“Depois, o Celebrante sobe os degraus do altar pelo lado da Epístola, e descobre o braço direito... e em tom mais alto canta pela segunda vez o Ecce lignum Crucis...” E pode-se dizer que esta cerimônia do descobrimento da Santa Cruz resume bem a notícia central da liturgia da Semana Santa.
Sim, mais uma vez, sincronizada com os ciclos da Terra e da Lua em torno do sol, a Igreja descobre, demonstra, realça a figura que, apesar de dois mil anos de disseminação, continua a constituir escândalo para o mundo, continua a ser um insuportável espantalho para as almas que se deixam nortear pelos critérios da carne.
De alguém que se impacienta e se revolta, costuma-se dizer que não está aceitando a sua cruz; podemos hoje dizer que toda a perturbação que aflige a Igreja em nossos dias consiste na mesma essencial recusa da cruz. E, por isso, é com patética solicitude que a Igreja repete, hoje, em resposta a todas as insolências que ouve de seus filhos em nome de uma suposta visão nova e científica do mundo moderno, a mesma demonstração fundamental: Ecce lignum Crucis..., e logo nos transmite a magoada palavra do Pai: «Povo meu, que vos fiz eu? Em que vos contristei? Respondei-me! Foi porque vos tirei da terra do Egito que pregastes na cruz o vosso Salvador?».
Cruz, sinal entre todos carregado de símbolos, árvore única entre as árvores, poste de suplício, demarcador de encruzilhadas, cátedra elevada e virada pelo avesso em sua carpintaria, porta do paraíso, sinal de vitória e de salvação, sinal de contradição e de acréscimo, excrescência, dimensão que excede as demais dimensões – em todas as refrações e cintilações, a cruz de Nosso Senhor nos mostra sempre, e principalmente, a absoluta novidade, o absoluto acréscimo que o Cristo Jesus nos anuncia. E é justamente esta notícia excessiva que o mundo recusa.
Vivemos numa época singularmente trágica para uma consciência cristã: nunca antes se viu tamanha onda de recusa da cruz. Os teólogos vêem claramente a insolência do naturalismo que está na medula deste novo modernismo. Chamam também a isto temporalização ou horizontalização do cristianismo. Dizendo reagir contra erros de desatenção pela ordem temporal e pelas exigências da Encarnação, os inovadores passam a desatender às exigências mais altas, que constituem a essência do cristianismo – e, pregam um novo cristianismo “humano, humano demais”. E aqui nos vale um dos símbolos da cruz: ela tem braços horizontais, braços abertos e estendidos pelo mundo à altura do homem; mas essa trave do apostolado, da comunicação, do serviço fraterno, da disseminação da boa nova, só se sustém porque o divino carpinteiro a quis pregada no tronco vertical, que se prende na terra e se eleva ao céu.
Os antigos astrônomos designavam cada planeta por um sinal: o da Terra é um círculo encimado por uma cruz. Consciente ou inconscientemente, os autores do sinal viam no círculo o mundo fechado sobre si mesmo, em sua natureza; e na cruz viam o marco que lembrava a aterrissagem do Salvador. Pode-se dizer que só pegou bem o tom do cristianismo quem, de algum modo, sentiu o contraste entre os dois símbolos, o círculo e a cruz. E foi por aí que Chesterton, o grande convertido do século, decifrou o claro enigma que é o Cristo Nosso Senhor.
A idéia aparece primeiro em Orthodoxy, no segundo capítulo, em que o autor critica o racionalismo, cujo ponto-limite é a loucura: “o louco é o homem que perdeu tudo, exceto a razão”. Perdeu a capacidade de admirar e de sentir o mistério das coisas, reflexo do mistério de Deus. Eis o que diz Chesterton: «Assim como tomamos o círculo para o símbolo da razão e da loucura, muito bem podemos tomar a cruz para o símbolo do mistério e da saúde. O budismo é centrípeta, mas o cristianismo é centrífugo: jorra e se expande. O círculo é perfeito e infinito por natureza, mas ele está para sempre amarrado a suas dimensões, não podendo crescer ou diminuir, já que na sua definição o raio é constante. Mas a cruz, embora tenha no centro uma colisão e uma contradição, pode sempre estender os braços sem modificar sua forma. Pelo fato de abrigar um paradoxo em seu centro, a cruz pode crescer sem mudar. O círculo volta-se sobre si mesmo como prisioneiro. A cruz abre seus braços aos quatro ventos e serve de marco indicador aos viajantes livres.»
Mais tarde Chesterton voltará à idéia para desenvolvê-la em forma de romance alegórico: “A esfera e a cruz”. Logo às primeiras páginas dessa admirável fantasia, um dos personagens que viajava de avião em companhia de um piloto progressista é atirado ao espaço e cai numa cúpula redonda e lisa, de onde se despencaria se não fosse a excrescência que a mão encontra o escuro. Ele caíra na cúpula da Catedral de São Paulo, em Londres, e se agarrara na cruz.
Agarremo-nos nós também a este sinal principal de nossa vida nova em Cristo Nosso Senhor. E cantemos com a Igreja: “Eis o lenho da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo.”
O GLOBO, 3/4/69