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Pastoral coletiva do Episcopado brasileiro contra a Liberdade Religiosa

INTRODUÇÃO DA PERMANÊNCIA
 
"Este é um bispo, meu Deus!", exclamou Corção do martírio de S. Inácio de Antioquia. Proporções guardadas, queremos repetir a exclamação do velho mestre, estendendo-a a todo o episcopado brasileiro que, em 1890 — mal finda a revolução — ergueu-se condenando, na mais enérgica pastoral jamais escrita neste país, a infâmia que então se promovia graças a aliança liberal-maçônica: a Separação Igreja e Estado e a promulgação da Liberdade Religiosa.   
 
O redator desta pastoral foi Dom Antônio de Macedo Costa, o célebre companheiro de Dom Vital nos combates e no cárcere, e líder intelectual do clero brasileiro. Sua posição inflexivelmente anti-liberal, aliada a um talento literário e firmeza incomuns, dão ao texto que se vai ler toda a gravidade que a ele convinha:   
 
"Mas o que pedis à Igreja Católica é a tolerância ou é o suicídio? Ela não pode, sem contradizer toda a sua história, sem renegar a sua própria essência, sem anular-se, sem aniquilar-se completamente, sem trair a Jesus Cristo, admitir o princípio que todas as religiões são igualmente verdadeiras, ou que todas são falsas, ou que sendo uma só verdadeira, seja indiferente abraçar esta ou as outras; como se a verdade e o erro tivessem os mesmos direitos perante a consciência!"

Tratava-se então da Velha República. Em 7 de Janeiro do mesmo ano, menos de dois meses após a proclamação da República, o Marechal Deodoro da Fonseca assinava o decreto 119A, o primeiro em matéria religiosa do novo regime, pelo qual se recusava a união entre poder civil e poder eclesiástico, decretava-se a liberdade de culto e dava início a um processo laicizante inaudito neste país, só comparável, talvez, às insanidades da Administração de Pombal. Com efeito, em menos de um ano, o casamento religioso deixou de ser reconhecido pelo Estado, os cemitérios foram secularizados, o ensino religioso proibido nas escolas públicas, os capelães expulsos dos exércitos, os clérigos, que tão ostensivamente atuaram nas coisas públicas desde o período imperial, declarados inelegíveis; por fim, e mais grave, perdia a Igreja toda a proteção a ela assegurada no regime precedente. 
 
Ademais, e apesar dos frementes protestos católicos, foram todas estas mudanças incorporadas à Primeira Constituição do Brasil República, a "Constituição atéia", no dizer de alguns — a primeira Carta brasileira em que não se mencionava o nome do Criador e Senhor dos Exércitos. Por pouco não foram os Jesuítas novamente expulsos, como propunha o sr. Rui Barbosa nas suas Emendas, em perfeita concordância, diga-se, com o anti-clericalismo de seu Elogio ao Marques de Pombal.
 
Reproduzimos o Artigo 72 da Nova Constituição, o que mais motivou a reação do Episcopado na Pastoral de 1890:
 
"Artigo 72: § 3o. Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.
 
§ 4o. A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.
§ 5o. Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis.
§ 6o. Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
§ 7o. Nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados Unidos".
 
Não é sem interesse notar que o processo laicizante se estendera até à então nova bandeira brasileira — a Bandeira da República. A Cruz, tradicionalmente ostentada nas bandeiras coloniais e imperiais, fora deliberadamente substituída, como no pesadelo do personagem de Chesterton do Romance “A Esfera e a Cruz”, pela esfera celeste. A esfera, desculpava-se Raimundo Teixeira Mendes, autor da bandeira nacional, agradaria a ambos católicos e livre-pensadores.
 
* * *
 
Mas a principal malícia daquele decreto talvez venha de se franquear liberdade a todos os cultos, possibilitando uma expansão vertiginosa do erro e da confusão em matéria religiosa em nosso país. Tome-se este único exemplo: até então, a legislação proibia o proselitismo aos outros cultos. Em 1890, ano do decreto infeliz de Marechal Deodoro, em que se revogou mais esta proteção ao povo brasileiro...
 
"... apareceram várias revistas espíritas: A Nova Era, no Rio, A Luz, em Curitiba, O Regenerador, em Belém do Pará, Verdade e Luz, em São Paulo, outro O Regenerador, no Rio, a Revista Espírita também em Curitiba. Já, daí por diante, pululam os novos periódicos de propaganda do Espiritismo: A Evolução, na cidade do Rio Grande, RS (1892), O Farol, em Paranaguá, PR (1893), A Voz Espírita, em Porto Alegre (1894), A Verdade, em Cuiabá (1894), Perdão, Amor e Caridade, em Franca, SP (1894), A Fé Espírita, outra vez, em Paranaguá, PR (1894), A Religião Espírita, na Bahia (1897), Eco da Verdade, em Porto Alegre, A União, em Penedo, AL (1895), Alvião, em Taubaté, SP (1896), A Voz da Verdade, a terceira de Paranaguá, PR (1896), Arrebol, em Uberaba, MG (1897), Revista Espírita do Brasil, no Rio (1897) como órgão do Centro Espírita de Propaganda do Brasil, A Caridade, em Ouro Preto, MG (1898), O Guia, no Recife (1899), Revista da Sociedade Psíquica, de São Paulo, em 1899, com estudos sobre Espiritismo, Magnetismo, Esoterismo e Teosofia (...)" [Boaventura Kloppenburg, OFM, O Espiritismo no Brasil, Petrópolis, 1964 pp. 15-16 in João Camilo de Oliveira Torres, História das Idéias Religiosas no Brasil, pg. 283.]
 
Fenômeno semelhante ocorreu com os Batistas, que devem à criação da Casa Editora Batista em 1900 sua rápida proliferação em solo nacional. Se até o 15 de novembro contavam-se pouco mais de 300 adeptos da seita, em 1936 o número subira para 43.306 membros. Isso tudo apesar da oposição de um clero reformado e combatente.
 
A mentalidade liberal, contudo, faz parecer que todos os opositores da Liberdade Religiosa e Separação Igreja Estado defendem na verdade algo de monstruoso — como se monstruosidade não houvera na confusão das almas. Não tentaremos aqui responder a estas objeções, nem demonstrar o porquê de tais coisas não poderem ser sustentadas por um católico — uma e outra coisa as fazem com brilho os bispos na Pastoral. Nos limitaremos a uma citação do mesmo Dom Macedo em seu opúsculo sobre o problema da liberdade religiosa, com o que esperamos mostrar aos mais escrupulosos e aos nossos adversários que, da defesa das idéias a que nos compele a santa doutrina católica, nada de violento se segue: 
 
"Quanto aos cultos dissidentes, a nossa Constituição [N. da P.: trata-se da Constituição imperial], que é libérrima, deixa-lhe a mais ampla liberdade legal que se pode conceber em um estado católico. Depois de declarar que a Religião Católica Apostólica Romana continuaria a ser a Religião do Governo e Nação brasileira, prossegue o art. 5o. nesses termos: "todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo".
 
