O segundo discute-se assim. ─ Parece que os santos, depois da ressurreição, verão a Deus com os olhos do corpo.
1. ─ Pois, os olhos glorificados tem maior acuidade que os olhos não-glorificados. Ora, o santo homem Job viu a Deus com seus olhos, conforme ele próprio o diz: Eu te ouvi por ouvido de orelha, mas agora te vê o meu olho. Logo e com muito maior razão, os olhos glorificados poderão ver a Deus por essência.
2. Demais. ─ Diz ainda Job: Na minha própria carne verei o meu Salvador. Logo, na pátria veremos a Deus com os olhos do corpo.
3. Demais. ─ Agostinho, tratando da visão dos olhos glorificados, assim se exprime: Os olhos dos glorificados terão uma virtude mais excelente, não por serem dotados de vista mais aguda que a atribuída às serpentes ou à águia; pois, por máxima que seja a penetração do olhar desses animais não podem ver senão corpos. Ao passo que os olhos glorificados poderão também ver seres incorpóreos. Ora, toda potência cognoscitiva capaz de conhecer o incorpóreo, pode elevar-se até a visão de Deus. Logo, os olhos glorificados poderão ver a Deus.
4. Demais. ─ A mesma diferença existe entre um ser corpóreo e um incorpóreo e inversamente. Ora, olhos incorpóreos podem ver cousas corpóreas. Logo, os olhos do corpo podem ver o incorpóreo. Donde a mesma conclusão que antes.
5. Demais. ─ Aquilo de Job ─ Parou diante de mim um cujo rosto eu não conhecia, etc., diz Gregório: O homem que, se quisesse observar o preceito, havia de tornar-se espiritual na sua carne, pelo pecado tornou-se carnal até na alma. Ora, por ter-se tornado de espiritual a carnal, como diz no mesmo lugar, não tem outros pensamentos que os hauridos nessas imagens corpóreas. Logo, mesmo quando a sua carne for espiritualizada, como está prometido aos santos, depois da ressurreição, poderá ver as cousas espirituais mesmo com os olhos da carne. Donde a mesma conclusão de antes.
6. Demais. ─ Só Deus pode beatificar o homem. Ora, será o homem beatificado não só na alma senão também no corpo. Logo, poderá ver a Deus não só com os olhos do intelecto, mas também com os do corpo.
7. Demais. ─ Assim como Deus nos está presente no intelecto pela sua essência, assim também nos estará presente aos sentidos, pois, será, tudo em todos, na frase do Apóstolo. Ora, será contemplado pelo nosso intelecto pela união da sua essência com ele. Logo, poderá ser visto também pelos sentidos.
Mas, em contrário. ─ Diz Ambrósio: Deus não pode ser percebido pelos olhos do corpo, nem circunscrito pela vista, nem apalpado pelo tato. Logo, nenhum sentido corpóreo verá a Deus.
2. Jerônimo diz: Os olhos do corpo não poderão ver, não somente a divindade do Pai, mas nem a do Filho nem a do Espírito Santo; vê-lo-ão porém os olhos da alma, sendo por isso dito ─ Bem-aventurados os limpos de coração.
3. Demais. ─ Diz ainda Jerônimo: Os seres incorpóreos não podem ser vistos pelos olhos da carne. Ora, Deus é o ser incorpóreo por excelência. Logo, etc.
4. Demais. ─ Agostinho diz: A Deus nunca ninguém o viu tal como é, nem nesta vida, nem na vida dos anjos, assim como agora vemos as causas visíveis a este mundo, com os olhos do corpo. Ora, chama-se vida dos anjos a vida bem-aventurada, que viverão os ressuscitados. Logo, etc.
5. Demais. ─ A Escritura diz que o homem foi feito à imagem de Deus por ser destinado a contemplá-lo, como ensina Agostinho. Ora, é pela alma e não pela carne que o homem é a imagem de Deus. Logo, pelo intelecto e não pela carne que verá a Deus.
SOLUÇÃO. ─ Uma causa pode ser percebida pelos sentidos do nosso corpo de dois modos: em si mesmo e por acidente. Em si mesmo percebem o que, por si mesmo é capaz de lhes causar uma paixão. Ora, em si mesmo considerado pode um objeto causar uma paixão ou ao sentido como tal, ou a um determinado sentido como tal. Ora, o que, deste segundo modo, por si mesmo pode causar uma paixão no sentido, chama-se sensível próprio; assim a cor em relação à vista e o som, em relação ao ouvido. Mas como o sentido como tal tem que se servir de um órgão corpóreo, nada pode receber senão corporalmente, pois tudo o que um ser recebe ao seu modo o recebe. Por onde, todos os sensíveis causam paixão ao sentido como tal, na medida em que tem uma certa extensão. Por isso, a extensão e todos os seus consectários, como o movimento, o repouso, o número e atribuições semelhantes chamam-se sensíveis comuns, em si mesmos considerados. Por acidente porém sentimos o que não nos causa paixão ao sentido, nem como sentido, nem como um determinado sentido, senão enquanto em união com um sensível, capaz de por si mesmo influenciar o sentido. Assim Sócrates, filho de Diaris, amigos e idéias semelhantes, conhecidos em si mesmos e na sua universalidade pelo intelecto, e particularizadas pela potência imaginativa, no homem, e pela estimativa nos animais irracionais. Esses sensíveis dizemos que os sentidos externos percebem, por acidente embora, quando, a potência apreensiva, à que é próprio conhecer esses cognoscíveis, imediatamente e sem vacilar e sem nenhum discurso, os apreende mediante um sensível que é apreendido diretamente pelo sentido; do mesmo modo que concluímos ser uma pessoa viva o só fato de a vermos falar. Mas quando o conhecimento sensível se processa diversamente, não dizemos que o sentido percebe, mesmo acidentalmente.
