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Art. 2 — Se a criatura corpórea foi feita para a bondade de Deus.

O segundo discute-se assim. — Parece que a criatura corpórea não foi feita para a bondade de Deus.
 
1. — Pois diz a Escritura: Criou as coisas para que todas subsistissem. Logo, todas as coisas foram criadas para o próprio ser delas, e não para a bondade de Deus.
 
2. Demais. — O bem, exercendo a função de fim, o que, nas coisas, é melhor há-de ser fim do menos bom. Ora, a criatura espiritual está para a corpórea, como o melhor para o menos bom. Logo, esta é para aquela e não para a bondade de Deus.
 
3. Demais. — A justiça dá coisas desiguais a seres desiguais. Ora, Deus é justo. Logo, antes de qualquer desigualdade criada por Deus, está a que Ele não criou. Ora, esta só pode ser a proveniente do livre arbítrio. Por onde, toda desigualdade resulta dos diversos movimentos do livre arbítrio. Mas as criaturas corpóreas não sendo iguais às espirituais, foram feitas para certos movimentos do livre arbítrio e não, para a bondade de Deus.
 
Mas, em contrário, diz a Escritura: Tudo fez o Senhor por causa de si mesmo.
 
Solução. — Orígines ensinou que a criatura corpórea não estava na intenção primeira de Deus o fazê-la, mas o fez como pena da criatura espiritual, que pecou. Pois, admitia que Deus, no princípio, fez só as criaturas espirituais, e todas iguais; e essas sendo dotadas de livre arbítrio, converteram-se umas, para Deus; e segundo a grandeza da conversão, assim lhes coube grau maior ou menor, permanecendo elas na sua simplicidade; outras, porém, afastaram-se de Deus e foram ligadas a corpos diversos, segundo o modo da sua aversão de Deus. — Mas, esta opinião é errônea. Primeiro, por contrariar a Escritura que, após ter narrado a criação de todas as espécies de criaturas corpóreas, acrescenta: E Deus viu que isto era bom, quase dizendo que cada qual por isso foi feita por que a existência em si mesma é boa. Ao passo que, segundo a opinião de Orígines, a criatura corpórea foi feita, não porque é bom que ela exista, mas para que fosse punido o mal de outrem. Segundo, porque resultaria proveniente do acaso a disposição do mundo corpóreo tal como existe. Pois, se o corpo do sol foi feito tal que conviesse à punição de algum pecado da criatura espiritual, resultaria a existência de vários sois no mundo, se várias criaturas espirituais pecaram semelhantemente àquela, para a punição de cujo pecado, Orígines admite como criado o sol. E o mesmo se daria com os outros seres, o que é absolutamente inadmissível.
 
Por onde, eliminada esta opinião como errônea, devemos considerar que a totalidade do universo se constitui de todas as criaturas, como o todo das partes. Se porém quisermos determinar o fim de algum modo e das suas partes, descobriremos, primeiro, que cada parte é para os seus atos, assim, os olhos, para ver; segundo, que a parte menos nobre é para a mais nobre, assim, os sentidos para o intelecto, o pulmão para o coração; terceiro, todas as partes são para a perfeição do todo, assim, a matéria para a forma, pois as partes são quase a matéria do todo; e por fim, o homem total é para algum fim extrínseco, a saber, para gozar de Deus. Por onde, também nas partes do universo cada criatura é para o seu próprio ato e perfeição; segundo, as criaturas menos nobres para as mais nobres, como as criaturas inferiores do homem são para este; depois, cada criatura é para a perfeição de todo o universo; e por fim, todo o universo, com as suas partes, se ordena para Deus como para o fim, enquanto nelas, por uma certa imitação, é representada a bondade divina, para a glória de Deus. Mas, além disso, as criaturas racionais, de certo modo especial, têm Deus como fim porque podem alcançá-lo pelas suas operações, conhecendo e amando. E assim é claro que a bondade divina é o fim de todos os seres corporais.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Toda criatura, pelo fato mesmo de existir, representa o ser divino e a sua bondade. Por onde, o ter Deus dado o ser a todas as coisas, para que existissem, não exclui que as tivesse criado para a sua bondade.
 
Resposta à segunda. — O fim próximo não exclui o fim último. Donde, o ter a criatura corpórea sido feita, de certo modo, para a espiritual, não exclui que tenha sido feita para a bondade de Deus.
 
Resposta à terceira. — A igualdade da justiça se dá na retribuição; pois o justo consiste em dar coisas iguais a seres iguais. Mas ela não tem lugar na primeira instituição das coisas. Pois, assim como o artífice coloca pedras no mesmo gênero em partes diversas do edifício, sem injustiça; não por alguma diversidade precedente delas, mas atendendo à perfeição de todo o edifício, que não existiria se as pedras nele não ocupassem posições diversas; assim Deus instituiu, desde o princípio, criaturas diversas e desiguais, para que houvesse perfeição no universo, e isso segundo a sua sapiência, sem injustiça, e sem nenhuma pressuposição, portanto, de diversidade de méritos.

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