Nos longos anos em que estudamos o dogma da Providência e aquele da Predestinação, buscamos sobretudo os princípios revelados que tais dogmas supõem. Por um lado, é certo que Deus é o autor de todo bem: “Que tens tu que não tenhas recebido?” (1 Cor 4,7). Por outro, Deus não é a causa do pecado, mas o permite, e mais, “Deus não ordena jamais o impossível", porém, ao dar-nos alguns preceitos, Ele nos adverte fazer o que podemos, pedir-lhe o que não podemos; e concede-nos Sua graça para que o possamos. É o que diz Santo Agostinho (De natura et gratia, c. 43, n. 50. M. L. 44, 271), confirmado pelo Concílio de Trento (Denzinger, 804).
Para melhor enxergar o sentido e o alcance destes princípios que se equilibram mutuamente, como dois arcos de uma ogiva, lembraremos aqui: 1° O enunciado do dogma da Providencia, 2° Como Santo Tomás compreendeu este dogma, 3° Como o Molinismo o interpreta, 4° Se há uma posição eclética possível entre o tomismo e o molinismo.
I. O enunciado do dogma da Providencia
É de fé que, “pela sua Providência, Deus guarda e governa tudo o que se fez, atingindo fortemente o que fez, de uma extremidade a outra, dispondo tudo com suavidade (Sb 8, 1). Porque todas as coisas estão a nu e a descoberto perante seus olhos (Heb 4, 13), mesmo aquelas que se produzem no futuro pela ação livre das criaturas”. Assim fala o Concilio do Vaticano I (Denz. 1784).
Como o diz A. Vacant em seus Etudes sur le Concile du Vatican, 1895, t. I, P. 271, deste modo são afirmados: 1° a ação providencial de Deus, providentia sua, 2° seus efeitos, tuetur atque gubernat, 3° sua extensão, universa quae condidit, 4° a maneira pela qual se exerce, fortiter et suaviter, 5° a prova de que a encontramos na ciência divina.
A Igreja outrora declarara que a Providencia governa todas as criaturas visíveis e invisíveis, que não quer o mal assim como quer o bem, pois ela somente permite o Pecado sem ser-lhe a causa e ordena tudo de forma a manifestar a bondade divina fazendo o próprio mal servir a um bem superior, por exemplo, a perseguição crudelíssima à constância heróica dos mártires e à gloria de Deus.
O dogma da Providência pressupõe assim a onisciência divina, a eficácia da vontade Deus para a realização de Seus desígnios, e a permissão dos pecados em razão de um bem superior. Este ensinamento é evidentemente aquele da Revelação, expressa nas Sagradas Escrituras. Basta lembrar a oração de Mordoqueu no livro de Éster 3, 9: “Senhor, Senhor, Rei todo-poderoso, eu Vos invoco; todas as coisas estão submetidas ao Vosso poder, e não há ninguém que possa fazer obstáculo à Vossa vontade, se resolveis salvar Israel”. Diz Jesus no Evangelho (Mt 10, 28): “Não temais aqueles que matam o corpo e não podem matar a alma... Um pássaro não cai por terra sem a permissão de vosso Pai. Até os cabelos de vossa cabeça estão contados. Portanto, não temais: vós valeis mais que muitos pássaros”.
No século IX as controvérsias a respeito da predestinação suscitadas pelos escritos de Gottschalk tornaram-se espinhosas: alguns bispos invocaram as palavras da Escritura sobre a predestinação e os trabalhos de Santo Agostinho, outros insistiam mais na vontade salvífica universal. Tais controvérsias tiveram fim no Concilio de Tuzey, Concilium Tusiacum, em 860. Este concílio retoma nestes termos o dogma da Providência: “In caelo et in terra omnia quaecumque voluit Deus, fecit. (Sl. 134, 6). Nihil enim in caelo vel in terra fit, nisi quod ipse Deus aut propitius facit (si agitur de bono), ami fieri iuste permittit (si agitur de peccato)”.
Tal era a fé da Igreja, segundo a qual Deus é o autor de todo e qualquer bem, e o pecado não se dá sem a permissão divina, em razão de um bem superior; de outra forma, a Providência Divina, contrariamente ao que diz a Revelação, não seria universal ou não estender-se-ia a tudo o que diz respeito a cada um dos homens.
Este enunciado do dogma da Providência foi admitido por todos naquele Concilio — os bispos agostinianos não exigiram nada além disso, e os demais reconheceram que esta era a doutrina revelada sobre a Providência universal e suas relações com o bem e o mal. Desde então a controvérsia cessou.
