Não pode o filósofo digno do nome permanecer indiferente em presença do misticismo. A mesma índole da filosofia desperta nos seus cultores profundo interesse por todas as manifestações do espírito. Como pois ignorar esses homens cuja vida parece retirar-se do corpo para concentrar-se no ápice dum espírito cuja chama arde e se dilata ao ponto de consumir a própria carne?
Tudo quanto atrai, subjuga, fascina os outros homens, eles desprezam-no: a riqueza, o prazer, a glória, a vida até. De bom grado optam por uma existência feita de contínuas privações, não raro abraçam a pobreza, a dor, a perseguição; por vezes preferem a morte antes que renunciar àquele mundo arcano no qual vivem. Justificam tão estranha conduta apelando sempre a uma experiência misteriosa e divina de que seriam favorecidos.
Iluminados, fanáticos, perseguidores de quimeras — ou então homens privilegiados, dignos de admiração e inveja? Mais ainda. Entre os místicos, muitos há que, renunciando a um esplêndido isolamento, trazem aos homens candente mensagem; formam adeptos, despertam imitadores, suscitam vastos movimentos espirituais. E a chama perdura e se renova através das vicissitudes do tempo. Sufocada aqui, ateia-se acolá. Na França do XVII século, inebriada pelo matematismo filosófico de Descartes, pela arte geométrica de Le Notre e de Mansard, eis que se acendem em cada província inúmeros focos de misticismo, como fortemente documentou Henri Bremond. Mais tarde, na mesma França sufocada pelo cientificismo que se jactava de apagar as estrelas, bastou que em Lisieux faiscassem centelhas místicas, para que o incêndio logo se alastrasse.
Como poderia o filósofo permanecer indiferente, quando até sólidos burgueses sentem-se-lhes abalar o granítico materialismo? Verdade é que o filósofo quase nunca tem alma acolhedora, em disponibilidade. Os fatos são obrigados a se amoldar à férrea rigidez do sistema. Aos recalcitrantes nega-se até mesmo o direito de existir: são friamente desconhecidos.
Donde as atitudes diversas — e por vezes desconcertantes — dos filósofos em face do fenômeno místico.
Alguns, de tendência psicologista, apressam-se em identificar os místicos aos dementes e não mais cogitam no assunto. Outros, de pendor racionalista, afetam uma atitude protetora na qual entra não pouco desdém; na melhor das hipóteses serão os místicos considerados qual desasados pré-filósofos procurando às apalpadelas e a muito custo aquelas luzes que uma "filosofia do espírito" qualquer intelectualismo idealista lhes proporcionaria sem maior esforço. Em compensação, pensadores de índole empirista, para quem mais vale um fato do que um argumento, encaram o misticismo com simpática e até com franca admiração; assim na América os dois filósofos de Harvard: W. James e, sobretudo, W.E. Hocking; na Alemanha R. Otto; na França H. Bergson.
Adotaremos aqui uma atitude de incondicional respeito aos fatos. Afigura-se-nos quase pueril o negar ou refutar uma experiência. Sem dúvida, não basta constatar, senão é mister interpretar. Todavia, não convém a uma interpretação correta pautar-se por teorias pré-concebidas, nem devem os fatos sofrer um tratamento dialético que os esvazie de toda especificidade.
O desejo de ser objetivo levará necessariamente o filósofo a empreender um trabalho de discernimento: essas experiência denominadas místicas, que surgem no seio de religiões tão diversas — e até, por vezes, fora de qualquer religião — em meios e épocas tão distantes, serão porventura manifestações da mesma atividade, ou, pelo contrário, essencialmente diferentes, apresentando embora semelhanças mais ou menos superficiais?
Um estudo diferencial completo da experiência mística ultrapassa de muito o âmbito dum artigo de revista. Restringiremos pois a pesquisa a dois pontos atualmente mais controvertidos, porque mais obscuros: procuraremos discernir filosoficamente a experiência mística cristã do misticismo patológico e do misticismo neo-platônico.
Com efeito, alguns alienistas incautos têm identificado certos delírios de coloração religiosa, por eles observados, com os fenômenos místicos dos maiores santos cristãos, do outro lado, alguns filósofos hão apresentado os nossos místicos como adeptos — conscientes ou não — do neoplatonismo ou, pelo menos, têm sustentado que é, de fato, a mesma experiência fundamental, que se vêm cristalizar nas fórmulas de Plotino, e nas de S. João da Cruz. Tentaremos portanto averiguar se o delírio místico, o misticismo filosófico, o misticismo cristão são outras tantas experiências irredutíveis ou não. Seguiremos um método decididamente a posteriori: não partiremos de considerações teóricas sobre a natureza e ainda menos sobre o valor dos respectivos fenômenos; assumiremos como "hipótese de trabalho" que eles são reais — ao menos como vivências psicológicas; indagaremos tão somente se apresentam caracteres diferenciais, observáveis pelo filósofo.
I. Misticismo e Loucura
A índole patológica da experiência mística foi inúmeras vezes afirmada por psicólogos e psiquiatras. Algumas dessas teorias são incontestavelmente desprovidas de qualquer valor, por exemplo, a de James Leuba, segundo o qual o elemento constitutivo do misticismo seria o "êxtase", que não passaria de uma queda na inconsciência, assimilável a uma crise de epilepsia ou à embriaguez profunda. Semelhante tese só pode ser sustentada por ignorância ou por má fé. Fosse embora o êxtase o que sustenta Leuba, em todo o caso é absolutamente falso constituir ele o âmago do misticismo cristão. Perderíamos tempo aduzindo testemunhas concordes de nossos místicos, tão evidente é a questão para qualquer conhecedor dos fatos.
Igualmente desprovida de valor é a opinião corrente entre os leigos consoante a qual o misticismo consistiria em visões, profecias, levitações, e outros fenômenos estranhos. O doutor cristão da mística, S. João da Cruz, exarou do iluminismo sob todas as formas, tremenda sentença condenatória, que já tivemos ocasião de resumir pelo que não voltaremos aqui sobre o assunto.
Bem mais digna de nota é a teoria de Pierre Janet. Na ponderosa obra De l'angoisse à l'extase, o mestre do Collège de France refere, com extraordinária minúcia, a observação, prosseguida durante 22 anos, duma doente designada pelo pseudônimo de Madeleine, que apresentava fenômenos místicos comparáveis, segundo Janet, aos da grande Teresa de Ávila.