"Pelo art. 179, §5o., está prescrito que "ninguém poderá ser perseguido por motivo de religião, desde que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública."
 
"O art. 191 do Código Penal considera como um crime perseguir por motivo de religião aquele que respeitar a do Estado, e não ofender a moral pública, crime punível com a pena de prisão por um a três meses (...)"
 
"O art. 277 do mesmo Código pune o ato de abusar ou zombar de qualquer culto estabelecido no Império. Os cultos, porém, devem ser tais que não ofendam a sã moral e os costumes públicos, e a ninguém será permitido atacar as verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma (arts. 278, 279 e 280).
 
(...) Eu não analiso esta legislação; não a julgo no ponto de visto absoluto da doutrina e em seus motivos políticos. Pergunto somente: consagrado o princípio de Religião do Estado, que o legislador brasileiro não podia deixar de consagrar, era possível levar mais longe a tolerância civil dos outros cultos? Era possível rodear de mais seguranças, de mais garantias o exercício dos cultos diversos do do Estado?"
 
Os grifos acima são nossos, e as passagens que assinalam mostram-nos que, no meio das muitas imperfeições da legislação imperial, no meio dos muitos erros e abusos da Coroa com respeito a Igreja — erros que D. Macedo, condenado ao cárcere na Ilha das Cobras, os conhecia muito bem — um eco ao menos havia daquela doce imagem de Leão XIII, para quem "A Igreja sem o Estado é uma alma sem corpo. O Estado sem a Igreja é um corpo sem alma."
 
* * *
 
Quanto a Pastoral, reproduzimo-la parcialmente da obra de Anna Maria Moog Rodrigues, A Igreja na República, excluindo a terceira parte e o prólogo, e atualizando a ortografia para facilidade de leitura.
 
Redação
 
 
  
Pastoral Coletiva de 1890
 
I
 
É fato atestado, como já vimos pela luminosa palavra de Leão XIII, e de tal magnitude, de tal alcance e gravidade, que nunca padecerá por muito pomposo e meditado: o espírito humano, dignos cooperadores e filhos muito amados, parece nestes últimos tempos possuído de extraordinária vertigem, e flutua incerto ao vento das mais extravagantes doutrinas.
 
Nunca se viu movimento semelhante desde a origem do Cristianismo.
 
Uma negação universal tende a precipitar no abismo da apostasia indivíduos e nações. A religião católica maiormente é alvo primário de todos os ataques da impiedade moderna. Em nome dos princípio de uma falsa ciência, que veio substituir a gargalhada, já muito desacreditada, com que o infame Voltaire escarnecia de quanto há mais sagrado, negam-se os divinos fundamentos da nossa augusta religião, desmentem-se os seus livros santos, impugnam-se os seus dogmas, deturpa-se a sua moral, calunia-se a sua história, menosprezam-se os seus sacramentos, contestam os seus serviços, cerceiam a sua liberdade de ação, despojam e aprisionam o seu chefe supremo, e sob o nome que se pretende tornar odioso, de clericalismo, apontam-na como a mais temerosa inimiga, de que cumpre a todo o custo precaver e livrar o gênero humano!
 
"Com que encarniçamento e de quantos modos está ardendo a guerra contra a Igreja, não é quase necessário lembrá-lo, diz na sua última encíclica Sapientiae Christianae o sapientíssimo papa Leão XIII. De ter sido dado à razão, armada com as investigações da ciência, arrancar à natureza grande número de seus segredos mais ocultos, e fazê-los servir aos diversos usos da vida, a tal ponto se ensoberbeceram os homens, que julgam poder expulsar da vida social a autoridade e o império da suprema divindade.
 
"Transviados pelo erro, transferem à natureza humana aquele principado de que pretendem despojar a Deus. Ensinam que à natureza cumpre pedir o princípio e a norma de toda a verdade; que da ordem natural dimanam e a ela devem referir-se todos os deveres da religião. Por conseguinte, negação de toda verdade revelada, negação da moral cristã e da Igreja. Esta, segundo eles, não está investida do poder de legislar, nem de direito algum; antes nenhum lugar se lhe deve dar nas instituições civis. Para mais facilmente amoldarem por tais doutrinas as leis e os costumes dos povos, fazem todos os esforços para se apoderarem da direção dos negócios e pôr a mão no leme dos Estados. Assim em muitos países é o catolicismo ou abertamente combatido, ou secretamente atacado. Os mais perniciosos erros estão certos da impunidade e numerosos óbices são postos à profissão pública da verdade cristã."
 
Os consectários forçados dessa luta incessante, audaz, infernal, travada em todo o mundo contra a ordem religiosa e social, são os que estamos vendo: esmorecimento da fé, abandono das práticas religiosas, depravação crescente dos costumes, o egoísmo substituindo a caridade, o cálculo a dedicação; perda do espírito de família, insubordinação no lar doméstico, na escola, no exército; desacatos à autoridade, abusos do poder público, falta de respeito geral, desenfreamento do luxo com todas as suas conseqüências, sacrifício de tudo às mais vis especulações, ânsia doentia de gozar e enriquecer a todo transe; adoração, enfim, geral, fanática, fervorosíssima do único Deus que impera neste século e nesta terra, de quem ninguém blasfema, perante cujo conspecto todos se curvam venerabundos: o Bezerro de ouro!
 
A desorganização social produzida pelo ateísmo, que tem hoje em dia foro de cidade, é tão vasta, tão profunda, tão radical, que os mais eminentes pensadores contemporâneos, prevendo à luz da história, cujas leis não falham, males ainda mais temerosos, que em futuro não muito remoto ela desencadeará sobre a sociedade, perguntam espavoridos: Deus meu! em tal correr aonde iremos parar?
 
É que este tremendo dilúvio de erros, cada qual mais pernicioso que alarga a sociedade moderna, máxime na Europa e nas duas Américas, ameaça arrastar e subverter tudo em águas lodosas e pestilentas, tudo: família, instituições, leis, religião, sociedade!
 
Conseguirá, porém, a impiedade levar ao cabo o seu nefando intento?
 
Não. Pôs Deus outrora as tranqüilas areias da praia como dique poderoso ao furor do Oceano, dizendo-lhe: Até aqui virás, não passarás além, quebrantarás aqui as tuas vagas embravecidas1.
 