É preciso destacar a universalidade da proposição formulada nesse Concilio: “Nihil fit in caelo et in terra, nisi id quod Deus propitius facit, aut fieri iuste permittit”. Trata-se, nesta proposição, do bem do qual Deus é o autor (quer dizer, de todo bem natural ou sobrenatural, fácil ou difícil, inicial ou final) e dos pecados dos quais não é de modo algum causa, mas que permite.
II. Como Santo Tomás compreendeu este dogma?
Ele comentou isto na sua Suma Teológica, sobretudo na Iª q. 14 de scientia Dei; q. 19 de voluntate Dei, q. 22 de Providentia. Destacamos aqui somente o essencial, os princípios que esclarecem toda a questão.
Na Iª q. 14, o Santo Doutor demonstra que Deus conhece perfeitamente tudo o que Ele é, tudo o que Ele pode, tudo o que Ele quer e tudo o que Ele permite. Diz na Iª, q. 14, a 5: “Cum virtus divina se extendat ad alia, eo quod ipsa est prima causa effectiva omnium entium, necesse est quod Deus (perfecte cognoscens suam virtutem divinam) alia a se cognoscat” Ibid.: “Alia a se videt non ipsis, sed in seipso”. Item in a. 6 – Art. 8: “Necesse est quod scientia Dei sit causa rerum secundum quod habet voluntantem coniunctam”. Art. 9, ad 3 “Dei scientia est causa rerum volutate adiuncta. Unde non oportet, quod quaecumque scit Deus sint, vel fuerint, vel futura sint, sed solum ea quae vult vel permittit esse”.
É exatamente o que diz o Concilio supracitado, onde se encerraram as controvérsias do século IX: “Nihil fit in caelo vel in terra, nisi id quod Deus propitius facit, aut fieri juste permittit”. Estas últimas palavras aplicam-se até ao initium peccati.
Santo Tomás ainda diz na Iª, q. 14, a 13: “Cum Deus sciat ominia non solum quae sunt in actu, sed etiam quae sunt in potentia sua vel creaturae — horum autem quaedam sunt contigentia nobis futura, sequitur quod Deus contigentia futura cognoscat... Et licet contingentia fiant in actu successive, non tamen Deus successive cognoscit contigentia prout sunt in suo esse, sicut nos, sed simul. Quia cognitio mensuratur aetenitate, sicut etiam suum esse. Aeternitas autem tota simul existens ambit totum tempus”. Deus vê os futuros contingentes “prout ea vult esse vel permittit esse” como está posto na mesma questão 14, a. 9, ad 3.
De fato, a conversão de São Paulo, por exemplo, está presente na eternidade divina porque Deus de toda eternidade quis livremente esta conversão; de outra forma, ela estaria presente na eternidade, ou como uma verdade necessária e não contingente, assim como uma propriedade da natureza humana, ou como uma coisa possível e não como um fato que realizar-se-á no tempo, quer dizer, como futuro contingente. Existe uma imensa diferença entre o possível e o futuro contingente; a passagem de um ao outro não pode fazer-se sem que Deus o queira livremente.
A conversão de São Paulo não pode estar presente desde toda eternidade no pensamento divino a não ser que ela tenha sido querida por Deus; porém isto é verdadeiro para o mais ínfimo ato livre bom, de outro modo, Deus não seria causa de todo bem e de tudo o que existe fora dele. Deus conhece em sua ação eterna (criadora, conservadora ou motora) tudo o que realizar-se-á no tempo. Como o diz s. Tomas, “novitas divini effectus non demonstrat novitatem actionis in Deo, cum actio sua sit aeterna” II C. Gent., c. 35, et Iª q. 46, a. 1, 9.
Quanto aos pecados que se cometerão, eles só estão eternamente presentes no pensamento divino, se são permitidos por Deus; senão eles estariam Nele ou como uma verdade necessária, ou como um fato somente possível e não como aquilo que é para nós, um futuro contingente.
Na questão sobre a vontade divina Iª q. 19 a. 4, Santo Tomás diz “Effectus determinati ab infinita Dei perfectione procedunt secundum determinationem voluntatis et intelectus ipsius”. Eis os divinos decretos determinantes, como, por exemplo, o decreto divino de conceder a Maria uma graça fortíssima e dulcíssima que a faria pronunciar livremente o Fiat, no dia da Anunciação, e aquela que a faria renovar este Fiat, aos pés da cruz, cf. Ibidem, a. 4, ad 4.