Reduzida a um resumo esquelético, a anamnese apresenta-se como segue. Madeleine nasceu no norte a França, em 1852, de pai industrial, muito emotivo, utópico, exaltado; de mãe nervosa. O casal procriou quatro filhos, vindo Madeleine em terceiro lugar. Infância excepcionalmente doentia; gênio muito impressionável; sonhadora, religiosíssima. Devido às doenças recebeu instrução relativamente deficiente (para pessoa de sua classe social em França). Entretanto, exprimia-se muito bem por escrito, lia Pascal, conhecia várias línguas, pintava agradavelmente. A partir dos onze anos apresentou fenômenos nevropáticos caracterizados: obsessões, alucinações, escrúpulos torturantes, períodos de depressão com absoluta imobilidade.
Aos 19 anos Madeleine partiu para a Alemanha a fim de ser professora numa família e... desapareceu! Durante quase um quarto de século procuram-na debalde os parentes. Que coisa havia sucedido? Madeleine fora acometida pelo que Janet denomina "a mania da ilha deserta". Incapaz de resolver as dificuldades inerentes à vida social, Madeleine fugiu.
Para justificar-se aos próprios olhos, pretendia seguir o ideal de S. Francisco de Assis, e, durante 20 anos viveu não só na pobreza como na completa miséria. Mais tarde declarava: "Se a miséria matasse, eu não existiria mais". O pouco que conseguia ganhar (6 vinténs diários) partilhava-o ainda com outros pobres; tornou-se enfermeira benévola de mulheres cancerosas. Tudo isso entremeado de alucinações, de idéias de perseguição. Escreveu cartas ao Presidente da República francesa; esteve em dificuldades com a polícia; por três vezes foi encarcerada. Por fim, venceu-a a moléstia. A dificuldade de locomoção que desde criança sentira, agravou-se consideravelmente durante o inverno de 1892 e 1893. Para fazer a entre de seus trabalhos de costura, via-se Madeleine obrigada a caminhar longas horas patinhando na neve; inchavam-se-lhe os pés, durante a noite, tornavam-se violáceos e sobremodo doídos. Com espanto percebeu que em conseqüência da contração dos músculos, começava a caminhar sobre as pontas dos pés, qual dançarina de Ópera. Resistiu quanto pôde, afinal capitulou: pelo espaço de quatro anos lá foi de hospital em hospital até que enfim os facultativos declararam tratar-se de "moléstia nervosa", já que todos os diagnósticos haviam sempre sido desencontrados... Internaram então a Madeleine no hospício da Salpêtrière, onde entrou para o serviço do Dr. Janet.
Ao cabo de 7 anos, tendo melhorado, regressou para junto da família, sempre sob a fiscalização de Janet. Viveu ainda 14 anos, pobremente, muito religiosa, serviçal, dedicando-se a uma irmã tuberculosa, e cuidando de várias crianças. Sofria das pernas, de um desvio do tórax, de crises cardíacas, e faleceu piedosamente em 1918.
O misticismo de Madeleine compreendia fenômenos quer físicos, quer psíquicos. As manifestações somáticas eram:
1o., a contração muscular que obrigava a doente a se ter nas pontas dos pés. Madeleine interpretava esse fato como sendo o da "levitação" e como um começo de "assunção"; periodicamente anunciava que os pés não mais pousavam sobre a terra e que ela estava prestes a subir como um balão. Queria a todo o transe peregrinar a Roma para ser elevada ao Céu em presença de Sua Santidade.
2o., o que a Madeleine denominava "estigmas" e comparava às chagas de S. Francisco; não passavam, na verdade, de pequenas bolhas que ao arrebentar deixavam correr um pouco de serosidade misturada com sangue.
Muito mais complexos e interessantes os fenômenos psíquicos, constitutivos do delírio místico de Madeleine. A psicose evoluía por grandes crises apresentado fases diversas e podendo prolongar-se por vários meses. O ponto de partida era um esta de equilíbrio precário, de quase normalidade. Rompido esse equilíbrio, perturbada a normalidade, Madeleine entrava no que ela denominava "estado de tentação", o mais prolongado de todos. Dúvidas e escrúpulos de toda espécie acometiam a doente; interrogava constantemente Janet, sem que as respostas lograssem satisfazê-la; suplicava que lhe encontrassem um diretor de consciência o qual discerniria a autenticidade de seu misticismo, a sobrenaturalidade de sua missão junto ao Papa e lhe assegurasse que subiria ao céu, etc, etc. Exigia um diretor e de antemão dele duvidava. À tentação seguia-se a secura, de menor duração. Em vez da inquietude, da dúvida, a inércia, a apatia. Madeleine mantinha-se, então, sentada, imóvel, demonstrando profundo abatimento; nada lograva interessá-la; sentia tédio, indiferença, tudo parecia-lhe vazio. Sobrevinha enfim o delírio sob uma dupla forma, dolorosa e feliz. A primeira era uma psicose melancólica ansiosa, com agitação intensa: Madeleine corria à polícia para denunciar conspirações, profetizava catástrofes privadas e públicas, assistia pela imaginação a cenas de assassínio e de canibalismo; acreditando-se no inferno desesperava-se e sofria os tormentos dos réprobos.
Felizmente este estado lamentável só se prolongava pelo espaço de dois ou três dias; seguia-se-lhe o delírio inverso: a consolação, o êxtase. (Donde o título da obra: De l'angoisse à l'extase).
No delírio de beatitude, a ação exterior era extremamente reduzida. A extática conservava-se em absoluta imobilidade, sem reagir aos estímulos externos. Em vão as enfermeiras procuravam despertá-la, sacudindo-a, lançando-lhe água fira, colocando-lhe sinapismos; Madeleine permanecia em torpor completo. Não havia, no entanto, nem paralisia, nem anestesia, mas simplesmente desinteresse absoluto pela ação. Ao lado da inércia motora, notava-se atividade afetiva enorme e sempre otimista. A doente vivia uma série de romances interiores, de coloração religiosa, dos quais ela e Deus eram os dois protagonistas. Imaginava compreender todos os mistérios da religião, ouvia revelações estupendas, recebia inúmeras provas de amor. Acreditava-se uma grande santa; sentia-se até divinizada: "Je suis Dieu!" exclamava. Não é de surpreender que torrentes de júbilo, de perfeita felicidade, lhe inundassem a alma. Ao êxtase, seguia-se o estado de consolação, que apresentava as mesmas características, embora mais atenuadas. Pouco a pouco tudo se acalmava e Madeleine voltava ao quase equilíbrio primitivo.
