[IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5, qª 2, ad 1, 3; Ad Rom., cap. III, lect. IV, cap. IX, lect. V; Ad Ephes, cap. II, lect. V].
O Segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova não cumpriu a antiga.
1. — Pois, o cumprimento contraria a abolição. Ora, a lei nova vem abolir ou excluir a observância da antiga, conforme diz o Apóstolo (Gl 5, 2): Se vos fazeis circuncidar, Cristo vos não aproveitará nada. Logo, a lei nova não veio cumprir a antiga.
2. Demais. — Um contrário não cumpre o outro. Ora, o Senhor propôs, na lei nova, certos preceitos contrários aos da lei antiga. Assim, diz (Mt 5, 27-32): Ouvistes que foi dito aos antigos: Qualquer que se desquitar de sua mulher dê-lhe carta de repúdio. Mas eu vos digo que todo o que repudiar a sua mulher, a faz ser adúltera. E a seguir, o mesmo se dá com a proibição do juramento, e ainda com a pena de talião e com o ódio aos inimigos. Semelhantemente, parece que o Senhor excluiu os preceitos da lei antiga relativos ao discernimento dos alimentos, quando diz (Mt 15, 11): Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem. Logo, a lei nova não cumpriu a antiga.
3. Demais. — Quem age contra a lei não a cumpre. Ora, em certos casos, Cristo agiu contra ela. Assim, tocou o leproso, como diz o Evangelho (Mt 8, 3), o que era contra a lei. Também foi visto violar muitas vezes o sábado, pelo que dele diziam os judeus (Jo 9, 16): Este homem, que não guarda o sábado, não é de Deus. Logo, Cristo não cumpriu a lei. Logo, a lei nova, dada por Cristo, não veio cumprir a antiga.
4. Demais. — A lei antiga continha preceitos morais cerimoniais e judiciais, como já se disse (q. 99, a. 4). Ora, num lugar do Evangelho, onde se vê que o Senhor, a certos respeitos, cumpriu a lei, nenhuma menção se faz dos preceitos judiciais e cerimoniais. Logo, parece que a lei nova não veio totalmente cumprir a antiga.
Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 5, 17): Não vim destruir a lei, mas a dar-lhe cumprimento. E depois acrescenta (Mt 5, 18): não passará da lei um só i, ou um til, sem que tudo seja cumprido.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei nova está para a antiga como o perfeito para o imperfeito. Ora, o perfeito completa o que falta ao imperfeito. E assim, a lei nova completa a antiga, suprindo-a no que lhe faltava.
Ora, duas coisas podem considerar-se na lei antiga: o fim e os preceitos nela contidos. — O fim da lei é tornar os homens justos e virtuosos, como já se disse (q. 92, a. 1). Por onde, o fim da lei antiga era a justificação dos homens; o que porém não podendo fazer, o figurava por meio de certos atos cerimoniais e o prometia por palavras. E neste ponto a lei nova cumpre a antiga, justificando pela virtude da paixão de Cristo. E isto diz o Apóstolo (Rm 8, 3-4): O que era impossível à lei, enviando Deus a seu Filho em semelhança de carne de pecado, por causa do pecado, condenou ao pecado na carne, para que a justificação da lei se cumprisse em nós. E neste ponto a lei nova realiza o que a antiga prometeu, conforme aquilo do Apóstolo (2 Cor 1, 20): Todas as promessas de Deus são em seu Filho, i, é, em Cristo. E além disso, nesta matéria, cumpre também o que a lei antiga figurava. Por isso, a Escritura diz (Cl 2, 17), que as cerimônias eram à sombra das coisas vindouras; mas o corpo é um Cristo, i. é, a verdade pertence a Cristo. Por isso, a lei nova se chama lei da verdade, e a antiga, lei da sombra ou da figura.