No artigo 6 da mesma questão, Santo Tomás demonstra porque a vontade divina não condicional que incide sobre um bem a se realizar hic et nunc é infalivelmente eficaz. Por quê? “Porque, diz, a vontade divina é a causa universal de todas as coisas, logo é impossível que ela não se cumpra. Em conseqüência disso, o que parece distanciar-se dela segundo uma ordem de coisas recai sob seu império segundo outra ordem; assim o pecador que, no que depende dele, aparta-se da vontade divina pecando, submete-se a ordem da vontade divina quando é punido pela justiça”. O pecado não se produziria se não tivesse sido permitido por Deus; uma causa particular não pode agir contra a vontade de Deus, causa universalíssima, sem a permissão divina; senão a causalidade divina e a Providência não mais seriam universais, contrariamente ao que diz a Revelação.
Ibidem q. 19 a. 6 ad 1 in fine, Santo Tomás então conclui: “Quidquid Deus simpliciter vult, fit, licet illud quod antecedenter (seu conditionaliter) vult, non fiat”.
Na mesma passagem, Santo Tomás diz que Deus, pela vontade antecedente, deseja o que é, em si, bom — abstração feita das circunstâncias — como é bom que todo homem seja salvo, enquanto que, pela vontade conseqüente e eficaz, Ele quer o bem que será realizado em tais circunstancias especificas, hic et nunc, como a salvação deste homem, Pedro. Ora, nenhum bem se realiza senão hic et nunc. Esta vontade divina conseqüente ou eficaz é infalivelmente realizada, enquanto que o que é querido por Deus só com vontade antecedente ou condicional, não se realiza de fato; por exemplo, mesmo que seja bom que todo homem seja salvo, aquele que hic et nunc obstina-se no mal até sua morte perde-se pela eternidade.
Pouco adiante, Iª, q. 19, a. 8, S. Tomás demonstra que Deus atualiza nossa liberdade pela soberana eficácia de sua vontade, fá-la florescer e frutificar, e portanto não a destrói. Deus sustenta, fortiter et suaviter, a vontade livre dos mártires durante seus tormentos. Estes princípios são em seguida aplicados por S. Tomas, Iª, q. 22, à Providência universal que se estende a todas as coisas, inclusive nossos atos livres; ver sobretudo o artigo 2.
S. Tomás, desta forma, mantém integralmente a verdade formulada pelo Concilio do século IX onde se encerraram as controvérsias sobre a predestinação: “Nihil fit in caelo vel in terra nisi id quod Deus propitius facit (si agitur de bono), aut fieri iuste pemittit (si agitur de peccato)”. De outro modo, a Divina Providência não seria universal, contrariando o que diz a Revelação.
Estamos cada vez mais seguros que esta verdade é o enunciado abreviado do dogma da Providência universal, que se estende até ao detalhe a tudo o que acontece, mesmo ao mal permitido, para fazê-lo servir ao bem.
Aqueles que lecionam o Tomismo clássico há longos anos bem sabem que ele continua perfeitamente fiel em todos estes pontos a Santo Tomás e ao modo pelo que este compreendeu São Paulo e Santo Agostinho.
III. Como o molinismo interpreta o dogma da Providência.
Molina rejeita os decretos divinos determinantes, porque, segundo ele, estes seriam necessitantes, ou destruiriam a liberdade. Em seu lugar ele introduz “ a ciência mediana” que versa, não mais sobre os possíveis, nem precisamente sobre os futuros contingentes, mas sobre os futuríveis livres, ou futuros condicionais livres, entre os possíveis e os futuros propriamente ditos. Segundo Molina, Deus, anteriormente a todo decreto divino, vê infalivelmente desde a eternidade que, se Pedro estivesse situado em tais circunstâncias com uma graça falivelmente eficaz, ele cumpriria livremente seu dever, e que em outras circunstancias distintas, com a mesma graça falivelmente eficaz, ele pecaria.
Mas estes futuríveis, segundo Molina, só se tornarão futuros livres se Deus, através de um decreto especial, decide colocar Pedro em tais circunstâncias antes que em tais outras Por este decreto, Molina imagina salvaguardar suficientemente o dogma da Providência que assim se resume, como já vimos: “Nihil fit in caelo vel in terra nisi id quod Deus propitius facit, aut fieri juste permittit”.
Assim, o dogma da Providência parecia salvaguardado, segundo Molina, se admitirmos “a ciência mediana dos futuríveis” e o decreto da vontade divina sem o qual os futuríveis livres nunca tornar-se-ão futuros livres. Desse modo, nenhum bem se dá sem que Deus o queira e nenhum pecado realiza-se sem que Deus o permita.