O ciclo deste misticismo patológico pode pois resumir-se em sete fases: partindo de um estado subnormal, a doente passava por inquietações e dúvidas; caía na inércia, na apatia, soçobrava no desespero e na tortura; repentina viravolta a soerguia, levando-a ao êxtase beatificante; acalmava-se no otimismo da consolação; revertia ao estado inicial, para encetar outro ciclo análogo.
Como interpretar esse delírio místico? Janet explica-o, como era de prever, em função de suas teorias psicológicas. Distingue oito níveis mentais hierarquizados e admite a passagem de um a outro seja no sentido do progresso, seja no do regresso. Todas as deficiências e doenças mentais, explicar-se-iam quer por se ter o indivíduo detido a nível inferior, sem progredir (p.ex. o débil mental) quer por ter decaído a um nível mais baixo, em conseqüência de uma queda da tensão psicológica (p.ex., o paranóico).
Até mesmo no mas normal dos indivíduos, produzem-se contínuas oscilações da tensão psíquica, segundo está mais ou menos atento, ativo, etc.; durante o somo a queda é profundo; ao despertar, porém, volta logo ao nível habitual. — Pelo contrário, uma baixa contínua e acentuada provoca doenças mentais; estas, apesar de tão variadas, nada seriam, segundo Janet, senão graus da mesma depressão mais ou menos profunda. Tais graus são determinados pelo número maior das funções superiores alteradas e pelo lugar que ocupam na hierarquia, as funções conservadas e exageradas. A aparência tão diversa revestida pelas doenças mentais vir-lhes-ia simplesmente dessas diferenças de nível na depressão psíquica. O ataque de epilepsia, por exemplo, seria uma regressão ao "estágio de agitação difusa" que ocupa, segundo Janet, o grau ínfimo na escala das tendências. Ao contrário, o delírio de interpretação é um perturbar-se das tendências superiores. Um indivíduo que normalmente se encontra no "estágio experimental" (vértice da hierarquia) desce um degrau e se estabiliza no "estágio racional": as funções lógicas não só permanecem intactas como até se exageram; falta entretanto a apreciação correta dos fatos empíricos. Na psicastenia, verifica-se a perturbação das tendências médias, mais precisamente, das funções deliberativas. O psicastênico vive na dúvida, atordoado pelos escrúpulos, pelas hesitações infinitas; não consegue deliberar corretamente nem por termo à deliberação, tomando uma resolução firme; necessita de alguém que delibere e decida por ele. Suponhamos uma baixa maior de tensão e o "estado" psicastênico tranformar-se-á em "delírios psicastênico". Paralisa-se desta feita toda e qualquer deliberação e reflexão; os sentimentos desencadeiam-se com instantaneidade e força enormes, sem controle algum. Variáveis como são os fatos, as convicções mudarão em conseqüência; e resultará uma série de afirmações absolutas e contraditórias. Tal era o caso de Madeleine. Que desde a infância tenha vivido num estado de psicastenia mais ou menos pronunciada, não faz a mínima dúvida: os escrúpulos que a atormentavam, a abulia, o desejo de direção, o mórbido ascetismo que a levava a privar-se, não por virtude, senão por incapacidade de gozar, a tendência a fugir das dificuldades, em vez de tentar vencê-las — são outras tantas manifestações evidentes de psicatenia. Procurava compensar esta debilidade refugiando-se num mundo imaginário que não lhe oporia resistências. Com efeito, Madeleine dirigia a capricho suas divagações, vivendo uma série de histórias fictícias, de romances, nos quais representava, já se vê, um papel simpático. Sobreveio então uma nova baixa de tensão psíquica e Madeleine caiu no que ela denominava "estado de tentação" seguida pelo "estado de secura" que nada mais eram senão um fenômeno psicastênico acentuado, caracterizado pela incapacidade de decisão e logo de ação, com esta diferença que, na "tentação" esta incapacidade se revelava sob forma de ansiedade, na "secura" sob forma de inércia. Nova queda de energia mental e Madeleine retrocedia do estado psicastênico ao delírio psicastênico, o qual, à primeira vista, apresentava duas formas antagônicas: tortura e beatitude; contraste afetivo que todavia não deve fazer olvidar a unidade da psicose: é como o direito e o avesso do esmo processo; numa e noutra fase deparamos com afirmações categóricas: "Madeleine está no Céu — Madeleine está no inferno; Madeleine está divinizada — Madeleine está possessa"; a doente oscilava entre sentimentos desoladores e consoladores, entre o amor desalentado e o amor satisfeito, porque o psicastêncio, como fraco que é, procura amparao, donde a necessidade de afeição que o crucia; precisa adorar e ser adorado, lamenta não conseguir realizar esse ideal e não o consegue, porquanto lhe falta a tensão psíquica necessária ao estabelecimento dessa relações afetivas. Resta-lhe apenas um recurso: a fuga.
Assim Madeleine reclamava um coração amigo no qual se expandiria, entretanto fugiu de casa para viver solitária; posteriormente, baixando ainda mais a tensão psíquica, fugiu novamente e asilou-se na loucura; pôde enfim realizar no delírio as aspirações afetivas até então frustradas; viveu doravante um romance divino no qual Deus ora a maltratava, ora a deliciava. na demência, Deus lhe aparecia já como mestre, já como esposo; numa palavra, Madeleine conseguiu realizar, pela imaginação e a afetividade, todas essas relações sentimentais que houvera desejado, sem ter força para travá-las com indivíduos de carne e osso, dotados de caráter próprio, de vontade, de inclinações, que nem sempre corresponderiam às de Madeleine, com os quais forçosamente entraria em conflito, enquanto que ao delirar, ela dirigia, como melhor lhe saiba, o enredo dos desvairados romances.
Pensamos em não trair o pensamento de Janet, ao resumirmos numa frase a psicologia de Madeleine: ela sonhava e delirava, por ser demasiado débil para viver normalmente.
Só teríamos que louvar e nos instruir, estudando a obra do mestre francês, não houvesse ele generalizado o que observara num só caso e afirmado que todo misticismo não passa de uma das variedades de delírio psicastênico. Repetidamente comparou Madeleine a Santa Teresa, identificando-lhe as experiências.
