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Art. 5 ─ Se se distinguem acertadamente três dotes da alma: a visão, a dileção e a fruição.

O quinto discute-se assim. ─ Parece que não se distinguem acertadamente três dotes da alma: a visão, a dileção e a fruição.

1. ─ Pois, a alma se une com Deus pelo intelecto; porque é imagem da Trindade pela memória, pela inteligência e pela vontade. Ora, a dilecção pertence à vontade; a visão à inteligência. Logo, há de atribuir-se também à memória a sua atividade própria, desde que a fruição não lhe pertence a ela, mas antes, à vontade.

2. Demais. ─ Os dotes da beatitude se consideram como correspondentes às virtudes que praticamos nesta vida, que são a fé, a esperança e a caridade, virtudes cujo objeto é Deus mesmo. Ora, a dileção corresponde à caridade, e a visão à fé. Logo, devia haver também um dote correspondente à esperança, pois, a fruição pertence antes à caridade.

3. Demais. ─ De Deus não gozamos senão pelo amor e pela visão; pois, fruímos daquilo que diretamente gozamos, como diz Agostinho. Logo, a fruição não deve ser considerada dote diferente da dileção.

4. Demais. A beatitude, na sua perfeição, requer a posse do seu objeto, conforme aquilo do Apóstolo: Cerrei de tal maneira que alcanceis. Logo, é forçoso admitir-se um quarto dote.

5. Demais. ─ Anselmo diz que a beatitude da alma inclui: a sabedoria, a amizade, a concórdia, o poder, a honra, a segurança, e a alegria. ─ Donde se conclui que a enumeração supra, dos dotes, é incompleta.

6. Demais. ─ Conforme Agostinho, na beatitude celeste veremos a Deus sem fim, amá-lo-emos sem enfado e incansavelmente o louvaremos. Logo, o louvor também deve entrar na referida enumeração dos dotes.
 
7. Demais. ─ Boécio distingue na beatitude cinco elementos: a suficiência, resultante das riquezas; a alegria, resultante do prazer; a celebridade, que nasce da fama; a segurança, filha do poder; a reverência, cuja fonte é a dignidade. Donde se conclui que esses, e não os enumerados, é que se deviam considerar dotes.

SOLUÇÃO. ─ Todos, em geral, admitem como dotes da alma os supra-enumerados, mas diversamente. Assim, uns dizem que três são os dotes da alma: a visão, a apreensão e a fruição. Outros: a visão, a apreensão e a fruição. Outros ainda: a visão, a deleitação e a posse. Mas essas três enumerações se reduzem a uma só; e todos concordam quanto ao número delas.

Ora, como dissemos, o dote é algo de inerente à alma, que a ordena ao ato em que consiste a felicidade. Mas esse ato compreende dois elementos: a substância mesma dele, que é a visão; e a sua perfeição, que é a deleitação; pois, a felicidade há de ser uma atividade perfeita. Ora, uma visão pode ser deleitável a dupla luz: por causa do objeto visto, que causa prazer; e por parte da visão mesma, cujo ato é em si mesmo deleitável, como quando nos comprazemos em ver o mal, embora este não nos deleite. E como a atividade, em que consiste a felicidade última, deve ser perfeitíssima, há de por força a visão, de que se trata, ser, a ambas as luzes, deleitável. Mas, para uma visão ser, como tal, deleitável, é necessário que seja conatural, por algum hábito, ao sujeito que vê. Para ser deleitável, porém, por parte do objeto visível, há de ter este com a vista conveniência e união.

Assim, pois, para a visão, como tal, ser deleitável, é necessário um hábito donde ela proceda. Donde um dote, a que todos chamam visão. Por outro lado, o objeto visível requer duas condições: a conveniência, resultante do afeto, e daí o dote a que uns chamam dileção e outros fruição, dizendo esta respeito ao afeto, pois, o que soberanamente amamos a isso do mesmo modo estimamos como convenientíssimo. Por parte do objeto visível é também necessária a união; donde o dote da apreensão, segundo certos, que não é senão possuir efetivamente a Deus e o ter em si; mas outros introduzem a fruição ou deleitação, enumerando de outro modo. Pois, a fruição perfeita, como a teremos na pátria, inclui em si tanto a deleitação como a apreensão. Por isso, certos reduzem esses dois dotes a um só, e outros os consideram como distintos.

