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Miragem ou visibilidade

Dentro deste ambiente pesado em que voltamos a viver hoje, doze anos depois, diante da ameaça de vermos nossos companheiros de combate fazerem acordo com o Vaticano, venho tirar dos arquivos empoeirados da memória, dos arquivos dessa velha Permanência, tão pequena, tão mal falada em certos meios, porém sempre fiel, algumas gotas de luz e claridade. Volto-me ao velho mestre Corção, que, sozinho e isolado neste Rio de Janeiro dos anos 70, recebeu graças impressionantes para nos guiar no meio da confusão e da discórdia, sem padres, sem bispos, sem igrejas, sem missa. Coisas da graça, coisas da vida interior. E Gustavo Corção exprimiu em poucas linhas de um artigo a chave de um delicado problema de fé que se nos impõe hoje: como podemos nos levantar contra as autoridades do Vaticano se a Igreja Católica é essencialmente visível nessa hierarquia? De onde nos vem o direito e mesmo o dever de não querer negociar com as autoridades do Vaticano, sem cair no cisma ou num certo gosto de estar na marginalidade?

Trata-se da visibilidade da Igreja. A Igreja não é uma sociedade puramente espiritual, ela é essencialmente visível. Essa visibilidade faz parte da sua santidade, é um raio de luz que do céu, da coroa de pedras preciosas que orna a Cabeça Sagrada de Jesus Cristo, resplandece dentro da sua Igreja, para que todos a vejam, linda e bela, sem rugas nem manchas. Imaculada.

Essa verdade que se encontra em S. Paulo e nos Padres da Igreja, explicitada de modo admirável pelo Papa Pio XII, na encíclica Mystici Corporis, de 1943, assim como por Leão XIII, em Satis Cognitum, de 1896,  esbarra sempre numa pedra-de-tropeço que já derrubou e continua derrubando muitos leais combatentes da fé.

Quando ouvimos falar em visibilidade, a tendência nossa é olhar em volta e ver o que se enxerga. E o que vemos, antes de tudo, o que aparece em primeiro lugar na Igreja? É a sua hierarquia: o Papa e os Bispos, as instituições que governam a Igreja. Se nossa atenção para essa verdade não for atraída para um estudo mais aprofundado, vamos passar afoitos sem nos darmos conta do fundo do problema. Que a hierarquia católica seja manifestação da visibilidade da Igreja é coisa evidente. Mas é preciso explicitar isso.

A Visibilidade do Corpo da Igreja

Como todo corpo, o da Igreja é visível. Trata-se dos seus membros, dos homens que a compõem e das instituições humanas estabelecidas pelas autoridades para transmitir seu governo. Aliás, o Papa Pio XII ensina que não é apenas a hierarquia eclesiástica que compõe essa visibilidade. O Papa cita os pais de família, que, eles também, manifestam a visibilidade da Igreja ao formar as almas dos seus filhos como bons católicos, pela oração comum da família, pelo catecismo, pela freqüência aos sacramentos.

A Visibilidade do Corpo Místico de Cristo

Mas a Igreja não é apenas visível no seu corpo, nos seus membros. O grande mistério da Santa Visibilidade da Igreja está naquilo que não aparece com evidência humana, mas que sabemos por revelação divina, no mistério da fé: a Igreja é visível sobretudo nos seus traços sobrenaturais. Ou seja, na sua santidade e nos seus sacramentos, na graça que ela distribui a todos os batizados, na unidade de doutrina que ela ensina, em todos os seus aspectos divinos, naquilo que ela é: Corpo Místico de Cristo.

Podemos compreender um pouco melhor esse delicado ponto se prestarmos atenção a Jesus crucificado. Os homens, naquele dia, perderam a visibilidade do corpo de Cristo, pois que o viam morto na Cruz. Tanto é assim que os discípulos de Emaús iam tristes pelo caminho, achando que tudo estava perdido. Por que razão Jesus devia criticá-los duramente na conversa que mantém com eles no caminho de Jericó? Não era verdade o que viam? Jesus não morrera? Como podiam eles saber que aquele corpo morto não havia de assim permanecer?

Ó estultos e tardos em compreender!