Rejeitamos a assimilação, não apenas como católico — pois assim deprecia os nossos maiores santos — senão também como psicólogo — pois a teoria patológica não corresponde à realidade dos fatos. Tão patente a diferença que foi reconhecida até por um psicólogo notoriamente anti-religioso como Henri Delacroix. Embora tivesse ele escrito as suas Études d'histoire et de psychologie du mysticisme no intento confessado de encontrar uma explicação puramente naturalística do misticismo, insurgiu-se entretanto contra a pretensão de assimilar os grandes místicos aos loucos: "Si les grands mystiques n'ont pas échappé aux tares névropathiques qui stigmatisent les organismes exceptionnels, il y a en eux une logique constructive, une expansion réalisatrice, un génie, en un mot, qui est l'essentiel". Henri Bergson escreveu no mesmo sentido: "Quand on prend à son terme l'évolution intérieure des grands mystiques, on se demande comment ils ont pu être assimilés à des malades. Certes, nouv vivons dans un état d'équilibre instable, et la santé moyenne de l'esprit, comme d'ailleurs celle du corps, est chose malaisée à definir. Il y a pourtant une santé intellectuelle solidement assise, exceptionnelle, qui se reconnait sans peine. Elle se manifeste par le gôut le l'action, la faculté de s'adapter et de se réadapter aux circonstances, la fermeté jointe à la souplesse, le discernement prophétique du possible et de l'impossible, un esprit de simplicité qui triomphe des complications, enfin un bon sens supérieur. N'est-ce pas précisément ce que nous trouvons chez les mystiques dont nous parlons? Et ne pourraient-ils pas servir à la définition de la robustesse intelectuelle?" Sen os objetassem que Delacroix e Bergson, por não serem psiquiatras, carecem de autoridade, responderiamos que P. Quercy, psiquiatra não-católico, na sua obra L'hallucination, publicada quatro anos após o livro de Janet, consagrou à Santa Teresa longo e exaustivo estudo, chegando a conclusões que põem em relevo a perfeita sanidade mental da grande mística.
Ao nosso ver, mister é distinguir cuidadosamente três classes de fenômenos: 1o. as psicopatias, que parodiam o misticismo; 2o. certos casos peculiares de misticismo acompanhados (e não constituídos) por tal ou tal manifestação patológica; 3o. o misticismo em si, que nada tem a ver com a psicose.
Que certos doentes parodiem os místicos, pondera Bergson, prova tão pouco contra os místicos, quanto as imitações patológicas de Napoleão provam contra o grande corso. Madeleine lera a autobiografia de Santa Teresa de Ávila, como também a obra do Padre Poulain, Les grâces d'oraison; ao delirar, reproduziu o que a impressionara nos escritos da grande carmelita. Não devem pois surpreender certas similitudes aparentes entre o místico e o nevropata. O único critério psicológico que nos permitirá discernir um do outro é o exame comparativo dos respectivos "comportamentos". Devemos confrontar as atitudes, as atividades exteriormente constatáveis de Madeleine e de Santa Teresa, para verificar se coincidem ou se diferem.
Comparando os escritos de ambas, averiguamos em seguida o superior talento da espanhola e a mediocridade intelectual da francesa. o que Madeleine escreve de melhor dá a impressão do já lido, do plagiado. Entretanto, diferença de valor intelectual não equivale a diferença quando à sanidade mental. Janet apressa-se em nos relembrar que Auguste Comte também esteve num hospício, o que não o impediu de ser profundo pensador. Fácil é retrucar que o Cours de Philosophie Positive não foi composto durante o internamento do filósofo. Que saibamos, nenhuma obra de gênio saiu até agora dum hospício. Ora, Santa Teresa escreveu todas as obras em plena "crise mística", para falar como Janet.
Os escritos de Madeleine abundam e superabundam em incoerências, em absurdos, em idéias indiscutivelmente delirantes (p.ex., profecias de cataclismas, denúncias de conspirações). Nada de semelhante em Santa Teresa. — E as visões, como explicá-las? As visões, como muito bem observou o Dr. Quercy, apresentam uma característica notável: a finalidade; harmonizam-se sempre com as preocupações do momento, não aparecem como parasitas ou corpos estranhos que venham perturbar ou interromper o fluxo da vida psíquica; pelo contrário, ligam-se naturalmente ao presente, ao passado, ao futuro; são imediatamente utilizáveis porque se unem estreitamente à ação.
Os devaneios de Madeleine não apresentam nenhum desses característicos, e Janet é demasiado inteligente para não haver percebido a diferença; procura escapar à dificuldade graças a um expediente pouco digno de tão grande psicólogo: lemos Santa Teresa, pretende ele, em edições expurgadas, ad usum Delphini; quem sabe o que conteriam os originais? Por nossa vez podemos perguntar: o que se não lograria provar lançando mão de tais argumentos? Aliás, no caso de Santa Teresa, podemos justamente fazer a prova do não expurgo. Com efeito, possuímos alguns manuscritos da santa; o original da autobiografia, por exemplo, conserva-se na biblioteca do Escorial; foi reproduzido fototipicamente e cada qual tem o meio de averiguar a perfeita concordância entre o texto hodierno e o que escreveu Teresa. — Teria ela expurgardo o próprio manuscrito antes de passá-lo a limpo? Mesmo isso seria uma prova evidente de sanidade mental, já que só um homem normal pode discriminar entre afirmações delirantes e as sensatas. A própria Madeleine, tendo melhorado e deixado o hospício, quando Janet lhe fazia recordar a pretensa "assunção" de outrora, ria-se: "Est-ce possible que c'est moi que disais des bêtises pareilles?" Espantava-se justamente porque cessara o delírio. Por conseguinte, para que Santa Teresa pudesse ela própria expurgar as suas obras, temos que supor que as tivesse redigido em estado delirante e corrigido uma vez verificado o retorno à normalidade. A essa hipótese opõem-se duas razões peremptórias. Em primeiro lugar, Teresa conhecia o misticismo mórbido; descreveu até mesmo os falsos êxtases; perita na auto-crítica, receava a ilusão e por isso reclamava insistentemente o controle dos sábios de seu tempo. Torna-se inacreditável que ela, tão leal e sincera, haja friamente feito desaparecer de suas obras passagens que julgasse delirantes. Bem ao contrário, teria sido a primeira a denunciar como ilusório o seu misticismo. Mais, ainda. Possuímos cartas de Teresa, escritas em plena "crise mística", como possuímos cartas de Madeleine escritas nas mesmas condições. Ora, estas lhe refletem o delírio, já se vê: escreve ao presidente da republica denunciando conluios, relata à própria irmã festins canibalescos aos quais haveria assistido; queixa-se de ser perseguida pela maçonaria etc, etc. O epistolário de Santa Teresa — além de constituir uma obra prima literária — longe de encerrar idéias delirantes, demonstra sólido bom-senso, arguta diplomacia, humour cintilante.
Desta primeira confrontação resulta que Teresa gozava de equilíbrio intelectual e Madeleine encontrava-se num estado de desequilíbrio patente. mas existe um outro equilíbrio, o social, que vai tornar ainda mais claro o diagnóstico discriminativo.