A isto os tomistas responderam destacando os inconvenientes da teoria da ciência mediana. 1° Dizem, a ciência mediana atribui a Deus, Ato puro, uma passividade ou dependência em relação a uma determinação livre, primeiramente futurível, depois futuro, determinação que não vem de Deus, mas somente do livre arbítrio criado. Então Deus, não sendo mais o determinante, é determinado e dependente, o que não se poderia admitir se Deus é Ato puro e soberanamente independente em relação a toda a criação, que só existe e subsiste por Ele.
2° A teoria da ciência mediana retira de Deus a dignidade de Causa suprema universalíssima e todo-poderosa, pois ela diminui seu domínio soberano sobre as criaturas.
3° É contrária ao princípio formulado por São Paulo (1 Cor 4, 7): “Que tens tu que não tenhas recebido?”. Ninguém seria melhor que um outro se não fosse mais amado e mais ajudado por Deus. Cf. S. Tomas Iª, q. 20. a. 3 e 4.
4° Esta teoria diminui a necessidade da oração, pois não se precisa mais pedir a graça eficaz por si mesma, pois esta não mais existe, porque a graça tornar-se-á eficaz por nosso livre consentimento previsto pela ciência mediana. Do mesmo modo nada há que agradecer ao Senhor por ter-nos dado a graça eficaz, pois é nosso livre consentimento que a tornou eficaz.
Enfim, malgrado todos estes inconvenientes, a teoria da ciência mediana tem pelo menos o mérito de salvaguardar, de uma certa maneira, que desejaríamos menos indireta, o dogma da Providência.
Onde vai chegar um ecletismo que recusa admitir os decretos determinantes dos antigos teólogos tomistas, agostinianos e escotistas, e que aceita a ciência mediana? Este ecletismo poderá salvaguardar o dogma da Providência? Eis a questão.
IV. Há uma posição eclética possível entre o tomismo e o molinismo?
Para responder a esta questão, faz-se necessário recordar que duas proposições contraditórias não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras nem, ao mesmo tempo, falsas, uma é verdadeira e outra é falsa, não havendo meio termo, de acordo com o princípio de contradição.
Ora, o tomismo clássico e o molinismo são contraditórios no que tange à questão que nos ocupa. O tomismo diz que antes de todo decreto divino sobre os futuríveis livres, Deus não pode conhecê-los infalivelmente; o molinismo afirma o contrário, que Deus pode conhecê-los infalivelmente. Não existe meio termo possível entre estas duas doutrinas contraditórias.
Então, como o ecletismo que rejeita os decretos divinos determinantes, e também a ciência mediana pela qual Molina salvaguarda o dogma da Providencia, como este ecletismo pode salvaguardar o dogma?
Sua posição torna-se insustentável. Não existe outro meio para resolver isso senão reintroduzir a ciência mediana sob outro título, esquecendo as dificuldades com que se choca. É o que fazem, sem o dizer.
Escrevemos estas reflexões não para defender o tomismo clássico manifestamente fiel a Santo Tomás, mas sim para a inteligência e para a defesa do dogma da Providência tal como a tradição sempre o manifestou: “Omnia quaecumque voluit Deus, fecit (Sl 134, 6) Nihil enim fit in caelo vel in terra, nisi id quod Deus Propitius facit, aut fieri iuste Permittit”.
Como dizemos no começo deste artigo, a fé esclarecida pelos dons do Espírito Santo, dons de inteligência e sabedoria, faz-nos aderir ao mistério da Providência, faz-nos mesmo penetrá-lo e prová-lo. Ele esclarece-se à luz destas duas verdades reveladas: por um lado “Que tens tu que não tenhas recebido?” (1 Cor 4, 7). Por outro lado, “Deus não ordena jamais o impossível, porém ao dar-nos seus preceitos, Ele nos adverte fazer o que podemos, pedir-lhe o que não podemos, e concede-nos Sua graça para que o possamos” (Santo Agostinho citado pelo Concilio de Trento, Denz. 804).
Estas duas verdades complementares são como as duas partes luminosas de um semi-círculo que envolve por baixo a obscuridade divina do mistério da conciliação íntima da infinita misericórdia, a infinita Justiça e da liberdade soberana. Estas três perfeições divinas identificam-se sem destruir-se na eminência da Deidade, onde elas encontram-se “formaliter eminenter”. Este é o segredo da vida íntima de Deus que não se esclarecerá para nós senão através da visão beatífica.
(Angelicum Vol. XXIX, fasc. 3. Tradução: PERMANÊNCIA)