No torvelinho das horas e dos dias convém considerarmos, vez por outra, os marcos imóveis, os sinais da eternidade. Vale a pena parar a carreira dos sucessos, e com voz de poesia perguntar às árvores espantadas, às pedras retraídas, às casas que ficam atrás dos portões de ferrugem e das janelas estremunhadas, se porventura entendem a avidez que nos impele, que nos compele a perseguir um bem que logo perde o sabor quando alcançado; se entendem essa fome que se muda em fastio ou náusea à medida que morre o momento que passa, continuando insaciável para os sonhos de fumaça impossível.
A árvore permanece, posto que aos ventos ofereça uma mobilidade dançante e cantante; a pedra permanece; o velho portão, malgrado a ferrugem permanece. São essências tranqüilas e bem ritmadas. A seu modo humilde imitam e refletem o Imutável. Sendo o que são, com simplicidade robusta, trazem marca daquele que é o que é. Nós, ao contrário da árvore e da pedra, vivemos a fugir do que somos. Nós que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, fugimos de Deus e portanto de nós mesmos quando buscamos o absoluto no torvelinho das coisas. E assim, pelo sopro do espírito e pelo ímpeto de liberdade que nos faz mais próximos de Deus, tornamo-nos mais distantes e assim vivemos a correr, a fugir do que temos, a buscar o que nunca teremos, e a assistir à decomposição do que tivemos. Marta, Marta, de muitas coisas te ocupas, mas uma só é necessária...
Vale, pois, a pena, parar o frenesi e considerar os marcos de eternidade que a Igreja nos oferece nos tempos da Paixão. Amanhã ou depois os cuidados voltarão; hoje, detenhamo-nos diante da pedra de Pedro, da casa de Deus, a árvore do Crucificado. Amanhã ou depois voltaremos às nossas agitações, à perplexidade da política nacional e internacional, às notícias da cidade e do mundo, a tudo isso que será vaidade das vaidades e perseguição dos ventos, se não soubermos trazer para esses problemas dispersos o critério fundamental que os transfigura em caminhos de Deus.
Hoje estamos no limiar da Semana Santa, preparando nosso olhos para o quadro da vitória do Cristo, que a Igreja nos oferece com sinais moldados nas coisas peregrinas, e que nos deixa entrever, no outro lado do espelho, o país maravilhoso da divina esperança. A obra de Cristo, espécie de usinagem operada sobre a dor e a morte, e por conseguinte sobre o que constitui o máximo espanto do mundo, abre-se agora num estuário de glória. Assistiremos, durante a semana, à representação do drama onde se vê passar um Deus apaixonado. O Homem das Dores, irreconhecível para os que o flagelaram e o esconderam atrás da derisão, e todavia o mesmo coração vulnerado do Cântico dos Cânticos.
O cabo da travessia desse mar vermelho, o círio pascal será para nossa vida um diapasão de luz. São Bento ensina que a vida do monge deveria ser uma Quaresma contínua. A nossa também. E essa Quaresma deveria ser paixão e a paixão deveria ser morte; e a morte deveria ser Páscoa. A travessia, a transmutação que Deus espera de nós é uma conversão que vá deixando o que menos somos em favor do que verdadeiramente somos por dom de natureza e pelos dons da graça. De claridade em claridade, se formos dóceis, iremos caminhando por atalhos de dores, para o país do amor perfeito que tem bandeira de fogo em mastro de cera.
Parece-vos ingênuo – ó leitores tristes - o quadro da Sião Gloriosa que a Igreja desdobra? Parece-vos estampa infantil a santa liturgia? Ou quem sabe se tudo isto não vos lembra apenas costumes obsoletos, cerimônia que os etnólogos explicam, ritos que os séculos científicos superaram? Por vós e por mim, receio que a simplicidade do quadro seja chocante, e não consiga atravessar a sebe de nossas complicações. Nós somos complicados; Deus é simples. Nós somos adultos e vividos; Deus é mais moço do que nós. Nós somos espertos, sinuosos, ardilosos; Deus escolheu para si as figuras do cordeiro e da pomba. Diz-nos a fé que ali, na outra margem do mar vermelho, onde brilha o círio da vitória, os enganos e tribulações terão desenlace de prodígio; que receberemos, em medidas de alqueire calcados, recalcados e transbordantes, o que não tivemos a audácia de pedir; que serão consertadas as contradições e nossos tristes amores; que a lágrima vira jóia; que a chaga vira for. Diz-nos a fé que naquele país de maravilhas do outro lado do espelho, teremos a paz.
Parece-vos ingênua – ó homens tristes – a linguagem da fé? Parece-vos insípida a comida da esperança? E quem pergunta poderá se gabar de melhor saber e de melhor servir? Não é a descrença que mais me espanta. A descrença, se me permitem os apologetas, tem certa lógica na sua retratação, no seu encolhimento, no seu propósito de não levar longe demais as investigações que podem terminar em incêndio. A descrença sob esse ponto de vista, é mais razoável, mais compreensível do que a crença imperfeita que se detém, que se encolhe, que se retrai, quando nela, na Fé, tudo pede expansão e conseqüência.
Talvez fosse melhor mudar de tom. A segurança da fé e a certeza da esperança seriam mais edificantes do que o título da perplexidade. Talvez fosse melhor, na festa da igreja, procurar pífaros e cítaras para contar o júbilo da alma Cristã no dia da Páscoa do Senhor, em vez de permitir ao velho coração um gemido de cansaço... Deus há de fazer que essa tristeza se converta em alegria e que a alguém aproveite o que a nós nos pesa. E privilégio seu; é ofício de seu Filho transformar a dor em salvação e a morte em vida.