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As três revoluções

O ano de 1968 ficará na História, sem dúvida alguma, como um marco tão significativo quanto o foi o de 1789 ou o de 1917. Três revoluções se sucederam no período da história da Igreja que se estendeu do século XVI ao século XX. Foi o período da apostasia das nações. Começou na Renascença e na Reforma e continuou na Revolução, cujo sentido profundo cada dia melhor conhecemos. A ação satânica desenvolve-se no correr dos séculos e tudo se passa como se houvesse uma revelação progressiva do mal, revelação progressiva no processo político econômico, familiar, cultural e, finalmente, espiritual da grande recusa, do “Non serviam”.

Sabemos o que significou a Renascença: foi a dissociação da natureza e da graça, a afirmação da beleza e da bondade da natureza sem a graça.
 
Sabemos o que foi a Reforma: o divórcio entre a razão humana e a razão divina, o livre exame do indivíduo contrapondo-se à graça misericordiosa do Magistério exercido pelo Vigário de Cristo.
 
O que nossa geração precisa aprofundar é o sentido, em verdade ambíguo, desta palavra que ressoa hoje como a recusa comunitária do amor de Deus: A REVOLUÇÃO.
 
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Sabemos todos que as datas apenas representam marcos: 1789 assim como 1917 e 1968 não são começo nem fim e sim novas etapas. O que mais importa é penetrar bem na realidade profunda do que não hesito em chamar interioridade crescente da revolução. Satã é o símio de Deus. Assim, como, através dos séculos, o Espírito Santo enriquece a Igreja pela Revelação progressiva da Verdade inteira. Satã empenha-se na tarefa de, pouco a pouco, aprofundar o erro na alma dos homens pela revelação progressiva de todas as dimensões espirituais da recusa de Deus, da recusa da Luz e finalmente da recusa do Ser.
 
Assim, é força de expressão falar em três revoluções, referindo-se a 1789, 1917 e 1968. Trata-se, em verdade, de uma só e única revolução que, por etapas, revela nas almas e na história o crescimento místico do “Non serviam”. Convém observar que o objetivo dessa revelação é, logicamente, o oposto do da revelação do Espírito de amor dentro da Igreja.
 
A ação divina parte do interior para o exterior. É crescimento de amor na alma, de amor que representa luz para a inteligência, força para a vontade, equilíbrio da natureza e da graça para o ser por inteiro. Pouco a pouco, o crescimento de Cristo no cristão, irradiando na família e no espírito missionário, torna-se crescimento de uma comunidade cristã. Quando as famílias vivem este processo de crescimento dentro do corpo místico da Igreja, espontaneamente geram instituições cristãs. Assim como podemos perceber dentre as células vivas que se multiplicam para constituir o organismo, a formação seletiva das células ósseas do esqueleto, na medida em que a vida cristã se desenvolve numa comunidade, também no corpo social vemos crescerem as instituições cristãs que são o arcabouço indispensável à ordenação da natureza aperfeiçoada pela graça.
 
Podem ser instituições de ação limitada, micro-realizações, como se diz hoje em dia: conventos, escolas, hospitais, associações católicas culturais ou profissionais... Podem ser, também, de médio ou grande raio de ação e se transformarem nas grandes estruturas políticas que são o Estado cristão e a sociedade cristã dos Estados. Não vou aqui analisar como se desenvolveu esse processo de ação partindo dos Apóstolos depois de Pentecostes, e chegando à formação da Europa Cristã da Idade Média. Quero apenas enfatizar sua natureza: parte do interior para o exterior, da vida cristã para a instituição cristã, do crescimento do Cristo na pessoa para a presença do Cristo na sociedade, da conversão de uma alma à harmonia dinâmica das almas no seio do Corpo Místico de Jesus Cristo em desenvolvimento através dos tempos. O processo de crescimento das instituições temporais é o mesmo das instituições espirituais que têm sempre em vista o movimento de dentro para fora, da união da alma com Deus, do serviço para a glória de Deus, da vida particular para a vida pública.
 
Portanto, não é surpreendente que o espírito do mal atue, tanto quanto possível, no sentido inverso ao que aqui descrevemos. Para melhor desviar de Deus as almas, Satã priva-as, inicialmente, da ajuda das instituições que são o arcabouço da vida social cristã. Em 1789 empenhou-se em liquidar as instituições públicas da ordem natural e cristã. Em 1917 fez o mesmo às instituições econômicas — portanto privadas — da mesma categoria. Em 1968, sob a designação de revolução cultural, esforça-se por atingir as almas no seu cerne. Destruídos ou desfigurados os apoios políticos e econômicos, assistimos à ofensiva geral contra as almas para delas extirpar até a imagem de Deus.
 