Cristãos! Tenhamos fé. Esse mesmo Deus, acudindo pressuroso aos urgentes chamados de sua esposa perseguida, refreará a tempo a sanha dos maus, e, segundo os decretos insondáveis de sua Providência, marcar-lhe-á com o seu dedo onipotente os limites dentro dos quais eles poderão exercer a sua ação funesta e devastadora. Não irão além.
 
Nomeamos há pouco o ateísmo.
 
Deste monstruoso erro, fonte envenenada de mil desordens, nasce o esforço que vai fazendo a seita em vários países para exilar o Criador do mundo e o Salvador dos homens das relações públicas da vida humana. A enérgica expressão de Leão XIII: Ipse hum ani generis Auctor et Redemptor ab omni publica humanae vitae consuetudine exulare cogitur2.
 
Mas fazeis aqui um reparo. Este Deus que se pretende expulsar da vida social, como bem a propósito observa um pio escritor contemporâneo, "não é o Deus vago e frio das filosofias, que elas se comprazem em deixar lá bem longe nas regiões hiperbóreas de uma eternidade deserta; é o Deus vivo e pessoal, o Deus bom, o Deus que se revelou ao mundo e que habita no meio de nós no Sacramento do altar, na adorável pessoa do Nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus que fez a Igreja, e que pelo ministério dela nos esclarece e nos rege, o Deus cuja política se resume toda nestas duas palavras: amar-nos e exigir o nosso amor."
 
Para tornar mais eficiente o seu desígnio de ingrata e sacrílega exclusão, envolveu-o e dissimulou-o a astúcia sectária na fórmula de um princípio que seduz as inteligências incautas, de uma frase que apenas se impõe pela sonoridade.
 
Igreja livre no Estado livre, disse-o há tempos o caviloso Cavour, eco de mais antigos inovadores. Igreja separada do Estado, Estado separado da Igreja. Ecclesia a Statu, statusque ab Ecclesia sejungendus est, dizem hoje, à boca cheia, todos os corifeus do radicalismo moderno.
 
Assim, não há de andar mais a Igreja conjunta com o Estado. Um e outro poder exercerão ação separada e isolada, sem sequer se conhecerem mutuamente. Nada mais de união entre eles. Separação, separação! eis o que se proclama voz em grita, como uma das grandes conquistas intelectuais da época! O mundo social nada tem que ver com a religião.
 
Tal é a formula teórica que se pretende hoje em dia reduzir à prática, e com o que se dá como resolvido o momentoso problema das relações entre a Igreja e o Estado.
 
Esta doutrina não a podemos os católicos admitir, porque está condenada pela Santa Sé Apostólica na 55a. proposição do Syllabus ou rol de erros contemporâneos, que acompanha a memorável Encíclica Quanta Cura, dirigida por Pio IX, de gloriosa memória, a todo o orbe católico.
 
Já em 1832 entendera Gregório XVI que imperioso lhe corria o dever de denunciá-la à reprovação da consciência cristã.
 
Ouvi as suas próprias palavras:
 
"Não temos que pressagiar, diz o venerando Pontífice, nada mais feliz para a religião e para os governos, dos desejos daqueles que querem a Igreja separada do Estado, e que se rompa a mútua concórdia do império e do sacerdócio; porque é certo que esta concórdia, tão favorável sempre e tão saudável aos interesses da religião e da autoridade civil, é objeto de terror para os partidários de uma desenfreada liberdade". (Encíclica Mirari vos).
 
Vejamos agora os fundamentos da doutrina católica.
 
Por ordenação divina, dignos cooperadores e filhos muito amados, dois poderes perfeitamente distintos e independentes, constituindo sociedades diversas, regem a humanidade e, por meios apropriados, a encaminham à consecução do fim peculiar a cada uma delas — o poder eclesiástico e o poder civil, ou por outra, a Igreja e o Estado.
 
A distinção entre as duas sociedades que acabamos de nomear origina-se antes de tudo na diversidade de fins em que cada um põe a mira.
 
O Estado tem por alvo um fim meramente natural, que se realiza e completa aqui na terra, e ele atinge tal fim quando, promovendo a ordem, a paz, a prosperidade pública, consegue encaminhar os seus súditos à posse da felicidade temporal.
 
A Igreja tem um alvo incomparavelmente mais levantado.
 
Ela olha para um objetivo superior, posto além dos limites do tempo, e que, por isso mesmo que transcende as forças da natureza humana, se chama sobrenatural: este objetivo é a felicidade eterna, cujo gozo se não pode alcançar senão mediante intervenção e auxílio da graça divina, cooperando com ela o livre alvedrio do homem.
 
Assim a felicidade eterna, que consiste na posse e fruição de Deus — termo final a que visa a Igreja — não se realiza e completa senão no céu. Entretanto aqui na terra é que essa felicidade se prepara pelos árduos labores e combates da vida cristã; aqui na terra é que se empenham valorosos esforços e se sustentam renhidas pelejas para atingi-la um dia; aqui na terra é que se adquirem, apuram e entesouram méritos para recebê-la no céu, como glorioso galardão que é.
 
"O tempo de minha morte se avizinha, diz cheio de esperança o laborioso e valente Apóstolo. Eu lutei uma boa luta, acabei a minha carreira, guardei a fé. Está-me reservada uma coroa de justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não só a mim, senão também àqueles que amam a sua vinda."
 
Possui a linguagem cristã uma palavra, de criação exclusivamente sua, para designar esse trabalho interior de aperfeiçoamento moral que dispõe as almas para a sua glorificação nos esplendores do céu, onde, na posse de seu Deus, elas poderão exclamar com toda a força do sentimento: Dilectus meus mihi et ego illi. Chama-lhe santificação.
 
A santificação das almas! eis aí a missão sublime que a Igreja recebeu de Jesus Cristo, seu divino Fundador, e que, rompendo por mil dificuldade sempre renascentes, desempenha sem descanso, com amor e alegria, durante o perpassar da humanidade sobre a terra.
 
Em obediência a esse divino mandato, a Igreja ilumina as inteligências projetando sobre elas clarões das verdades eternas, de que é fiel e ativa depositária; ela nobilita os corações e retifica as vontades traçando com imperturbável segurança as normas da vida prática e velando pela pureza dos costumes; ela despende com as almas as opulências inapreciáveis da Redenção liberalmente entesourada nas suas mãos; ela assegura à humanidade, através dos séculos, até à definitiva consumação deles, a permanência efetiva de todos esses benefícios, perpetuando desvelada o seu sacerdócio. Assim, de uma extremidade do mundo à outra, diz o eloqüente dominicano Monsabré, "o real poder da Igreja apreende cada um daqueles que ela iniciou à vida cristã, para conduzi-los, com suave e misericordiosa firmeza, pelas sendas luminosas da verdade e do dever, até a bem-aventurança eterna."
 
