamente, o Padre, o Filho e o Espírito Santo.
Exclama o Doutor Místico: "Ó almas criadas para estas grandezas e para elas chamadas, que fazeis e de que vos ocupais? Vossas pretensões são baixezas e misérias a vossa opulência! Ó deplorável cegueira dos olhos de vossa alma! Sois cegos para tamanha luz e surdos para tão grandes vozes; não vedes que, procurando grandezas e glórias, permaneceis miseráveis e baixos, tornai-vos ignorantes e indignos de tantos bens?" (Cântico, estr. 38, v. 1). E se porventura sentimo-nos a uma distância quase infinita deste amor transformante, não nos deixemos desalentar, mas sigamos corajosamente o conselho do santo Doutor: "é importantíssimo para a alma muito se exercitar no amor" (Llama, estr. 1, v. 6), pois não é o conhecimento de Deus, por mais sublime seja ele, que nos dá a posse de Deus, mas sim o amor, porquanto só o amor chama, provoca, a visita divina. Como as águas frescas atraem o veado ferido e alterado, assim o nosso amor se for generoso, ardente, constante, obterá com que Deus se apresse em vir abeberar-se na fonte do nosso coração (Cântico, estr. 12, v. 5).
(Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 3, fasc. 2, junho de 1943)