Ouço vozes distantes mas numerosas objetando “que nem tudo foi mau na revolução de 1789... que é bom ter presente alguma coisa das críticas feitas pelos revolucionários de 1917 ao meio social que destruíam... e que talvez existam elementos positivos na revolução chinesa disseminada hoje pelo mundo inteiro...”.
 
Menciono essa objeção por ser característica de uma certa mediocridade intelectual contemporânea que consiste em enfatizar o aspecto positivo e às vezes real de questões absolutamente secundárias, para evitar o combate ao caráter negativo do essencial.
 
Podem discutir se a revolução política de 1789 permitiu dividir a França em 89 Departamentos ou se deu ao país a oportunidade de ter uma constituição escrita. Mas, por favor! Temos mais o que fazer.
 
Temos que ir ao essencial. O essencial consiste em descobrir, nas revoluções de 1789, de 1917 e de 1968, a fonte, a semente ou a raiz da evolução social subseqüente. Passo agora à análise do fenômeno principal que se seguiu a cada uma delas, a essência de cada uma delas, ou melhor, a revelação gradativa de que representaram uma só e total revolução.
 
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Comecemos pela revolução de 1789. Há duzentos anos nos ensinam que foi uma revolução política. Certo. Porém não o foi no sentido em que nos ensinaram.
 
Sabemos que a palavra “política” tem diversos sentidos. Pode significar desde a pequena trama eleitoral (politicagem) até o equilíbrio no governo do Estado (política simplesmente) ou as mais profundas ligações entre o bem comum da Cidade e os fins últimos do homem (política no dizer de Santo Tomás, no sentido nobre da palavra).
 
Ora, fizeram-nos crer que a revolução de 1789 era política no segundo sentido, que era uma revolução feita para substituir o regime monárquico pelo republicano e somente isto. Ensinaram-nos que na monarquia os franceses eram infelicíssimos, que pagavam pesados impostos, que as desigualdades eram escandalosas e que essas e outras coisas no gênero foram rápida e conscienciosamente modificadas pelo governo republicano. Não me vou deter em considerações relativas aos méritos dos dois regimes na França. Limitar-me-ei a contestar esta definição de revolução. Sem dúvida foi uma revolução política, mas não no sentido de transição violenta de um regime monárquico hereditário para um regime republicano eletivo. Trata-se de coisa bem diferente e é fácil demonstrá-lo.
 
Se o que nos ensinaram fosse verdadeiro, a uma monarquia cristã ter-se-ia sucedido uma república cristã. A uma monarquia em que a ordem social e a vida pública fossem fundamentadas na lei divina, natural e revelada, ter-se-ia sucedido uma república em que a ordem social e o direito público e privado seriam também fundamentados sobre a lei divina, natural e revelada. À monarquia temente a Deus sucederia uma república temente a Deus. Se a revolução de 1789 fosse política no sentido prudencial da palavra a França teria permanecido cristã.
 
Essa hipótese, por si só, faz-nos compreender a dimensão total do problema. A revolução francesa foi política sim, mas não no sentido prudencial da palavra (Decorre também da virtude da prudência o saber discernir se, para determinado país, melhor convém o governo de um só ou o governo de muitos). Foi política no sentido em que, depois, Santo Tomás, Bossuet, Joseph de Maistre e Pio XII a empregaram. A essência da revolução francesa foi a substituição de um regime cristão por um regime laicizado. Esta “mutação”, como se diz hoje em dia, foi escamoteada à percepção, dissimulada, disfarçada sob a idéia de simples transição de monarquia para república. A revolução de 1789 foi o advento do laicismo.
 
O que é laicismo?
 
Sua definição é clara: é o divórcio entre o direito positivo que rege a sociedade e a moral natural e cristã. A partir do momento em que o direito positivo, que na vida social comanda os atos públicos e privados, é totalmente desvinculado do direito natural e cristão — seja na monarquia ou na república — está consumada a revolução política. A partir do momento em que a instituição do divórcio, do aborto, do uso da pílula contraceptiva ou abortiva não estão mais, por princípio, em conexão fundamental com a ordem inserida na realidade da natureza e da graça e passam a depender simplesmente do voto de uma maioria ou do arbítrio de um só homem, está consumada a revolução política.
 
