Creio na Comunhão dos Santos, dizemos no Símbolo dos Apóstolos, que foi o primeiro compêndio de Sagrada Doutrina produzido pelo magistério infalível da Igreja de Cristo. Neste nono artigo do Credo, o objeto da fé revelada é a Comunhão dos Santos, união sobrenatural que existe entre todos os membros da Igreja. Pelos dons de graças que nos vêm do Pai, que para nós transbordaram na Paixão de Cristo, e que em nós operam pelo Espírito Santo, somos todos santos, vocatis sanctis (Rom. I, 7), e unidos formamos um povo santo (I Ped. II, 9). Fomos eleitos por Deus para sermos santos (Ef. I, 4). Ainda que não tenhamos chegado à união transformante que nos dá o direito pleno de dizer, como Paulo, “vivo eu? não! vive o Cristo em mim”, somos desde já participantes desse dinamismo do Corpo Místico, e desde já atuantes na Comunhão dos Santos como operários e como usuários. O primeiro e principal efeito da Comunhão dos Santos é o de tornar os bens espirituais da Igreja comuns a todos os seus membros, e consequentemente o de nos tornar responsáveis em vista do bem comum do povo santo. Unidos pelos vínculos da caridade, vivificados pelo mesmo Sangue, devemos ter bem presente em nossa consciência a idéia da reversibilidade dos méritos e deméritos que decorre da associação em que Deus entrou primeiro com o Sangue de Seu Filho. Devemos saber constantemente que tudo o que fizermos em consonância com a vontade de Deus será lucro comum cuja misteriosa aplicação se realiza dentro da Igreja por ministério dos homens e dos anjos, e tem dimensões de eternidade que ultrapassam todas as cronologias humanas. Podemos assim imaginar, sem sombra de fantasia, que a oração de uma contemplativa que ainda não nasceu, estará diretamente associada aos favores de Deus na vitória de Lepanto, ou no relâmpago de contrição que num segundo, entre o bordo e o abismo, salvou a alma de um suicida; e também podemos pensar que alguma alma desgarrada hoje se salva por intercessão de um grito de Santa Catarina: Gesú dolce, Gesú amore. Mas também, ai de nós, devemos saber conscientemente, constantemente, que cada pecado nosso é um desfalque que cometemos contra todos. E assim como nos apraz pensar que possamos estar direta e pessoalmente associados a uma salvação, convém temer e tremer pela possibilidade de estarmos direta e pessoalmente associados a uma perdição. Terrível e maravilhosa é essa organização sobrenatural que eleva à máxima potência a troca de favores, e à máxima potência a responsabilidade das faltas. Na verdade, para sermos dignos membros do Corpo que se anima com a Graça de Deus devemos ser perfeitos, isto é, devemos ser santos no sentido mais estrito que damos ao termo, quando nos referimos, por exemplo, à necessidade e ao valor do culto de veneração pelos santos que estão no Céu, e que a Igreja nos oferece como modelos mais próximos, e como intercessores que, mesmo na Glória, guardam transfiguradas a ciência e a lembrança de toda a humana miséria.
Esta especial atividade da Comunhão dos Santos, o culto de veneração daqueles que a Igreja nos propõe como exemplos da praticabilidade da grande aventura divino-humana, prende-se diretamente ao primeiro Mandamento de Deus, e longe de constituir um obstáculo e até um culto idolátrico como dizem os insensatos protestantes, mais nos condiciona a alma para a adoração que só a Deus é devida.
Nós sabemos que desde o Antigo Testamento Deus quer nosso louvor e nossa admiração por sua obra. O Benedicite, que os três moços hebreus cantaram entre as chamas, é o hino de louvor de toda a criação, e por suas palavras inspiradas nossa alma é convidada à festa de uma maravilhosa multidão das mais variadas criaturas — as águas suspensas no céu ou fluentes na terra, o fogo, os raios e as nuvens, as árvores e as sementes na terra — que nos ensinam a admirar, em sua obra, as grandezas de Deus.