Compreende-se que, para exercer com eficácia o divino mandato que lhe foi cometido, não deve a Igreja ficar desarmada. Sociedade perfeita, recebeu de Jesus Cristo a investidura do tríplice poder sem o qual nenhuma sociedade civil, convenientemente constituída, pode atingir o fim que lhe é próprio — o poder legislativo, o poder judiciário e o poder penal.
 
O Papa, em toda a Igreja, sem dependência alguma, e os bispos, sob a dependência do Papa, nas suas respectivas dioceses, exercem esse tríplice poder em ordem ao fim eterno a que deve a Igreja conduzir os seus membros; e cumpre não esquecê-lo, no exercício desse poder, que lhe foi divinamente conferido ela não deve ao Estado a mínima subordinação.
 
Se a Igreja, notai bem, ainda não cessa de reclamar dos poderes do século o reconhecimento de sua plena autonomia e a sua liberdade de ação no regime das almas — direitos que lhe não podem ser recusados sem a mais flagrante injustiça — ela não cessa ao mesmo tempo de acentuar a distinção dos dois poderes e de proclamar a independência da sociedade civil na órbita de suas atribuições temporais.
 
Com efeito, é ela que, mandando dar a Deus o que é de Deus, insiste com toda a força de sua autoridade para que se não negue a César o que é de César3. Ela inculca a toda alma, que esteja submissa aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus; de modo que todo aquele que resiste ao poder resiste à ordem de Deus4. Ela expressamente recomenda a submissão, em nome de Deus a toda a criatura humana, quer ao rei como ao chefe, quer aos generais como a delegados por ele5.
 
Assim, pois, se a Igreja se mostra sempre extremamente zelosa de sua independência nas coisas espirituais, nela encontra também o Estado o mais extremo propugnador de sua autonomia e de seus direitos nas coisas temporais.
 
Mas independência não quer dizer separação.
 
É mister que esta verdade fique bem compreendida.
 
A sociedade religiosa e a sociedade civil, por serem perfeitamente independentes e distintas entre si, têm entretanto um ponto de contato; é a identidade dos súditos que elas devem encaminhar para o fim próprio de cada uma.
 
De onde se segue que estas duas sociedades não são, não devem ser antagônicas.
 
Os cidadãos que constituem a sociedade civil são, com efeito, identicamente os mesmos fiéis que fazem parte da sociedade religiosa, por outra, os membros do Estado são ao mesmo tempo os membros da Igreja. Aquele os conduz à felicidade do tempo, esta à da eternidade.
 
Ora, tendo cada uma destas sociedades um poder supremo, um governo, instituições, leis, magistrados para a consecução de seu fim peculiar, e exercendo cada uma a sua ação dentro da esfera circunscrita pela sua natureza própria, segue-se que os membros de que elas se compõem recebem o impulso de uma dupla virtude operativa, são regidos por um duplo princípio ordenador, em uma palavra, estão sujeitos à uma dupla jurisdição. Cidadãos devem obediência às leis do Estado; fiéis devem obediência às leis da Igreja.
 
Ora bem! exigir que o Estado legisle para os cidadãos, prescindindo do religioso respeito devido à autoridade da Igreja, a que estão sujeitos os mesmos cidadãos; e, vice-versa, querer que a Igreja exerça a sua jurisdição sem olhar sequer para o Estado de que são igualmente súditos os mesmos fiéis, é um sistema este, aos olhos do senso comum e da mais vulgar eqüidade injusto em si e impossível na prática.
 
"Injusto, diz Monsabré, porque não leva em conta alguma a mais nobre necessidade das sociedades humanas, as quais não podem ficar privadas de toda a expressão religiosa em sua vida nacional; injusto porque expõe o Estado a paralisar o maior dos serviços públicos prestados pelo sacerdócio, aplicando a este, em virtude do direito comum, leis que tolhem as vocações e o desviam de sua missão, sacrificando assim os interesses religiosos dos cidadãos.
 
"Impossível praticamente, porque não se pode conceber que a Igreja e o Estado governem soberanamente, no mesmo lugar, os mesmos súditos, sem se porem de acordo, se quiserem evitar a lesão recíproca de seus direitos."
 
Egregiamente o ilustre dominicano. Admitamos que se dê uma antinomia qualquer entre as leis da Igreja e as leis do Estado, entre a ordenação eclesiástica e a ordenação civil, que se seguirá dai? Necessariamente, desordem, confusão, perturbação da paz social, inquietação das consciências! ... O caso não é impossível nem raro: a história está cheia destes lamentáveis conflitos entre os dois poderes, que acendem no seio de um povo uma das lutas mais temerosas — a luta religiosa! Se quiséssemos recordar exemplos, não precisaríamos ir buscá-los fora do nosso próprio país.
 
Atuado por duas leis antinômicas, a solicitarem a um tempo as homenagens de sua obediência, que há de, forçosamente, fazer o súdito, senão violar uma delas com detrimento da outra? Vede agora a conseqüência: opressão pungente da sua consciência religiosa, se a lei violada for a da Igreja a que pertence; vindita inexorável da lei civil, se esta for a menosprezada. Em tão dolorosa contingência, não há para ele nem meio termo nem conciliação possível: ou apostasia ou perseguição! Apostasia se, para não incorrer no desagrado de César, posterga os princípios de sua fé religiosa; perseguição se, como é de seu rigoroso dever, prefere antes obedecer a Deus do que aos homens.
 
Está se vendo, mete-se pelos olhos, não, não pode ser este o ideal de um estadista sensato, ainda que não partilhe as nossas crenças, deve querer para a sua pátria! Fora introduzir nela um elemento perpétuo de perturbação e discórdia, que a todo o momento é capaz de irromper e produzir longa série de males incalculáveis.
 
Em nome, pois da ordem social, em nome da paz pública, em nome da concórdia dos cidadãos, em nome dos direitos da consciência, repelimos os católicos a separação da Igreja e do Estado: exigimos a união entre os dois poderes.
 
Sim queremos a união, porque Deus a quer: Quod Deus conjunxit, homo non separet6. Mas, notai bem, não queremos, não podemos querer essa união de incorporação e de absorção, como tem tentado realizá-la certo ferrenho regalismo — monárquico ou republicano — união detestável, em que o regime das almas constitui um ramo da administração pública com o seu ministério de cultos preposto aos interesses religiosos.
 
Corram pelo ministério do interior os negócios relativos à administração do país. Incumbam-se dos da justiça e agricultura os ministros encarregados destas pastas. Guarde ilesos perante os outros povos a honra e os interesses da nação o ministério dos estrangeiros. Cuidem da defesa dela os da marinha e da guerra. Presida às suas finanças o da fazenda. Mas, ó Magistrados! homens de Estado! o que pertence à religião deixai-o sob a exclusiva alçada dos pastores da Igreja!
 
Esta é a ordem.
 