Sem dúvida, nesse período de cento e oitenta anos decorridos após o divórcio entre direito público e privado, e o natural e cristão, houve situações mais ou menos aceitáveis, momentos de reaproximação e horas em que a palavra de Deus parecia respeitada pela comunidade como tal; assim aconteceu porque a alma da França — refiro-me à da elite francesa — permaneceu cristã. Mas é preciso reconhecer que isto tornou-se mais raro à medida que, do exterior para o interior, foi se desenvolvendo a ação satânica. Não somente os crucifixos mas o próprio Cristo foi arrancado dos hospitais, das repartições e das escolas. O Cristo — e não apenas o crucifixo — foi progressivamente eliminado de toda a vida pública e de uma parte da vida privada. A presença luminosa da Igreja foi velada pelo laicismo. Pela mentira, pela calúnia, pela felonia ou pelo silêncio omisso processou-se um trabalho de destruição até o ponto em que hoje estamos: vemos padres com as almas laicizadas e interiormente destruídos, querendo persuadir-nos que a Igreja deve ser “dessacralizada”, o sacerdócio “desierarquizado” e a religião “desmitificada”. Aí está a conseqüência lógica do laicismo político quando, em todas as instituições do corpo
social, substitui de modo progressivo e dinâmico a verdadeira política — que é natural e cristã.
 
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Passemos à Revolução de 1917, a revolução econômica. Aqui, também, precisamos explicitar o sentido da palavra. Na definição liberal, economia é a ciência da aquisição de riquezas mais adequadamente chamada pelos antigos de crematística. No sentido marxista é a concepção da organização do trabalho fundamentada no materialismo dialético. No sentido natural e cristão é o desenvolvimento social da ação humana colocando ao alcance de todos os membros da sociedade, de maneira estável, as condições necessárias ao desenvolvimento de sua vida cultural e espiritual.
 
Quer dizer que a ordem natural e cristã exige a vida econômica em conexão íntima e permanente com a vida espiritual. Para isso, é mister que todos os direitos concernentes à prosperidade material das pessoas e das famílias sejam protegidos pelas instituições. E principalmente, que todos os deveres sejam conhecidos e, em sua maioria, habitualmente respeitados: dever de preços justos na agricultura, na indústria e nos serviços; dever de salário justo; dever de lucro justo; dever de orientação social nos investimentos. É portanto a mesma orientação para a vida econômica, política, para a vida de família e para qualquer tipo de vida social. Pressupõe um mínimo de moralidade nas pessoas. Se o pai explora os filhos, se o
político governa em função do seu interesse ou de sua glória, se o capitalista e o chefe de empresa procuram o lucro sem considerar o bem comum, deforma-se a sociedade e até pode tornar-se insuportável. É o prenúncio da revolta.
 
A essência da revolução de 1917 foi a colocação da equação: propriedade = injustiça social. Tal equação significa, na prática, que o homem pecador é incapaz de portar-se de maneira justa na vida econômica. Significa que a pessoa é corrompida e que não o são a coletividade e o colegiado. Logo, para garantir a justiça é necessário suprimir a liberdade pessoal. Para assegurar uma justa distribuição de bens é necessário suprimir a propriedade privada e a liberdade que ela sustenta. Somente o colegiado e a comunidade são, por natureza, bons, infalíveis e impecáveis. De certo modo, o coletivismo da revolução comunista corresponde, na ordem econômica, ao laicismo na ordem política. A revolução de 1789 quis substituir a vontade divina pela vontade humana de uma maioria anônima. Também a revolução de 1917 quis substituir pela coletividade anônima, a ordem natural da propriedade privada e da responsabilidade pessoal e social dos proprietários. A Revolução, depois de despersonalizar a autoridade em 1789, depois de despersonalizar a propriedade em 1917, tentou, em 1968, com Marcuse, despersonalizar o amor.
 
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Chegamos então ao fundo do problema. Na origem da revolução há, de certo modo, uma recusa da liberdade, ou melhor, uma recusa da condição de liberdade humana inerente ao homem pecador e resgatado. Nesse sentido, o socialismo é a técnica para proporcionar os benefícios de uma redenção temporal sem a Cruz, fruto do pecado. É certo que o político pode agir mal. É verdade que o chefe de empresa pode explorar seus empregados. É verdade que o marido — ou o pai de família — pode ser indigno. E é verdade que no correr da vida social os pecados dos governantes recaem sobre os governados, que a injustiça dos patrões pode destruir ou revoltar seus empregados e que o peso do egoísmo geral pode conduzir à tragédia. Então, para suprimir as falhas humanas, o socialismo suprime a liberdade pessoal que as permite. São substituídas por um mito, igualitário, anônimo e totalitário.
 