Os psiquiatras insistem sobre a importância básica da conduta em sociedade, como pedra de toque da sanidade mental. Ribot chega até a afirmar que o critério último para distinguir o inventor de gênio daquele que sofre dum delírio de imaginação, é a fecundidade do invento, a sua adaptabilidade às circunstâncias, ao meio. Comparemos pois os comportamentos sociais de Madeleine e de Santa Teresa: Janet afirma que o traço característico da atitude exterior de Madeleine é o desinteresse pela ação, a esterilidade social. De coração ótimo, muito serviçal por natureza, a pobrezinha, durante os anos de loucura, houve-se como arrematada egoísta. Imersa na mais completa introversão, substituía o agir por estéril jogo de imagens e sentimentos. Recusava-se com obstinação a prestar o mínimo serviço; não tomava a menor parte nos sofrimentos alheios. Quando, por exemplo, lhe anunciaram a morte lamentável dum seu cunhado que deixava a família em condições angustiosas, Madeleine externou a maior indiferença. Agitava-se, porém, sobremodo pelo pensamento, falava de força e de amor, predizia triunfos, proclamava a sua missão — mantinha-se entretanto na inércia absoluta. Acreditava piamente que Deus lhe ordenava a ida a Roma para ver o Papa. Falava, e muito, mas apesar das insistências de Janet, que cumprisse as ordens divinas, não dava um passo nesse sentido, salvo uma vez quando de olhos fechados deitou a correr pelo pátio do hospício, voltando logo após à enfermaria. Parecia desejar muitas, coisas, porém logo que se tratava de passar à decisão e ainda mais à execução, perturbava-se e se paralisava. Bastava que se lhe propusesse uma resolução a tomar para provocar intermináveis obsessões. Sobre ste ponto Janet resume-se da seguinte maneira: "L'observation de Madeleine nous montre de toutes les manières son impuissance d'action sociale. On peut observer cette impuissance sociale particulière, en remarquant que Mdeleine est restée pendant sept ans en relation constante, dans un dortoir commum, avec un grand nombre d'autres malades; celles-ci étaient des femmes jeunes pour la plupart, très nerveuses, très suggestibles, très faciles à influencer et je craignais un peu au début, que Madeleine ne fut le point de départ d'une petite épidémie de délire religieux. Il n'en a absolument rien été et Madeleine n'a jamais eu l'ombre d'une influence sur aucune de ces pauvres femmes. Elle le reconnaìssat elle-même... Bien mieux, j'ai remarqué que beaucoup de ces malades vivant ensemble plusieurs mois, avaient formé entre elle des relations affectueuses quei ont survécu à leur séjour à l'hôpital. Madeleine n'était pas dépourvue de sentiments affectuex; elle disait souvant de ses compagnes: "Je les aime profondément, leurs misères physiques m'affectent autant que leurs misères morales!..." Eh bien, malgré ces bonnes dispositions, Madeleine n'a jamais eu d'amies dans la salle, et après avoir quitté l'hôpital, n'a conservé des relations avec personne, si ce n'est avec moi. Cette impuissance des psychasthéniques à faire des camarades et des amis, à conserver des relations avec d'autres, est tout à fait caractéristique".
Sofresse Santa Teresa de delírio psicastênico e deveríamos nela observar idêntico "comportamento", idêntica incapacidade de tomar iniciativas e decisões, de formar e conservar relações, de manter uma atividade adaptada às circunstâncias, numa palavra, observaríamos a inatividade social que em Madeleine se notara. Ora, exatamente o contrário averiguamos. Longe de ser inerte, de fugir para a "ilha deserta" e asilar-se no sonho, Teresa desenvolveu uma atividade fora do comum, verdadeiramente espantosa — ainda mais para uma mulher daqueles tempos. — Reformou não só as freiras como os frades carmelitas; fundou trinta conventos, vencendo as mais prementes dificuldades materiais e enfrentando as mais decididas oposições. Dirigiu com tato, diplomacia, energia, dignas de um grande estadista, negociações laboriosas e delicadas. Viajava tanto, que afinal lhe ordenaram as autoridades eclesiásticas, se recolhesse à solidão claustral, por não convir que estivesse sempre uma religiosa a errar por montes e por vales. Conquistou amizades e provocou dedicações extremadas em todas as classes sociais; exerceu profunda influência não só em meios conventuais, senão entre os mais doutos e os mais graduados de Espanha.
Janet, sentindo quão precária era sua posição, tentou uma retirada estratégica e, para cobri-la, valeu-se de dois expedientes. Afirmou em primeiro lugar que Santa Teresa é personagem muito antiga e provavelmente lendária, cujos feitos e ditos não podem controlar...
Ingenuamente perguntaremos por que Santa Teresa pertencia à história quando Janet a classificava entre os dementes, e se tornava subitamente lendária quando se lhe provava a sanidade mental? Retrucaremos outrossim, que fontes históricas abundantíssimas e controladíssimas permitem reconstituir a atividade social da santa, sem que sejamos obrigados a fazer um cego ato de fé nas declarações de Teresa.
Adita ainda Janet: "esses indivíduos místicos não passaram a vida em êxtases; terminada a crise, puderam desenvolver uma atividade normal". Esquece-se o ilustre mestre que tampouco Madeleine passara a vida inteira em êxtase; segundo as próprias declarações de Janet: "les extases de Madeleine sont assez rares et n'occupent que deux ou trois jours de tems en temps". Ora, não foi apenas por dois a três dias, "de tempos em tempos" que Madeleine se revelou socialmente incapaz, foi durante todos os sete anos passados na Salpêtrière, confirmado isto pelo próprio Janet repetidamente. Só retornou à atividade social ao cessar o delírio místico. Em Santa Teresa, muito ao contrário, o misticismo, longe de ser inativo, era fonte de ação; até mesmo as visões tinham em grande parte a finalidade de regular e dirigir-lhe a atividade exterior. Prova sobeja encontraremos no livro das "Fundações", no qual a Santa relata, com grande vivacidade e abundância de detalhes, suas atividades de reformadora. É inútil multiplicar exemplos. Tão diversas as fenomenologias do misticismo de Teresa e do delírio de Madeleine, que parece de todo impossível afirmar-lhes a identidade substancial: demasiado profunda é a oposição, demasiado evidente a irredutibilidade.