Não queremos, não podemos querer essa união de aviltante subordinação que faz do Estado o árbitro supremo de todas as questões religiosas, e considera o sacerdócio, em toda a sua escala hierárquica, desde o minorista até o bispo; — até o Papa! — como subalternos de um ministro civil dos cultos e dependentes das decisões de sua secretaria.
 
Queremos, sim, a união, mas essa união que resulta do acordo e da harmonia, que é a única compatível com o sagrado dos interesses confiados à nossa guarda, com o decoro e a honra do sacerdócio, com a própria dignidade e os verdadeiros interesses do outro poder.
 
É belo ouvir o Santo padre Leão XIII celebrar com a sua grande autoridade os benefícios sociais que dimanam dessa feliz harmonia entre a Igreja e o Estado!
 
Ouçamo-lo com respeitosa atenção:
 
"Tempo houve, diz ele, em que a filosofia do Evangelho governava os estados. Naquela época a influência dos princípios cristãos e a sua divina virtude penetrara as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as classes e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, florescia por toda a parte, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam entre si ligados pela concórdia e amigável reciprocidade de bons ofícios. Assim organizada, deu a sociedade civil frutos superiores a toda a expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, por isso que se acha consignada em inúmeros documentos que nenhum artifício dos adversários poderá destruir ou obscurecer.
 
"Se a Europa cristã subjugou as nações bárbaras e as fez passar da fereza para a mansidão, da superstição para a verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas; se manteve a supremacia da civilização, e se, em tudo quanto faz honra à humanidade, mostrou-se por toda a parte guia e mestra; se gratificou os povos com a verdadeira liberdade sob as suas diversas formas; se fundou sapientissimamente uma multidão de obras para alívio de misérias, fora de dúvida é que de tudo isto é altamente devedora à Religião, por inspiração e com auxílio da qual ela empreendeu e levou a cabo tão grandes coisas.
 
"Todos estes benefícios durariam ainda, se o acordo dos dois poderes houvesse perseverado, e bem se poderiam esperar outros ainda maiores, se a autoridade, se o ensino, se as advertências da Igreja houvessem encontrado docilidade mais fiel e constante. Porquanto deve-se ter por lei imprescindível o que escreveu Ivo de Chartres ao Papa Pascoal II: "Quando o império e o sacerdócio vivem em boa harmonia, a Igreja é florescente e fecunda. Mas quando a discórdia se mete entre eles, não só as coisas pequenas não se aumentam, como ainda as grandes perecem miseravelmente." 7
 
Nesses venturosos tempos de fé, dos quais nos fala com tão justo encarecimento o grande Papa, raro não era ver a chefes cristãos apelando espontaneamente para essa união dos dois poderes, a fim de se prestarem recíprocos auxílios no governo dos homens.
 
Via-se então um Eduardo a Inglaterra, cheio de brio, oferecer aos bispos, reunidos em concílio, o apoio de sua espada, falando-lhes nestas eloqüentes palavras que o século XIX mal poderá entender:
 
"Entrai em competência comigo, ó sacerdotes, rivalizemos de zelo nos caminhos do Senhor e nos preceitos de nosso Deus. Tempo é de nos insurgirmos contra aqueles que dissiparam a lei divina. Tenho nas mãos o gládio de Constantino, vós o de Pedro. Estreitemos as destras; unamos gládio a gládio, e lancemos fora dos arraiais os leprosos, e assim se purifique o santuário do Senhor e nele ministrem os filhos de Levi." 8
 
Concluamos este primeiro ponto:
 
Em tese, em princípio, não podem os católicos admitir o divórcio do Estado com a Igreja. Como não o há entre a razão e a fé, duas luzes emanadas do mesmo sol; entre a natureza e a graca, dois influxos do mesmo princípio de vida, não o há também, nem o pode haver, entre os dois poderes, em que transluz uma imagem ainda que diversa da mesma divina paternidade: A quo paternitas 9. Omnis potestas a Deo10.
 
"Ó vós, pois, ministros da Igreja, e vós ministros do Estado, exclamaremos como Bossuet em seu sermão sobre a unidade, "por que vos desunis? A ordem de Deus é oposta à ordem de Deus? Oh! porque não compreendeis que vossa ação é uma, que servir a Deus é servir ao Estado, e servir ao Estado é servir a Deus!
 
Está, portanto, evidente que o acordo mais perfeito deve ser o princípio fundamental das relações entre os dois poderes, acordo baseado, sobretudo, no respeito dos mútuos direitos. Assim as duas sociedades se enlaçam sem confundir-se, e a humanidade acha no seio delas os meios adequados para perfazer seus gloriosos destinos.
 
II
 
Consideremos agora o decreto por outra face, enquanto ele franqueia liberdade a todos os cultos ao mesmo tempo que a Igreja Católica.
 
Não pode, primeiramente, deixar de nos causar mágoa, dignos cooperadores e filhos diletíssimos, ver essa Igreja que formou em seu seio fecundo a nossa nacionalidade, e a criou e a avigorou ao leite forte de sua doutrina; essa Igreja que deu-nos apóstolos, como os de que mais se honraram os séculos cristãos, varões estupendos de coragem e abnegação, que penetraram em nossas imensas florestas, navegaram rios desconhecidos, palmearam sertões desertos, transpuseram escarpadas serranias, e, armados só da Cruz e do Evangelho, lá foram reduzir e conquistar, como de feito reduziram e conquistaram à força de brandura e de amor, tão numerosas gentilidades; essa Igreja que sagrou desde o princípio a fronte do Brasil com a unção da fé e o batizou com o formoso nome — Terra de Santa Cruz — porque à sombra deste estandarte do cristianismo havia o Brasil de medrar, de manter a sua unidade política no meio das invasões, de prosperar, de engrandecer-se até vir a ser, como já é, a primeira potência da América do Sul; essa Igreja que ornou as nossas cidades de monumentos religiosos, que levantou por toda a parte hospitais, recolhimentos, asilos, colégios, escolas literárias, de onde saíram escritores como Vieira, latinistas como Cardoso, prelados como os dois Romualdos, Viçoso e D. Antônio de Mello, sábios como frei Marianno Velloso, oradores como Montalverne, poetas como Caldas e Durão; ver essa Igreja, dizemos, que tem acompanhado toda a evolução de nossa história, que tem tomado sempre parte em todos os nossos grandes acontecimentos nacionais, confundida de repente e posta na mesma linha com algumas seitas heterodoxas, que a aluvião recente da imigração européia tem trazido às nossas plagas!
 