Foi com essas palavras duras que Jesus sacudiu suas almas para lhes advertir: olhem para aquele homem morto com os olhos da fé, e creiam! Tenham fé sobrenatural, pois por detrás das aparências da morte do corpo existe a fé, a fé que lhes vem pelos ouvidos, daquilo que eu lhes falei: que no terceiro dia ressuscitaria. Homens de pouca fé! Olhem a visibilidade do meu Corpo Místico, se a visibilidade do meu corpo físico vier a apagar-se. Deixem de lado as coisas evidentes para a natureza e apeguem-se àquilo que não é evidente e que exige uma fé íntegra e total. Creio na Igreja Católica.

Ó Senhora minha, Esposa Mística de meu Deus, como pude temer e fugir assim? Como pude abandonar-vos no momento dessa crucifixão, dando ouvidos aos que sacudiam o cadáver de um corpo apodrecido e já sem a seiva da fé? É para jurar, é para jurar, pelo amor de meu Deus, pelo amor de meu Jesus por mim crucificado, que não vos abandonarei na hora derradeira; que estarei de pé como esteve São João representando-nos junto a vosso Esposo divino. Estarei de pé, na dor e na angústia, como esteve a doce Mãe de vosso Esposo, a Virgem Maria. É a ela que recorro, é a ela que busco com os olhos da fé, minha Mãe, para que me ensine, no colo, a ser forte, a espantar para longe o naturalismo, que me ameaça e que me conduz com agrados ao cadáver de uma hierarquia moribunda, esse Sinédrio dos últimos tempos.

Todos os Papas que falaram sobre a visibilidade da Igreja, ao ensinar que o Papa e os Bispos são os representantes e o canal dessa visibilidade, pelo triplo poder de santificar, ensinar e governar, supõem que esta hierarquia ensina, santifica e governa com a fé católica e pela fé católica. É por isso que já não podemos usar esse critério de visibilidade, esse critério das coisas evidentes e naturais. É por causa da perda da fé, por causa dos quarenta anos de ensinamentos e atos contrários à fé, que eles já não gozam da nossa confiança de filhos. Não dizemos que eles não sejam legítimos membros da hierarquia. O que dizemos é que, mesmo sendo, já não servem de critério de visibilidade da Igreja. E isso não diminui essencialmente essa visibilidade. É claro que, se isso acontecesse, a Igreja estaria derrotada. Mas não acontece justamente porque a essência da visibilidade supõe a fé; a essência da visibilidade não é a coisa natural e evidente, e sim o mistério de uma instituição que é visível naquilo mesmo que nela é invisível. E essa visibilidade permanece intacta enquanto existir uma só alma que seja com a graça santificante no coração. Permanece viva, clara, forte e infalível enquanto permanecer um só altar em que o verdadeiro sacrifício seja celebrado. Morre a hierarquia, desaparece o que é dos homens, mas permanece visível, para quem quiser ver, a Santa Visibilidade da Imaculada Esposa de Cristo.

Se Jesus pôde morrer e desaparecer aos olhos dos seus apóstolos e isso não significou a derrota do Filho de Deus, porque permanecia visível e viva a união hipostática das duas naturezas (mistério), assim também podemos assistir sem  medo à morte do corpo da Igreja, desaparecendo o corpo visível e mortal, pecador e fraco, desde que nossa fé nos traga a certeza de que a Santa Visibilidade da Igreja permanece no mistério da Esposa de Cristo, na sua fé, na sua doutrina, nos seus sacramentos, na graça santificante e, se Deus assim nos conceder, até em três ou quatro bispos santos que sirvam para nós de bastão, de pastores, na travessia do deserto. E estejamos atentos pois muitas miragens poderão querer nos enganar.

Não nos encantemos, pois, com idéias falsas sobre a visibilidade da Igreja, idéias que no fundo denotam perda da fé, e nos lançam na detestável companhia dos lapsi, da Roma antiga, que, sem admitir doutrinas contrárias ao cristianismo, iam por fraqueza e diplomacia queimar um incensozinho ao imperador. Caíram quanto à fé, enquanto os mártires foram às feras! Que venham as feras do Vaticano, e que a graça de Deus nos ampare na terrível perseguição e na tentação.

O artigo de que falei no início, de Gustavo Corção, é A Descoberta da Outra

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