O quarto discute-se assim. ─ Parece que os anjos tem dotes.
1. ─ Pois, àquilo da Escritura ─ Uma só e a minha pomba, diz a Glosa: Uma só é a Igreja, a dos homens e a dos anjos. Ora, a Igreja é a esposa; e assim os membros da Igreja devem ter dotes.
2. Demais. ─ Aquilo do Evangelho: E sede vós outros semelhantes aos homens que esperam ao seu senhor ao voltar das bodas, diz a Glosa: O Senhor foi às núpcias, quando depois da ressurreição, feito homem novo, unia-se à multidão dos anjos. Logo, a multidão dos anjos é a esposa de Cristo. E portanto, os anjos devem ter dotes.
3. Demais. ─ O matrimônio espiritual consiste numa união espiritual. Ora, a união espiritual não é maior entre os anjos e Deus, que entre Deus e os santos. Logo, como os dotes, de que agora tratamos, são conferidos em razão do matrimônio espiritual, parece que os devem ter os anjos.
4. Demais. ─ O matrimônio espiritual supõe um esposo e uma esposa espirituais. Ora, a Cristo, como espírito por excelência, mais são conformes por natureza os anjos que os homens. Logo, o matrimônio espiritual será antes o dos anjos que o dos homens com Cristo.
5. Demais. ─ Maior conveniência deve haver entre a cabeça e os membros, que entre o esposo e a esposa. Ora, a conformidade entre Cristo e os anjos basta para Cristo ser considerado a cabeça deles. Logo e pela mesma razão, basta para lhes ser chamado o esposo.
Mas, em contrário. ─ Orígenes distingue quatro pessoas: o esposo e a esposa, as moças que acompanham a esposa e os companheiros do esposo. E diz que os anjos são os companheiros do esposo. Logo, como dotes não os deve ter senão a esposa, parece que não convém aos anjos.
2. Demais. ─ Cristo desposou a Igreja pela incarnação e pela paixão; e é assim figurado naquele lugar da Escritura: Tu és para mim um esposo sanguinário. Ora, pela incarnação e pela paixão Cristo não se uniu aos anjos diferentemente do que antes. Logo, os anjos não pertencem à Igreja no sentido em que é chamada esposa, Logo, não podem ter dotes.
SOLUÇÃO. ─ O que se entende por dotes da alma não há dúvida que convém tanto aos anjos como aos homens. Mas, no sentido literal do vocábulo não convém a uns e a outros do mesmo modo; porque não podem os anjos ser esposas, no sentido próprio dessa palavra, como o convém à natureza humana, pois, entre esposo e esposa há de haver conformidade de natureza, i. é, hão de ser da mesma espécie. Ora, essa relação a tem os homens com Cristo por ter este assumido a natureza humana, por cuja assunção veio a assemelhar-se a todos os homens, pela natureza da espécie humana. Com os anjos porém não comunica pela unidade específica, nem pela natureza divina, nem pela humana. Por onde, ter dotes não convém aos anjos pela mesma razão por que o convém aos homens. ─ Contudo, os vocábulos empregados metaforicamente, não se possa predicar uma cousa de outra. E assim, pela razão referida, não se pode afirmar, em sentido absoluto, que os anjos não devem ter dotes; mas só que não os têem, como os homens, no sentido próprio deles, em razão da referida semelhança.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Embora os anjos pertençam à unidade da Igreja, não são contudo membros dela, no sentido em que ela é esposa por conformidade de natureza. E assim não lhes convém ter dotes, no sentido próprio destes.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Esses desposórios se tomam em sentido lato, pela união onde não há conformidade de natureza específica. E assim também nada impede, tomando os dotes nessa acepção lata, que os atribuamos aos anjos.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora no matrimônio espiritual não há senão uma união espiritual, contudo os que se unem hão de convir especificamente, para haver matrimônio perfeito. Por isso não se pode, em sentido próprio, falar em desposórios, em relação aos anjos.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Essa conformação pela qual os anjos se conformam com Cristo, enquanto Deus, não é tal que baste a constituir um matrimônio real; por não haver conveniência específica, mas antes, permanecer infinita entre Cristo e os anjos uma distância infinita.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Nem mesmo Cristo é considerado, em sentido próprio, cabeça dos anjos, no sentido em que ser cabeça supõe conformidade de natureza entre ela e os membros. Contudo, é mister saber, que embora a cabeça e os outros membros sejam de um indivíduo de uma mesma espécie, contudo, considerando-se cada membro à parte, não são todos da mesma espécie; assim, as mãos diferem especificamente da cabeça. Por onde, considerando os membros em si mesmos, não é necessário haja entre eles outra conveniência a não ser a de proporção, pela qual uns recebam a ação dos outros e se sirvam reciprocamente. E assim a conveniência existente entre Deus e os anjos serve mais de fundamento, que a de esposo, à noção de cabeça.