Ah! que pudera com razão a Igreja do Brasil, afrontada e sentida deste ingrato proceder, aplicar a si aquela queixa do rei profeta: Factus sum sicut homo sine adjuctorio, inter mortuos liber. Eu, senhor, estou feita uma pessoa desamparada e sem nenhum socorro,  livre sim, mas ao mesmo tempo confundida com seitas errôneas, votadas à dissolução e à morte: Factus sum sicut homo sine adjuctorio, inter mortuos liber11.
 
Ora, em verdade parece que se devera atender mais à situação legitimamente adquirida pelo catolicismo nesta parte da América. O fato aí está: somos cerca de doze milhões de brasileiros, e destes, segundo os cálculos sem dúvida exagerados dos nossos próprios adversários, obra de quinhentos mil, apenas, pensam livremente sobre religião ou pertencem a comunhões religiosas dissidentes. Assim onze milhões e quinhentos mil católicos de um lado, quinhentos mil acatólicos do outro! Tal é a situação.
 
Ora bem; a minoria imperceptível clama: "Tire-se toda a proeminência à religião católica neste país e seja ela privada de qualquer privilégio! Seja rebaixada da categoria de religião do Estado e do povo brasileiro! Não olhe mais de ora em diante para ela o governo, trate-a como se não existisse." E a religião de todo o povo brasileiro, a religião de toda a nossa nação há de ser desapossada do trono de honra que há três séculos ocupava, para ser posta na mesma esteira de qualquer seita adventícia!
 
Mas onde está então o poder decisivo das maiorias? Como?
 
A maioria decide soberanamente de tudo no mundo da política; decide da constituição e da forma do governo nos Estados, decide das leis no parlamento, decide das sentenças nos tribunais; por toda a parte a maioria é consultada; a maioria é respeitada; a maioria é obedecida; tem, enfim, império incontestável, é lei e lei soberana que a todos se impõe, a maioria. Só quando se trata da religião e dos interesses sagrados que a ela se prendem, é que vemos trocados os estilos; subvertido, calcado aos pés, não levados em conta alguma o princípio, tão proclamado pelo liberalismo moderno, da soberania do número, do poder incontrastável das maiorias. Pois a nação brasileira em peso não quer que sua religião seja respeitada, que sua religião seja protegida, que sua religião seja sustentada pelos poderes públicos, ainda que liberdade se dê, leal e ampla, aos outros cultos!
 
Quer sim, quer por certo isto a nação, mas não foi atendida.
 
Não foi também atendida — isto é mais grave — a doutrina católica.
 
A doutrina católica ensina-nos, dignos cooperadores e filhos diletíssimos, que o tipo ideal da perfeição social não consiste na multiplicidade das seitas religiosas e na tolerância universal delas, mas sim na unidade perfeita dos espíritos pela unidade da mesma fé dentro do grêmio do universal rebanho de Cristo: Unum ovile et unus Pastor12. Cônscia da divina missão que lhe incumbe, de realizar, quanto é possível sobre a terra, este sublime ideal evangélico, sustentará sempre a Igreja o direito que ela só tem a proteção dos Estados e condenará o sistema de indiferença que pretender colocá-la no mesmo nível de igualdade com as seitas e religiões falsas.
 
Nem se concebe que a verdadeira Igreja desista de tão sagrado direito, que é sua razão mesma de existência.
 
(...)
 
Abri os olhos, oh! homens iludidos, e vede se achais no mundo uma Igreja que corresponda a este tipo. A Igreja que Jesus Cristo fundou aí deve estar. Não pode ter desaparecido. O inferno não teve o gosto de prevalecer contra ela e dar uma gargalhada sobre as suas ruínas. O santuário do Deus vivo não deve estar sem teto, e a chuva do céu caindo sobre o lagedo deserto de adoradores e sobre o altar desmoronado. A Igreja das divinas promessas aí deve estar firme, indefectível, iluminada, ornadíssima, cheia de fiéis glorificando a Deus.
 
O céu e a terra passarão, disse a verdade, mas as minhas palavras não passarão 13.
 
Onde está, pois, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo? Onde está a Igreja? Uma na sua fé e na sua doutrina, Católica, Universal na sua extensão, abrangendo todas as nacionalidades; estendendo a ação do seu apostolado a toda a terra? Onde está a Igreja Apostólica, que mostra uma cadeia imensa e contínua de pontífices, de bispos, transmitindo-se regularmente os poderes do sacerdócio real de Jesus Cristo, desde os tempos dos apóstolos até nós? Onde está a Igreja Santa na sua origem, santa na sua doutrina, santa nos seus sacramentos, santa em tantos heróis de santidade nascidos, como flores do paraíso, em seus seios fecundos?
 
Onde está a Igreja indefectível, que tenha visto brotar e desaparecer no turbilhão da história constituições e dinastias, impérios e repúblicas, que, tenha atravessado dezoito séculos de perseguições sangrentas, de opressões sem número, de lutas encarniçadas, de ardentes polêmicas; sujeita de contínuo ao contraste da ciência incrédula, da razão revolta; sempre a mesma, sempre vitoriosa dos erros e misérias dos homens e dos tempos? Onde está, em suma, a Igreja fundada sobre S. Pedro, na qual a autoridade deste Vigário de Cristo, sempre viva e permanente nos seus sucessores, seja universalmente acatada, venerada, obedecida?
 
Será o cisma moscovita, curvo, trêmulo ao menor aceno do czar seu chefe? Será o cisma grego, agachado aos pés do sultão de Constantinopla, a receber dele a investidura das fundações sagradas? Será o protestantismo, congénie de seitas divergentes, desapegadas, há trezentos anos apenas, do tronco católico, e desapegando-se sucessivamente uma das outras, todas locais, toas efêmeras, igreja de Lutero, igreja de Calvino, igreja de Wesley e de tantos outros; mas não a Igreja?
 
Não, dignos cooperadores e filhos muito amados, os lineamentos da instituição evangélica, evidentemente, só os vemos na grande instituição da Igreja Católica.
 
Pois bem! Depois deste ligeiro exame podeis acaso compreender que a Igreja Católica, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, consinta ser equiparada a qualquer seita, e aprove, e tome como regra sua a chamada tolerância moderna, proclamando ela própria a igualdade dos cultos?
 
Compreendeis a Igreja Católica, fundada por Deus para estabelecer o reino da verdade em todo o mundo, dizendo no princípio logo ao paganismo: Tu tens tanto direito como eu a seres ouvido; fiquemos, pois, em paz ao lado um do outro, tolerando-nos mutuamente?
 
Compreendeis a Igreja Católica dando o ósculo de paz aos Gnósticos, aos Maniqueus, aos Ebionistas, dizendo-lhes: Vós dissolveis Jesus Cristo, vós corrompeis o cristianismo, professais erros asquerosos, imundos; mas sois livres de propagá-los, como eu de propagar a verdade? Todos temos o mesmo direito de nos fazer ouvir?
 