Chegamos ao mais trágico: para compreendê-lo não basta a inteligência. É preciso a alma inteira.
 
Sempre houve duas espécies de homens: os que aceitam ser o homem pecador e que, a qualquer momento, cada um de nós possa tornar-se vítima dos pecados dos outros assim como os outros podem tornar-se vítimas dos próprios pecados; e os que não aceitam essa condição humana.
 
Só se pode aceitar essa condição, essa solidariedade, essa interdependência das boas e más ações, dos vícios e das virtudes, acreditando em Jesus Cristo. Só é possível aceitar a injustiça dos outros na medida em que se aceita viver segundo a mensagem evangélica. A sociedade torna-se acolhedora, pouco a pouco, na medida exata em que se torna cristã e em que os bons costumes são habituais e comunitários.
 
A inteligência moderna é por demais lúcida em sua penetração para que lhe tenha escapado o âmago desse problema. A essência da esquerda, que se identifica com a essência da revolução, é a recusa da condição humana em que Deus nos quis solidários em vista da salvação. O homem revoltado é aquele que, por princípio, recusa que o pecado de um possa transformar-se em sofrimento para o outro e que a retidão de um possa ser o fundamento da felicidade do outro.
 
O que ele quer destruir é uma sociedade em que as pessoas, permanecendo livres, sejam inexoravelmente e irremediavelmente unidas pelas conseqüências sociais das virtudes ou dos vícios. O que ele quer construir é uma sociedade em que toda a vida social seja organizada sem o poder que cada homem tem de ser justo ou injusto. Como é um só o poder de ser justo ou injusto, de pecar ou de agir de maneira reta e santa, a revolução quer arrancar do homem, simultaneamente, o poder do mal E do bem. Quer arrancar de cada um, em cada ato da vida social que implique conseqüências para os outros, sua liberdade de dizer “sim” ou “não” a Deus. A seguir, a revolução quer arrancar do homem sua liberdade e o instrumento imediato de ser livre que é o direito sobre si e sobre os bens que conquistou. Foi assim que em 1789 julgaram resolver o problema político substituindo o direito natural e cristão pelo despotismo público da maioria. Foi assim que em 1917 quiseram resolver o problema econômico, substituindo a eventual justiça do patrão pelo despotismo público do soviete.
 
Esperou-se, assim, substituir o risco natural decorrente da verdadeira condição do homem sobre a terra pela segurança da sociedade ideal. O fracasso do comunismo já é hoje evidente. As revoltas operárias na Alemanha Leste, na Hungria e na Tchecoslováquia são mais eloqüentes que todos os discursos juntos. Para manter os tchecos numa economia totalitária coletivista não há, hoje, outro recurso senão o dos tanques soviéticos. Está provado que o peso das faltas do homem pecador, mesmo numa sociedade laicizada, ainda é mais suportável que o peso do totalitarismo comunista no exercício de sua tirania.
 
O laicismo do Estado Político fez os franceses muito mais infelizes espiritualmente, muito mais divididos politicamente, muito mais explorados socialmente que a ordem cristã que o precedera. Ninguém mais acredita hoje na república que os antepassados quiseram fundar. É o malogro total e lastimável.
 
Da mesma maneira, a coletivização da economia e as formas diversas do totalitarismo econômico contemporâneo tornaram mais escravos os homens, do que os piores excessos do liberalismo, os quais eram, no entanto, os primeiros resultados da revolta contra Deus.
 
Satã serve-se então das derrotas às quais ele mesmo conduziu os homens para fazê-los tentar uma nova experiência sobre as ruínas das duas primeiras. Depois de ter estabelecido estruturas políticas laicizadas, depois de ter instalado estruturas econômicas materialistas conduz os povos a completar a revolução no próprio íntimo da vida pessoal: é a revolução cultural.
 
Do exterior para o interior a revolução política orientou a vida pública contra Deus e fê-la fundamentar-se no homem. A revolução econômica levantou contra Deus a vida privada e alicerçou-a no homem. A revolução cultural quer também contrapor a Deus a vida espiritual, a vida íntima da alma, a vida interior e assentá-la sobre o
homem. É a derradeira etapa. É o remate do processo que, partindo do exterior e depois de destruir uma a uma todas as defesas, atinge o homem como alma espiritual, como templo de Deus e como santuário da vida trinitária.
 