II. Plotino e São João da Cruz
Muitíssimo mais laborioso para o filósofo discriminar a experiência religiosa neoplatônica do misticismo cristão. Com efeito, Plotino, longe de ser um pobre destroço humano, foi um dos gênios que mais honraram a nossa espécie. Além de que, ambas as vivências parecem apresentar vários pontos de contato; bem mais, os místicos cristãos utilizaram não raras fórmulas e expressões neo-platônicas e as narrativas que nos deixaram de suas experiências, por vezes recordam as descrições plotinianas. Sem dúvida, a dependência literária não deve demasiado impressionar, pois o manancial, no qual nossos místicos medievais e modernos se abeberaram, foram os escritos de um neo-platônico, o famigerado Dionísio Aeropagita, considerado então discípulo direto de S. Paulo, pelo que lhe assistia autoridade ímpar. Por isso a infiltração de fórmulas neo-platônicas em nossa mística tornava-se fatal, inevitável. Nessas condições, utilizar expressões plotinianas equivale tão pouco a desposar o plotinismo quanto o aproveitamento das noções aristotélicas de "matéria e forma", "substância e acidente" confere uma índole peripatética à doutrina católica dos Sacramentos.
Da pura dependência literária, poderemos deduzir no máximo, uma semelhança indeterminada entre ambas as experiências místicas, porém nunca uma identidade. Outros indícios, entretanto, parecem indicar afinidade mui profunda, ao ponto que certos intérpretes são levados a considerar as diferenças como superficiais apenas. Aqui e ali, argúem eles, observamos o despontar duma sede do Absoluto que não logram estancar nem a contemplação longínqua através de conceitos abstratos, nem mesmo a mera presença de Deus; anela um contato direto e vivido, exige a posse e a fruição.
O místico, aguilhoado pelo desejo de Deus, despreza todo e qualquer gozo finito porque este, longe de aquietar-lhe as ânsias, exacerbá-las-ia ainda mais.
Aqui e ali constatamos um movimento de fuga para um mundo invisível que é a verdadeira pátria, a morada do Pai. Aqui e ali se nos depara idêntico itinerário: o esforço de introversão, a técnica preparatória de simplificação e de renúncia que escoima a alma de toda impureza, levando-a ao limiar da experiência beatificante. Aqui e ali averiguamos a existência duma intuição inefável que une o místico a Deus.
Não estranha pois, que mesmo um erudito como J. Baruzi haja aproximado Plotino e João da Cruz ao ponto de não deixar entre ambos senão diferenças acidentais. Pouco valeria a essas alturas, opor a metafísica pagã de Plotino à filosofia e à teologia cristãs de João da Cruz. Por óbvio e patente fosse o contraste, deixaria entretanto subsistir uma dúvida importuna: não haveria que distinguir, no misticismo, entre o conteúdo e a expressão? Não seria idêntica vivência que ora se cristaliza em fórmulas neo-platônicas, ora em termos cristãos?
Afim de reduzir tanto quanto possível a parte de conjectura e de controvérsia, tomemos ambas as experiências, como Plotino e João da Cruz as descrevem, e procuremos penetrar-lhes o âmago. Realizado esse esforço, percebemos que o êxtase plotiniano é uma visão solitária e despersonalizada, fruto do humano labor, enquanto que a união mística sanjoanense revela-se qual convívio de mútuo amor, obra da iniciativa divina.
Não há negar o caráter profundamente intelectualista do sistema de Plotino. O êxtase religioso que lhe serve de ápice e de coroa é uma intuição estreitamente intelectual ou — como tantas vezes declara o próprio filósofo — uma "visão". (V,3,17;V, 5,7 e 8; VI, 7,31 etc). Sem dúvida Plotino adianta que tal visão se processa "sem pensamento" (o que levou alguns a interpretar-lhe o êxtase como queda na inconsciência) porém essa negação atinge tão somente o pensamento que comporta "alteridade" (VI, 9, 6) isto é, distinção explícita, vívida, de sujeito pensante e de objeto pensado; em compensação, deixa subsistir intacto o pensamento que é pura apreensão do objeto sem percepção do sujeito pensante. O "extase" aparece não só etimológica senão realmente, como saída de si para perder-se no objeto (IV, 8, 1). Longe de ser aideísmo vazio, ele tem um conteúdo positivo: é pura luz. "Abandonando todo conhecimento racional, estende-se o pensamento até Aquele no qual existe. Carregado então pela onda da inteligência, erguido pelo fluxo que se alteia, vê repentinamente, sem saber como. A visão ao aproximar-se da luz não descobre um objeto diverso dela mesma; a coisa avistada é a própria luz. Não existe então objeto visto e luz que faz ver, como não há inteligência e inteligível: existe pura luz que dá origem à inteligência e ao inteligível" (VI, 7,36). Plotino leva-nos pois a distinguir entre consciência, como objeto do conhecimento de objeto, e consciência como conhecimento de si. Na segunda acepção, o êxtase é inconsciente, na primeira, é hiperconsciente: de tal forma concentra-se o espírito em Deus, de tal forma o apreende e assimila, que se esquece de si. "Retire-se do mundo exterior, concentre-se totalmente no íntimo, não se volte às coisas de fora, ignore tudo (primeiro dispondo a alma, depois repelindo, ao contemplar, toda idéia distinta) ignore até que é ele quem contempla e, após ter-se unido a Deus e com Ele convivido, vá anunciar aos outros o que é essa união". (VI, 9,7). "A alma vê subitamente (Deus) nela aparecer; nenhum intermediário entre ambos; não são mais dois, fazem um só; não há mais distinção possível enquanto Ele está presente. A alma não mais sente o corpo... não mais diz que é homem ou ser animado ou qualquer coisa que seja: contemplar tais objetos destruiria a uniformidade desse estado, e ela não o pode, nem quer. Procura a Deus, sai-lhe ao encontro quando se apresenta e vê não mais ela, senão Ele" (VI, 7, 34; cf. VI, 9,3). "Alguns, inteiramente inebriados de néctar, cuja alma é toda inteira penetrada pela beleza, não são meros espectadores; não mais existe aquele que vê e aquele que é visto, exteriores um ao outro; a vista aguçada penetra o objeto em si mesmo, possui a coisa, sem saber que a possui" (V, 8, 10; cf. V, 8, 11). "O objeto, que ele vê, não o vê no sentido de distinguí-lo de se mesmo, de representar-se um sujeito e um objeto. O vidente tornou-se um outro, não é mais ele mesmo; em nada contribui à contemplação. Unido inteiramente ao objeto, com ele se identificou, como se houvesse feito coincidir o próprio centro com o centro universal", (VI, 9, 10). Temos aqui um misticismo especulativo, recompensa do labor filosófico. Aquele Deus que é procurado pelo sábio, através da trabalhosa ascensão dialética, e que não logra atingir qualquer conhecimento abstrato, ele o vislumbra graças a uma iluminação repentina e fugaz.