Ora, digo que Deus de nenhum modo pode ser visto pelos olhos do corpo, nem percebido por nenhum sentido, como se fosse em si mesmo visível, nem nesta vida nem na pátria. Pois, se privarmos um sentido como tal, dos seus elementos constitutivos, já não será sentido; e se privarmos a vista do que como tal a constitui, deixará de ser vista. Ora, o sentido, como tal, percebe a extensão; e a vista, como um sentido determinado, percebe a cor. É, portanto, impossível à vista perceber o que não tem cor nem extensão, salvo se se tomasse a palavra sentido em acepção equívoca. Ora, como a vista e os outros sentidos hão de existir no corpo glorioso especificamente os mesmos que existiam no corpo não glorioso, não poderá a vista contemplar a essência divina como se lhe fosse um ser em si mesmo visível. Mas a verá como um visível por acidente. De tal modo que, de um lado, os olhos do corpo glorificado verão a imensidade da glória de Deus manifestando-se nos corpos, sobretudo nos gloriosos e, por excelência, no corpo de Cristo; e, de outro lado, o intelecto verá a Deus tão claramente, de maneira que, mediante a visão das causas materiais, perceberá a Deus, como pelo falar, de uma pessoa lhe percebemos a vida. Embora, pois, na pátria, o nosso intelecto não tenha a visão de Deus mediante as criaturas, contudo o verá manifesto nas criaturas vistas com os olhos do corpo. E esse modo de ser Deus visto com os olhos do corpo, Agostinho o admite, como facilmente se convencerá quem lhe atender as palavras seguintes. Podemos crer, diz, com grande verossimilhança, que, depois da ressurreição, veremos os corpos componentes do céu novo e da terra nova, de modo a percebermos a onipresença de Deus e o seu governo universal, com uma visão claríssima. Não como agora compreendemos as cousas invisíveis de Deus por aquelas que foram feitas, mas do modo pelo qual, quando vemos um homem, não o cremos vivo, mas o vemos imediatamente como tal.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ As palavras citadas de Job entendem-se da visão espiritual, da qual diz o Apóstolo: Para que ele esclareça os olhos do nosso coração.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A autoridade aduzida não se entende como significando que havemos de ver a Deus com os olhos do corpo, mas que o veremos depois de ressuscitado o nosso corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Agostinho, nas palavras citadas, se exprime duvidosa e condicionalmente. Como é claro pelo que diz antes: Os olhos lhes terão um poder de visão muito diverso se puderem com eles ver essa natureza incorpórea. Depois acrescenta: Uma força portanto, etc.; para em seguida resolver a dúvida, como se disse.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Todo conhecimento supõe uma abstração da matéria. Por onde, quanto mais abstrata da matéria fora forma corpórea, tanto mais será um princípio de conhecimento. Por isso a forma unida à matéria de nenhum modo é princípio de conhecimento; a forma sensível já o é de certo modo, na medida em que está separada da matéria; e muito mais a existente em o nosso intelecto. Por onde, os olhos do espírito, isentos de tudo o que possa impedir o conhecimento, podem perceber um ser material. Mas daí não resulta que os olhos do corpo, de capacidade cognitiva limitada, por estarem ligados à matéria, possa ter conhecimento perfeito dos cognoscíveis incorpóreos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Embora o intelecto feito carnal não possa conhecer senão mediante os sentidos, contudo conhece de maneira imaterial. Semelhantemente, os olhos do corpo tudo o que apreendem hão de apreender de modo material. Portanto, não podem ver o que não pode ser materialmente percebido.
RESPOSTA À SEXTA. ─ A beatitude é a perfeição do homem enquanto homem. Ora, o homem não o é pelo seu corpo, mas sobretudo pela alma; o corpo lhe pertence à essência senão enquanto aperfeiçoado pela alma. Por onde, a beatitude do homem não consiste principalmente senão no ato da alma, donde deriva para o corpo por uma certa redundância, como do sobredito se colige. Portanto, uma certa beatitude do nosso corpo consistirá em ver a Deus manifesto nas criaturas sensíveis e sobretudo no corpo de Cristo.
RESPOSTA À SÉTIMA. ─ O intelecto pode perceber o espiritual, mas não os olhos do corpo. Por onde, o intelecto poderá conhecer a essência divina a que está unida, mas não o podem os olhos da carne.