Quanto aos preceitos da lei antiga, Cristo os cumpriu com as suas obras e a sua doutrina. — Com as obras, porque quis circuncidar-se e observar as outras disposições legais, que devia no seu tempo observar, segundo aquilo da Escritura (Gl 4, 4): Feito sujeito à lei. — E com a sua doutrina cumpriu os preceitos da lei de três modos. — Primeiro, explicando-lhe o sentido, como se vê no caso do homicídio e do adultério, na proibição dos quais os Escribas e os Fariseus não viam senão o ato exterior proibido. Por onde, o Senhor cumpriu a lei, mostrando que a sua proibição abrange também os atos internos dos pecados. — Segundo, o Senhor cumpriu os preceitos da lei ordenando como se haviam de observar mais perfeitamente as disposições da lei antiga. Assim, a lei antiga estatuía que se não perjurasse, o que se observa mais perfeitamente se a gente se abstém de todo de jurar, salvo em caso de necessidade. — Em terceiro lugar, o Senhor cumpriu os preceitos da lei, acrescentando certos conselhos de perfeição, como se vê no Evangelho onde, a quem afirmava observar os preceitos da lei antiga diz (Mt 19, 21): Falta-te uma coisa: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, etc.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A lei nova não veio abolir a observância da antiga, senão na parte das cerimônias, como já dissemos (q. 13, 1. 3, 4), pois elas eram figurativas do futuro. Por onde, pelo fato mesmo de estarem cumpridos os preceitos cerimoniais, já realizado o que eles figuravam, já não deviam ser observados. Pois se o fossem, significariam algo de futuro, ainda não realizado. Assim também a promessa do dom futuro já não tem lugar, uma vez a promessa cumprida pela realização do dom. E deste modo, uma vez cumpridas, desapareceram as cerimônias da lei.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, os preceitos referidos, do Senhor, não são contrários aos da lei antiga. — Pois, o preceito do Senhor de não repudiar a esposa, não é contrário ao que a lei preceituava. E nem a lei disse — Quem quiser repudia a esposa — do que o contrário seria não repudiar. Mas certamente, não queria fosse à esposa repudiada pelo marido, quem interpôs um prazo para que o de ânimo pressuroso em separar-se, peado pela redação do libelo, se abstivesse da separação. Por isso o Senhor, a fim de o confirmar, para que a esposa não fosse repudiada facilmente, excetuou só o caso da fornicação. — E o mesmo também se deve dizer quanto à proibição do juramento, conforme já advertimos — E o mesmo é patente na proibição do talião. A lei taxou o modo da vindicta, para que não a tomassem imoderadamente; da qual o Senhor mais perfeitamente demoveu aquele a quem advertiu se abstivesse dela completamente. — Quanto ao ódio dos inimigos, o Senhor removeu a falsa inteligência dos Fariseus, advertindo-nos que devemos odiar, não as pessoas, mas a culpa. — Enfim, quanto ao discernir dos alimentos, que era cerimonial, o Senhor não mandou que deixasse de ser observado, mas mostrou que nenhuma comida é em si mesma imunda, mas, só figuradamente, como já se disse (q. 102, a. 6 ad 1).
RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei antiga proibia tocar no leproso, por que, fazendo-o, incorria-se numa certa imundice de irregularidade, assim como por tocar num morto, segundo já dissemos (q. 102, a. 5 ad 4). Ora, o Senhor, que era o curador do leproso, não podia incorrer em imundice. — Pelas coisas porém que fez no sábado, não aboliu em verdade a lei do sábado, como ele próprio o mostra no Evangelho. Quer porque fizesse milagre por virtude divina, que sempre age sobre as coisas; quer porque praticasse obras para a salvação humana, pois os Fariseus também providenciavam pela conservação dos animais, no dia de sábado; quer também porque, em razão da necessidade, desculpou os discípulos que colhiam espigas no sábado. Mas realmente, aboliu a lei do sábado como supersticiosamente a entendiam os Fariseus, pensando que a gente se devia abster mesmo das obras da salvação, nesse dia, o que ia contra a intenção da lei.
RESPOSTA À QUARTA. — No lugar aduzido do Evangelho não se lembram os preceitos cerimoniais da lei, porque a observância deles desapareceu totalmente, por terem sido realizados, segundo já dissemos (a. 1). — Dos preceitos judiciais só foi lembrado o do talião, de modo a ser entendido de todos os mais o que fosse dito deste. E o Senhor ensinou que, nesse preceito, a intenção da lei não era que se aplicasse a pena de talião pelo prazer da vingança, que ele exclui, advertindo que cada um deve estar preparado a sofrer injúrias ainda maiores; mas só por amor da justiça. E deste modo ainda permanece na lei nova a referida pena.