Pouco importam as condições históricas que levaram Mao Tsé-Tung a conceber a revolução cultural dentro da revolução econômica como uma subversão dentro de outra subversão. Interessa-nos a conclusão que, afinal de contas, Mao Tsé-Tung é mais lúcido que os dirigentes soviéticos. Estes permanecem solidamente amarrados ao marxismo-leninismo clássico. Crêem, inalteravelmente, que continuando a identificar a revolução com a socialização dos meios de produção, construirão uma sociedade na qual os homens não pagarão mais pelos seus pecados e onde o mal deixará de gerar infelicidade. Os levantes da Hungria e da Tchecoslováquia não foram suficientes para fazê-los compreender que a liberdade da alma humana permanece inviolável mesmo depois que a sua sustentação, a propriedade privada, por mais necessária que seja, tenha voado pelos ares.
 
Mesmo num povo espoliado permanece poderosa a necessidade do absoluto. Torna-se ainda mais aguda e como que exasperada. Foi isto que Mao compreendeu. Sentiu que enquanto a Revolução não fosse diretamente à intimidade da alma pelas portas travessas do que chamamos cultura, não seria extirpada a necessidade do absoluto. Sob a designação de lavagem do cérebro ou de revolução cultural trata-se, portanto, de apagar no homem, para sempre, a imagem de Deus: a pessoa naquilo que tem de mais íntimo e sagrado, naquilo que a torna capaz de ser, com ajuda da graça, o templo vivo habitado pelo Divino Hóspede, e de viver na divina amizade.
 
No dia 18 de agosto, outono de 1966, explodiu na China a revolução cultural. Num manifesto da junta central do partido comunista chinês foi definida como o propósito de transformar “a fisionomia moral de toda a sociedade através do pensamento e da cultura”. Sabemos até que ponto chegou este trabalho de ódio satânico. Destruição de bibliotecas, de universidades, de obras literárias, artísticas e musicais; destruição de ruas, de cemitérios, de túmulos e até das atividades do lazer mais ou menos ligadas à interiorização: e aqui penso na pesca de anzol... O que aconteceu na China em 1966 (continuando até hoje) foi depois organizado no mundo inteiro. Da universidade de Moscou à de Tóquio, passando pela de Berlim, de Paris, de Roma, de Londres, assistimos a um processo de destruição destinado a varrer da memória do homem a totalidade do patrimônio humano. Enquanto a violência escandaliza demais o burguês, a revolução cultural espezinha e desonra pelo ridículo o que ainda resta de dignidade no ensino universitário. Faz um cavalo passear pelos corredores da faculdade de Nanterre precedido de uma bandeira negra enquanto em ambiente de festa alienígena dança-se o “jerk” o dia inteiro nos lugares destinados à meditação, ao trabalho e à inteligência. Há exatamente um mês vimos tais cenas. São um dos meios de cortar pela raiz o respeito do homem pela própria inteligência.
 
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A mesma revolução cultural se processa agora não só no Estado como também na Igreja. Em nome da pesquisa destrói-se a Fé. Em nome da atualização corrompe-se o Depósito... Em nome da abertura para o mundo entregam-se as almas ao príncipe deste mundo. É, sem dúvida, o combate final. É, sem dúvida, o último assalto.
 
Aproximamo-nos da grande treva. Por isso nossos olhos, já voltados para o horizonte da história, fixam-se na madrugada da ressurreição. [...] Mas, hoje, é certo que a Fé, a Fé viva, e a Esperança, justamente aquela do Sábado Santo, e a Caridade, aquela do amor trinitário que habita em nossos corações e nos torna vencedores da morte, se unem, se enraízam e crescem em nós. Esta certeza é aquela que, de século em século, ressoa como eco misterioso e atual. Esta certeza é aquela que nos domina quando, dobrando os joelhos e inclinando a cabeça, murmuramos diante da hóstia: “Meu Senhor e meu Deus”. Esta certeza é aquela que sentimos na paz e na alegria que totalmente e inexplicavelmente nos invadem quando, pelo amor do Cristo, recebemos os golpes. É a mesma certeza que Maria, Mãe de Cristo e Mãe do Corpo Místico que tem o Cristo como cabeça, entrega a nós e faz crescer em cada um de nós para que alcancemos a plenitude de sua maturidade e que por Ele e n’Ele sejamos testemunho vivo de uma vitória conquistada há dois mil anos, não por nós mas por Aquele que é nosso chefe, nossa cabeça, nosso mestre e nosso Deus.
 
Neste Sábado Santo em que o crepúsculo anuncia o fogo novo, devemos repetir, como nunca o fizemos, o grito dos nossos antepassados. É aquele que repudia a morte e afirma o Homem Novo:
 
Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat”.
 
 
 
 
Tradução: Permanência. Revista Permanência n°18, Ano III, 03/1970.

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