Compreendeis a Igreja Católica dizendo a Ario que negava a divindade de Jesus Cristo, dizendo a Nestório, dizendo a Eutyches, dizendo a Donato, dizendo a Berengário, dizendo a todos os cismáticos, a todos os heresiarcas que ela condenou nos seus concílios e expulsou de seu seio: Tendes o direito sagrado de propagar vossas heresias, como eu de manter a imaculada ortodoxia de seus dogmas?
 
Compreendeis a Igreja Católica dirigindo igual linguagem às seitas modernas, que formigam em cardumes no seio da Babel protestante, ao torpe maometismo, às absurdas teogonias da Ásia e África pagãs. Ide por toda parte; ide ao Brasil, há lugar para todos; vós tendes tanto direito como eu ao amor e à adesão dos povos?
 
Mas o que pedis à Igreja Católica é a tolerância ou é o suicídio? Ela não pode sem contradizer toda a sua história, sem renegar a sua própria essência, sem anular-se, sem aniquilar-se completamente, sem trair a Jesus Cristo, admitir o princípio que todas as religiões são igualmente verdadeiras, ou que todas são falsas, ou que sendo uma só verdadeira, seja indiferente abraçar esta ou as outras; como se a verdade e o erro tivessem os mesmos direitos perante a consciência!
 
Impossível, absurdo.
 
Não, a Igreja Católica não pode admitir semelhante enormidade.
 
"Mas, dizem, o homem é absolutamente livre de pensar, de falar e escrever o que quiser. Tem a liberdade de consciência e portanto de religião."
 
É falso. Uma coisa é a liberdade física, outra coisa é a liberdade moral. A vontade, no ente racional, deve guiar-se pelo lume da reta razão. "O poder enganar-se e enganar-se realmente é defeito que acusa a ausência da perfeição integral na inteligência; assim também o apegar-se a um bem falso e enganador, sendo o indício do livre arbítrio, como a moléstia o é da vida, constitui todavia um defeito da liberdade." [Libertas proestantissimum, SS. Padre Leão XIII].
 
O erro não tem, pois direito ao assenso das inteligências; o mal não tem direito à anuência das vontades.
 
Isto é evidente.
 
O falar, o escrever estão por igual sujeitos às leis da honestidade, da justiça e da verdade.
 
Quiséramos saber se os partidários da liberdade de consciência permitiriam em seu salão palavras e atos obscenos, sob pretexto que aqueles que assim procedem nada nisso acham de mau, e é mister respeitar-lhes a liberdade de consciência?
 
"Mas, em religião, insistem, o que uns dizem ser a verdade, os outros negam. O que afirmais da Igreja Católica não é admitido pelos protestantes. Respeite-se, pois, a opinião de todos."
 
E desde quando a contestação de um direito equivale à sua destruição? 14 Um princípio é sempre falso todas as vezes que dele se deduzem falsas conseqüências. Ora, a admissão de semelhante teoria, chegaria, como demonstra Balmes, a esta conclusão: que a sociedade não tem mais direito de punir certos criminosos. Os crimes políticos, por exemplo, devem passar todos impunes, porque os que os cometem julgam até ter feito atos de heroísmo; foi o amor da pátria, e às vezes o zelo da religião que o inspiraram; todos os conspiradores, tentando destruir um poder por ele considerado como ilegítimo e tirânico, têm a certeza de bem obrar, de bem merecer da nação. No entanto, as mesmas repúblicas mais liberais punem de morte os conspiradores. Nem poderia haver governo e ordem social sem esta justa severidade. Diga-se o mesmo dos que estão intimamente convencidos da liceidade da vingança, do duelo; diga-se o mesmo dos socialistas que usam de elementos de destruição para acabar com a atual sociedade que eles têm a profunda convicção de não poder ser reformada; senão por este meio.
 
Em face de todos estes e de quantos contestam à sociedade o direito de punir, como os que hoje sustentam que o homem é levado pela fatalidade do meio e de suas inclinações, ou que não há mais réus, mas só enfermos, nem deve haver mais prisões senão somente casas de saúde: em face de todos esses erros desarma-se porventura a sociedade, e perde a consciência de seu direito de punir?
 
Assim a verdadeira religião, o cristianismo católico, única religião, que se demonstra sublime nos seus dogmas, perfeita na sua moral, não perde os seus direitos só porque alguns o contestam.
 
"Seja, dirão. Mas este princípio que adotais, que o Estado deve ter uma religião, e a esta só proteger, é também espada de dois gumes, que a vós mesmos pode ferir. Deveis então confessar que tinham razão os Césares romanos quando defendiam contra os cristãos a religião do Império. Deveis aplaudir a intolerância dos protestantes, que até bem pouco privavam de direitos civis os católicos da Inglaterra."
 
Respondemos: não se deve sacrificar um princípio só porque dele se faz uma falsa aplicação. Se o governo perseguidor está em boa fé, se labora em erro, mas erro para ele invencível, sobre a religião católica, julgando-a falsa e má, sua ação é só materialmente injusta. Equivale à sentença de um tribunal que em boa fé pune um inocente.
 
Mas tem a maior parte dos perseguidores da nossa fé uma consciência invencivelmente errônea? Para isso era mister que depois de maduro, imparcial e diligente exame, eles se tivessem convencido do erro do Catolicismo da verdade da religião que sustentam. Estão eles neste caso? 15
 
"O velho paganismo, como observa um douto escritor, admitia em seus lares todos os deuses e todos os cultos, até as religiões mais imorais; com que direito repeliu ele a Igreja? com que direito recusou a liberdade a esta pacífica instituição, que por tantos títulos a ele se apresentava, como benfeitora da sociedade e auxiliar do poder?
 
"A conspiração urdida no século XVI pelos Estados protestantes para destruírem a Igreja existente, e despojá-la dos direitos que lhe assegurava, além de sua origem divina, uma posse quinze vezes secular, essa revolta foi por certo tão sacrílega, como a pretensa reforma de que saíram os Estados. Além disso, por sua própria doutrina sobre a natureza do Cristianismo e a constituição da Igreja, tiraram os protestantes a si próprios o direito de usar de intolerância para com os sectários de um culto qualquer.
 
"Se, como eles dizem, não existe no mundo autoridade religiosa exterior; se a Bíblia, com ou sem inspiração pessoal, é a única regra de fé; se o cristão é instruído interiormente de quanto deve crer e praticar; se, por conseguinte, ninguém deve colocar-se entre Deus e o crente, quem poderá arrogar a si o direito de somente censurar as doutrinas e opiniões de outrem?
 
"Enfim, pois, chegaram ao ponto de dizer que para se salvar basta crer na divindade de Jesus Cristo, não podem os protestantes negar que seja possível salvar-se na Igreja Romana; por onde não há mais quem possa justificar, nem mesmo explicar a intolerância de que usam para com os católicos.
 