E o amor? O amor, sob forma de desejo, deu o primeiro impulso à ascensão e sustenta-lhe as diversas fases. "Inflamada pelo ardor celeste, a alma cobra forças, despertas, tem realmente asas, alteia-se, ligeira, até um objeto superior" (VI, 7, 22; cf. VI, 7, 31). Uma vez conquistada a intuição suprema, o amor, a felicidade, o gáudio, não têm medida. (VI, 7, 34). Mas, para Plotino, a experiência é formalmente, de ordem intelectiva, visão da mente: "a vida ideal é ato da inteligência: por esse ato, a alma imóvel, graça ao contato com o Uno, dá origem aos deuses, à beleza, à justiça, às virtudes". (VI, 9,9).
O amor parece ter por ofício, a um tempo, concentrar as forças do intelecto e distender a intuição metafísica até ultrapassar os limites do humano (VI, 7, 31 e 34).
Segundo S. João da Cruz, muito pelo contrário, na vida mística cabe ao amor completa primazia sobre o intelecto, pois é o amor que constitui a mesma experiência. Sabemos, de certo, que somente a fé — radicada na parte intelectiva na alma — nos faculta atingir a Deus; sabemos portanto que a experiência surge dentro da fé, o Doutor místico di-lo e o repete; todavia, a simples vida de fé não é ainda vida mística (assim sendo, todos os crentes seriam místicos).
Quando o conhecimento de fé se torna experiência, convívio, posse, fruição, deve-o tão somente ao amor, à caridade. O misticismo sanjoanense comporta, sem dúvida, certo conhecimento de Deus, mas esse conhecimento brota do amor, ou, nas próprias expressões do Santo, ele é "sabiduria amorosa, porque nunca da Dios sabiduria mística sin amor, pues el mismo la infunde" (Noche oscura, lib. 2, cap. 12, no. 2). Não deixa de ser significativo o fato de o místico grego ter preferido o simbolismo da Luz, e o místico espanhol o simbolismo da Noite. Luminosa por essência, a inteligência culminará na fulguração do raio; enquanto o amor é impulso cego, força sombria, noturna; longe de captar o objeto para torná-lo translúcido e reproduzi-lo no espírito, o amor tende a identificar-se com o objeto para nele se perder. Esse bem ao qual se une, o amor apreende-o de certo, mas como às escuras; com ele vive, na sua concreção individual, sem exprimi-lo ou traduzi-lo: contenta-se com tê-lo presente e dele fruir.
O Deus de Plotino age incessantemente sobre o mundo que dele emana; no entanto, essa atividade cósmica do Deus-criador não é aquela ação seletiva, discriminadora que trava relações pessoais com este ou aquele homem. O Uno plotiniano permanece não só o grande Solitário, senão o inexorável Silencioso. Donde o êxtase é uma experiência unilateral, se assim podemos nos expressar. Galgando à custa de penosos esforços a escala ascendente dos seres, alçando-se de purificação em purificação, sublimando-se de simplificação em simplificação, o sábio por fim consegue alcandorar-se no cume donde descortinará, de longe em longe e num rápido lampejo (VI, 9,9 e 10) a visão do ser divino. Mas o Deus de Plotino não reage; permanece tão indiferente ante o espírito que o contempla, quando o Deus de Aristóteles em face do desejo da inteligência que movimenta o céu supremo.
Descreve belamente Plotino a exuberância dos sentimentos que alvoroçam o visionário (I, 6,7; VI, 7, 34), não registra, porém, a mínima resposta, do Objeto de tão ardente afeto. Seria de certo inexato asseverar que Deus não desempenha papel algum nessa mística, pois que segundo Plotino, Deus é fonte suprema do desejo, impele o espírito criado como primeira causa eficiente e última causa final. "A alma recebe um influxo do alto; agita-se; o aguilhão do desejo a incita; o amor nela desponta". (VI, 7, 22). "Aquele que a alma persegue, que dá luz à inteligência, cujo mínimo vestígio comove, não é de maravilhar se desfruta tal poder de atração para nos fazer regressar dos caminhos erradios a fim de nele encontramos o descanso. Tudo dele vem, ele é superior a tudo". (VI, 7, 23) "Se a alma vive é porque vida mais sublime lhe foi ao encontro. Sobrelevada até ao cume, ali se detém, contente de se achar perto dele... Ama o bem porque desde o início foi por Ele impelida a amá-lo" (VI, 7, 31). É de notar, sem embargo, que tal iniciativa divina não ultrapassa o plano cósmico. Segundo Plotino, Deus, como cria necessariamente, assim atua necessariamente, qual causa primeira, sobre todos os seres, logo sobre todas as almas, inclusive a do místico. De modo algum há livre intervenção, escolha, dom pessoal de Deus.
O neo-platônico contempla aquele Uno donde lhe vem o ser, nunca o Amigo que lhe oferta o próprio amor. E assim há um verdadeiro abismo entre o "Deus-fonte-do-ser" de Plotino, e o "Deus-amigo-meu" de S. João da Cruz. Ao grito de desejo de Plotino, responde o eterno silêncio! Ao passo que S. João da Cruz sabe que tem a Deus por Amigo, porque Deus lho disse. "Con suma estimación (Dios) te ama, e igualándote consigo, mostrándosete en estas vías de sus noticias Él mismo alegremente, con este su rostro lleno de gracias y diciéndote en esta unión suya, no sin gran júbilo tuyo: yo soy tuyo y para ti, y gusto de ser tal qual soy para ser tuyo y para darme a ti" (Llama de amor viva, cancion 3, verso 1, n. 6). As metáforas de "esponsais" e de "núpcias" místicas, patenteiam que se travam livres relações de mútuo amor. "En la unión y transformación de amor, el uno da posesión de si al otro y cada uno se deja y da y trueca por el otro, y asi cada uno vive en el otro y el uno es el otro y entrambos son uno por transformacion de amor" (Cantico espiritual, canción XI (XII) verso 5).