Ora, não há obra mais admirável no céu e na terra, do que as almas santas, que no áspero decurso desta vida, conseguiram obedecer de modo perfeito a vontade do Pai, como Cristo mesmo nos ensinou no Jardim das Oliveiras. “Ó Deus que maravilhosamente nos remistes”. Inscreve-se pois o culto de veneração dos santos entre os primeiros deveres conexos ao Mandamento de Deus, e será temerário, ímpio e anti-cristão o movimento que nos aparta dos santos a pretexto de nos vincular mais diretamente a Cristo. Esse Cristo do protestantismo será sempre, enquanto os protestantes perseverarem em seus erros e sua impiedade, ou um Cristo abstrato a diluir-se no irrealismo, ou um Cristo secularizado a dissolver-se no humano.
Desde os primeiros séculos da Igreja nascente implantou-se no costume, e no magistério ordinário da Igreja a sadia preocupação de trazer bem viva a lembrança dos que nos precederam no Céu, e de cultivar, pela iconografia e pelas relíquias a normal motivação de tal culto.
Deus assim quis sua Igreja: é a Igreja de Cristo, é a Igreja do Espírito Santo, mas é também — Deus assim o quis — a Igreja Filha de Maria... E será também legítimo dizer, na ternura sobrenatural de Comunhão da Igreja, que nossa Santa Igreja é a Igreja de Maria, a Igreja dos Santos Anjos, dos Santos Mártires, dos Santos Confessores, dos Santos Virgens, dos Santos Doutores, dos Santos Pontífices: é a Igreja de Todos os Santos.
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Um dos sinais mais lúgubres da Igreja de nossos dias, e do processo de protestantização que se opera aceleradamente diante da Hierarquia impassível, ou apenas preocupada, é a covardia com que nos inclinamos diante da brutal e demente heresia, e a impiedade com que desprezamos a solicitude, o trabalho, sim, o trabalho dos Santos na Igreja do Céu. A Igreja do Céu, apesar do esplendor da Glória, não é um lugar de repouso e muito menos um departamento de hibernados. Antes será a maravilhosa expansão da oficina de Nazaré. Os santos trabalham por nós. Santa Terezinha de Lisieux disse na sua agonia com atrevida simplicidade “Je veux passer mon ciel à faire du bien sur la Terre”. E a própria Virgem Santíssima quer ainda, de maneira mais solícita, trabalhar para nós, e para isto obteve de Seu Filho a permissão de imita-lo, e de descer do céu para, em Lourdes, Fátima, e outros lugares, estar com seus filhos da Terra, na Terra, e até chorar como eles aqui choram in haec lacrimarum vale.
Tenhamos pois todos nós, associada a nossa vida religiosa, in sino Ecclesiæ, a devoção pelos santos de nossa preferência, desde que nenhum usurpe o lugar da Rainha. E onde houver algum exagero na proporção dos nossos atos de piedade, não se diga que essa deformação seja simétrica ou equivalente à impiedade da iconoclastia espiritual de nossos dias. Por estranha derrisão, a que Satã não está alheio na época em que mais se fala de comunidades e comunitarismos mais se deixa no olvido a Comunhão dos Santos; e na época em que mais se fala de Povo de Deus, Povo, povo, povo, com ressonância de revolução, mais se deixa no silêncio a maravilhosa idéia de sermos a Família de Deus.
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O mês de novembro comemora o dia de Todos os Santos e o dia dos Mortos: a Igreja Triunfante e a Igreja Padecente. E tornamos a dizer que, antes do dia Final, em que “Aquele que está no trono diz: Eis que faço novas todas as coisas”, o próprio Céu é ainda lugar de santo trabalho.
É sumamente oportuno, diante dos descalabros que devastam a Igreja, gritarmos por socorro a todos os santos do céu, e a todas as almas do purgatório que também clamam por nós. E ao próprio Senhor gritemos: Exurge Domine!
Editorial da Revista PERMANÊNCIA, no. 49, novembro de 1972.