"Mas vossa tolerância, dizem ainda, bem que a inculqueis como puramente teológica, cheira a sangue e ameaça-nos com os horrores da inquisição."
 
Deveríamos talvez passar em silêncio, não dizemos esta objeção, mas esta afronta. É iníquo confundir tempos tão diversos e argumentar do que se fez em épocas remotas, em um Estado social inteiramente diferente do nosso, para exprobrar à Igreja Católica intenções que ela não tem, nem pode ter.
 
Quem não sabe que os Papas reagiram contra os excessos e abusos da régia inquisição espanhola, instituição antes de tudo política e nacional, e que à Roma vinham procurar abrigo e proteção os hereges perseguidos da Espanha? 
 
Quem não sabe que, mantendo sem a menor quebra os seus princípios e protestando pelos seus direitos, a Igreja exerce com as pessoas a mais larga tolerância, e sujeita-se resignada e pacificamente a todos os regimes e modus vivendi que neste tempos de anarquia intelectual, no meio das agitações e revoluções da sociedade moderna lhe querem estabelecer? 
 
Os que nos acusam não sabem o espírito que nos anima. Não somente não queremos molestar os dissidentes estabelecidos no Brasil, como os Bispos e Católicos da França, da Alemanha, da Inglaterra, dos Estados Unidos, não querem molestar, nem molestaram jamais os dissidentes que convivem com eles naqueles países; mas ainda, como toda a Igreja Católica, dilatamos o nosso coração na caridade de Jesus Cristo para todos os nossos irmãos separados, dispostos a derramar o nosso sangue, a perder a própria vida, se este sacrifício fora necessário para os ver unidos conosco pelos laços da mesma fé, no grêmio da santa Igreja Católica, nossa Mãe comum.
 
Queremos ganhar a todos não pela violência, não pela opressão, não pelos maus tratos, mas pela doce persuasão, pelas armas pacíficas da palavra, da oração, da caridade.
 
Parece-nos, dignos cooperadores e Filhos muito amados, haver vindicado com argumentos irrespondíveis a verdade da doutrina da Igreja Católica sobre a separação da Igreja e do Estado e a liberdade de cultos. Não perderemos de vista esta doutrina. Mas ao mesmo tempo que a mantemos como o ideal sublime de nossa fé, não desconheceremos que a aplicação prática desse ideal tem de adaptar-se às dificuldades e malícia dos tempos e dos homens. O que comportaria um estado social perfeito, não o comporta outro cheio de desfalecimentos e de imperfeições.
 
"Sobre o terreno da doutrina, diz um grave autor, a Igreja Católica aparece como a obra pessoal de Deus, única religião verdadeira, única legítima, impondo de direito a todos os homens uma só e mesma fé e não tolerando outro símbolo senão o seu; exigindo que soberanos e súditos a reconheçam, a aceitem e conforme inteiramente com as máximas e prescrições dela não só o seu proceder privado, senão também todos os atos do seu governo.
 
"No domínio dos fatos, pelo contrário, que vemos? De uma parte, até no seio dos Estados, cujos soberanos fazem profissão de Catolicismo, confissões religiosas de nome diverso, confissões rivais e poderosas, que, se não pretendem gozar cada uma honras e privilégios devidos à verdade, exigem ao menos serem postas no mesmo pé que a Igreja verdadeira, e reclamam para os próprios sectários a tolerância e a liberdade políticas. Dir-se-á que esses soberanos nunca devem levar em conta essas reclamações, quaisquer que sejam aliás as conseqüências desta recusa no ponto de vista da ordem e tranqüilidade interior? Ou então, se eles tomaram compromissos públicos com as seitas dissidentes, ser-lhes-á lícito faltar à palavra, violar a fé jurada?
 
"De outra parte vemos governos fora do Catolicismo. Uns ainda hoje estão curvos ao jugo do paganismo e da infidelidade, ignorando completamente a origem e a missão divina da Igreja.
 
"Outros, em maior número, depois de haver abraçado a verdadeira fé e feito parte da confederação cristã, caíram na apostasia, na heresia, ou no cisma, aliando-se desta arte aos inimigos da Igreja.
 
"Enfim, alguns há que, afadigados de lutas e dissensões religiosas, acabaram por pôr-se, em face de toda religião positiva, em estado de completa indiferença, ou, ao menos, se contentam de não sei que direito comum que os rebaixa ao nível das associações vulgares."
 
No nosso Brasil não é mais risonha a situação. Por um singular fenômeno acústico, repete ele fielmente, através do Atlântico, todos os ecos das revoluções européias. O espírito hostil à Igreja está entre nós fremente, áspero nas suas exigências, encarnado em uma seita poderosa e dominante. Não, infelizmente não podemos esperar nem proteção nem favores no estado em que nos achamos.
 
Enquanto a nação não assentar com serenidade e reflexão, com a sabedoria que, esperamos em Deus, presidirá aos seus conselhos, as bases da nossa constituição definitiva, só temos uma coisa a fazer: é usar da liberdade que nos reconhece o governo atual da República, liberdade que é o nosso direito inauferível, e armados de paciência, abraçados com a Cruz, tanto mais confiados nos auxílios celestes quanto nos falecem os terrenos, tomar alma nova, aspirar forte um novo espírito, espírito de caridade, espírito de zelo, espírito de sacrifício, e trabalhar corajosos na grande e dupla obra do reflorescimento de nossa Igreja e de nossa pátria. A Igreja tem o segredo das grandes renovações sociais.
 
O sopro que sai com um gemido do peito dilacerado desta Mãe é o sopro de Deus, é a vida.

  1. 1. Jo 28, 11.
  2. 2. Encicl. Quod Apostolici muneris.
  3. 3. Mt 22, 21.
  4. 4. Rm 13, 1
  5. 5. 1 Pd 1, 13.
  6. 6. Mt 19, 6.
  7. 7. Encicl. Immortale Dei
  8. 8. Aemulamini, o Sacerdotes, aemulamini vias Domini et justitias Dei nostri. Tempus insurgendi cos qui sissiparunt legem. Ego Constantini, vos Paetri gladium habetis in manibus. Jungamus dexteras; gladium gladio copulemus, et ejicantur extra castra leprosi, et purgetur sanctuarium Domini et ministrent in templo filii Levi. (Orat. Edgar Regis ano 969. Hardouin, Conc. Tom. VI col. 675. Vid. Civilla Cattolica, ser. Tom. 2, p. 146.)
  9. 9. Ef 3, 15.
  10. 10. Rm 13, 1
  11. 11. Sl 87, 6.
  12. 12. Jo 10, 16.
  13. 13. Mt 24, 35
  14. 14. Vid. Opus cit.
  15. 15. Ibid.