Já que a intervenção divina na experiência mística de Plotino não ultrapassa aquela moção geral com que a causa primeira faz passar da potência ao ato todos agentes criados, segue-se que a preparação será tão unilateral quanto a experiência mesma. Pelo próprio esforço, guinda-se o sábio ao alto da rude encosta; sozinho ele foge ao encontro do divino solitário (VI, 9, 11). Como que corrigindo a frase acima citada sobre a "vinda" de Deus, Plotino ensina explicitamente que é a alma quem sobe: Deus não vem, porquanto já está presente a todas as coisas (V, 5, 8; VI, 9, 7). Mais significativo ainda é o fato asseverar que todos os homens podem conquistar a visão mística; se alguém não o consegue, culpe-se a si mesmo (VI, 9, 4). A misticidade faz parte integrante da própria natureza humana. "Fujamos para a pátria amada, eis o verdadeiro conselho a dar... a pátria é o lugar donde viemos, ali está nosso Pai. Que é pois essa viagem, essa fuga? Não a realizaremos com os pés: eles nos levam sempre de uma terra a outra; tampouco há que preparar carruagem ou navio; porém é necessário não mais olhar e, cerrados os olhos, trocar essa visão por uma outra, despertar enfim essa faculdade que todos possuem e poucos utilizam". (I, 6, 8).
S. João da Cruz encarece igualmente o esforço pessoal de preparação; dedica-lhe os três livros da "Subida del Monte Carmelo", onde formula exigências radicais no tocante à purificação da alma. Nenhum autor é mais alheio ao quietismo. Mantém, contudo, que tal purificação não basta, por mais rigorosa seja ela; nunca logrará alçar a alma acima do estado de "começante", de místico incipiente; restarão sempre resquícios de defeitos que labor humano algum conseguiria desarraigar. "Por más que el principiante en mortificar en sí se ejercite todas estas suas acciones y passiones, nunca del todo, ni con mucho, puede, hasta que Dios lo hace en el passivamente por médio de la purgación de la dicha noche". (Noche oscura, lib. I, cap. 7, m. 5).
Ninguém conquista a experiência mística cristã; não se produz de maneira natural e, por assim dizer, fatal , ao terminar a purificação ativa; ninguém tampouco a ela adquire o mínimo direito: sendo convívio de mútuo amor, requer a livre iniciativa de Deus que eleva a si quem Ele quer por amigo. Donde a absoluta gratuidade da vida mística.
Esse desejo de Deus que ambos desvendam no coração humano, é para Plotino uma exigência que requer apenas para ser satisfeita, nosso esforço de purificação; para S. João da Cruz, é somente um anseio cujo objeto está absolutamente fora do alcance da criatura. O homem não se eleva até a vida divina, senão esta se comunica ao homem por misericórdia. Donde a insistência do Santo sobre a purificação "passiva", obrada na alma pelo próprio Deus.
Enquanto para Plotino o êxtase beatificante é posterior à purificação, para S. João da Cruz, a mesma purificação passiva já é experiência do divino; a alma sente, vive o trabalho divino em si mesma, sente-se invadida por Deus que a arrebata desprendendo-lhe as atividades espirituais do respectivo objeto natural para fixá-las sobre um objeto sobrenatural: "En esa soledad que el alma tiene de todas las cosas, en que está sola con Dios. El la guia y mueve y levanta a las cosas divinas, conviene a saber: su entendimento a las divinas inteligencias, porque ya está solo y desnudo de obras contrarias y peregrinas inteligencias; y su voluntad mueve libremente al amor de Dios, porque ja está sola y libre de otras afecciones, y lleva su memoria de divinas noticias, porque también está ya sola y vacía de otras imaginaciones y fantasias". (Cantico, canción 34/35 verso 3).
Donde as orientações divergentes da própria purificação ativa: esta, para Plotino será principalmente lógica (ascensão pelos degraus do ser, deixando de parte as diferenças) e psicológica (introversão, amortecimento da sensibilidade, unificação da multiplicidade interna); para S. João da Cruz será antes de tudo purificação moral: desapegar-se das coisas, do próprio eu e de suas operações, desapropriar-se, para deixar livre caminho à invasão divina: "luego que el alma desembaraza estas potencias y las vacia de todo lo inferior y de la propriedad de lo superior, dejando-las a sola sin ello, inmediatamente se las emplea Dios en lo invisible y divino, y es Dios el que la guia en esta soledad". (1.c.).
Investigando, por fim, as implicações metafísicas de ambas as experiências, verificamos que tanto Plotino quanto João da Cruz têm um altíssimo conceito da Transcendência divina — até Plotino acentua a doutrina ao ponto que o Uno parece quase esvair-se em o nada. Nessa perspectiva, suscita qualquer experiência mística dificílimo problema: infinito o caminho, como será ele transposto? que o contato possível entre os incomensuravelmente distantes? como logrará o débil esforço humano vencer a descontinuidade entre os seres em presença? A esses angustiosos quesitos, cabem apenas duas respostas positivas.
A primeira ensina que Deus, num ímpeto de misericordiosa e incompreensível condescendência, alevanta o homem até si, comunicando-lhe uma participação da vida divina: é a solução "sobrenaturalista" cristã, que S. João da Cruz viveu experimentalmente no seu misticismo.
Uma segunda resposta apresenta-nos o panteísmo: o homem logra atingir a Deus porque já o tinha em si mesmo. Soçobra, na verdade, por uma estranha contradição, a transcendência divina! Torna-se contudo concebível a mística "naturalista". Se bem Plotino não haja explicitamente desposado o panteísmo (antes, certos de seus textos parecem excluí-lo), todavia somente o panteísmo poderia alicerçar-lhe a mística. O ápice do espírito humano seria, na realidade, uma centelha faiscada pelo foco incriado de luz; centelha descaída no seio da matéria mas que, por tal, não perdeu a natureza: aguarda, cativa, que nosso esforço a liberte. "Deus aí está, presente a quem o pode tocar, ausente para quem disso é incapaz" (VI, 9, 7). A introversão dialética, fazendo descobrir ao homem seu autêntico eu, fá-lo-ia simultaneamente dar com o mesmo Deus que já ali se encontrava em estado de latência (V, 1, 11; V, 8, 11; VI 5, 12; VI, 7, 34). A inquietude mística seria pois o refluxo natural do não menos natural fluxo criador das coisas. No êxtase a alma retornaria à pureza inicial da emanação divina.
A confrontação do "comportamento" de Madeleine com o de Santa Teresa nos forçou a afirmar irremediável contraste entre os respectivos psiquismos; agora, a comparação entre as experiências místicas de Plotino e de S. João da Cruz nos leva a constatar novamente — embora a um nível muito superior — outra heterogeneidade. Quer perscrutando-lhes a estrutura, quer investigando-lhes a fase preparatória e as implicações metafísicas, deparamos com diferenças tão profundas entre o êxtase plotiniano e a união sanjoanense que só podemos concluir em favor dum rigoroso discernimento de ambos.