Outros porém atribuem esses três dotes às três potências da alma: a visão, à alma racional; a deleitação, à alma concupiscível; e a fruição à irascível, porque supõe uma vitória para a alcançarmos. ─ Mas isto não é acertado. Porque o irascível e o concupiscível não pertencem à parte intelectiva, mas à sensitiva; ora, os dotes da alma têm a sua sede no intelecto.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A memória e a inteligência tem uma atividade comum; ou por ser aquela uma operação desta, ou, se aquela for considerada uma potência, a memória não exercerá a sua atividade senão mediante a inteligência, porque é próprio da memória reter os conhecimentos. Por isso também à memória e à inteligência não corresponde senão o hábito do conhecimento. Por onde, a ambas corresponde só o dote da visão.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A fruição corresponde à esperança enquanto inclui a apreensão, que sucede à esperança. Pois, o esperado ainda não é possuído; daí um certo sofrimento causado pela esperança, por causa da ausência do objeto amado. Por isso, não mais existirá na pátria, sendo substituída pela apreensão.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ A fruição, enquanto inclui a apreensão, distingue-se da visão e da dileção; mas de modo diverso do pelo qual a dileção difere da visão. Pois, dileção e visão designam hábitos diversos, dos quais um pertence ao intelecto e outro, ao afeto. Ao passo que a apreensão, Ou a fruição como parte dela, não implica nenhum hábito diverso dos dois supra-referidos, mas só a remoção dos obstáculos que impediam a alma de se unir efetivamente com Deus. O que se dá pelo fato de o hábito mesmo da glória liberar a alma de todas as suas deficiências, pois, a torna capaz de conhecer sem fantasmas, a ter domínio sobre o corpo e outros privilégios semelhantes, exclusivos dos obstáculos, que nos fazem vivermos ausentes do Senhor.

RESPOSTA À QUARTA. ─ Deduz-se do que foi dito.
 
RESPOSTA À QUINTA. ─ Em sentido próprio, dotes são os princípios imediatos da atividade em que consiste a perfeita beatitude, pela qual a alma se une com Cristo. Ora, tal não se dá com a enumeração de Anselmo, cujas partes ou são concomitantes ou consequentes à beatitude, não só em relação ao esposo, a quem, na enumeração de Anselmo, só lhe cabe a sabedoria, como também em relação aos outros. E estes, quer sejam nossos iguais, aos quais concerne a amizade, quanto à união dos afetos, e a concórdia, quanto ao consenso no agir; quer nos sejam inferiores, aos quais concerne o poder, pelo qual estes recebem dos superiores a sua disposição, e a honra, prestada pelos inferiores aos superiores; e enfim, relativamente a nós mesmos, dizendo-nos respeito então a segurança, quanto à remoção do mal, e a alegria, quanto à consecução do bem.

RESPOSTA À SEXTA. ─ O louvor, a terceira das cousas, que, segundo Agostinho, existirão na pátria, não é uma disposição para a beatitude, mas é antes uma consequência dela. Pois, por isso mesmo que a alma está unida a Deus, no que consiste a beatitude, resulta o prorromper em louvores. Por isso, o louvor não é da natureza do dote.

RESPOSTA À SÉTIMA. ─ As cinco cousas enumeradas por Boécio são umas condições da felicidade, e não disposições para o ato em que ela consiste. Porque a beatitude, em razão da sua perfeição, só e singularmente tem por si mesma tudo o que os homens buscam nos diversos bens materiais, como está claro no Filósofo. E assim, Boécio mostra que as cinco as abrange a verdadeira felicidade, pois, são as cinco que os homens buscam, na felicidade temporal. As quais, ou concernem à isenção do mal, o que é garantido pela segurança; ou à consecução do bem ─ conveniente, donde nasce a alegria, ou perfeito e por isso mesmo dotado de suficiência; ou concerne à manifestação do bem, ─ donde ─ a celebridade, quando o bem de um chega ao conhecimento de muitos, e a reverência, quando se dá uma prova desse conhecimento ou desse bem, pois, a reverência consiste na atribuição da honra, que é uma prova de virtude. Por onde, é claro que a enumeração de Boécio não inclui cinco dotes, mas sim cinco condições da beatitude .

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