O episódio do Centro Dom Vital, que só se esclarecerá no dia do Juízo, desviou-nos da história que vínhamos contando — a história da infiltração no Brasil que colocou os comunistas no poder até o inacreditável desenlace, em 1964. Já contei essa história mais de uma vez com o título de Lembrança de um Pesadelo e de um Milagre, e não resisto ao prazer de inseri-la nesta Introdução, que já ameaça tomar o livro todo. Ei-la:
O homem, como tão expressivamente disse Chesterton, é um curioso monstro que anda impetuosamente para o futuro com os olhos voltados para o passado. Conhece-se o teor de uma civilização pelo gosto e pela atenção com que se pondera o passado, com que se registram os fatos e feitos, com que se demarca com pedras — como na história de João e Maria — o caminho percorrido, como se esse trajeto fosse também um caminho de volta. Ao contrário, aquilata-se a gravidade de uma crise civilizacional (como que atravessamos no mundo inteiro) pelo desprezo ou pela violência com que os novos querem romper com o passado. Esta é uma atitude de bárbaro ou de desesperado — em qualquer hipótese uma atitude infra-humana.
Romper com o passado é, numa linha horizontal e freudiana, desejar a morte do pai; e, numa linha vertical e teológica, desejar a morte de Deus. Numa outra perspectiva, que inclui os dois vetores na mesma humana peregrinação, romper com o passado é romper com o humano.
Todos nós desejamos ardentemente um mundo melhor, libertado de certas taras, de tantos erros às vezes acumulados, renovado pelo aperfeiçoamento moral dos homens; todos nós sabemos que o homem é essencialmente progressivo, e que quem não progride regride, já que a imobilização dos passos é impossível neste restless Universe; mas também sabemos que só progride o que permanece, só avança na direção de um real progresso quem tem o olhar volvido para os grandes feitos e os grandes compromissos da humanidade. E é com esta convicção que orientamos aqui o nosso retrovisor para um passado recente e especialmente para os dias de março de 1964 em que se decidiu, milagrosamente a meu ver, a sorte do Brasil.
É instrutivo reanimar a memória para aqueles dias sinistros em que parecia vivermos um pesadelo. Depois de anos de demagogia populista e de estatizações catastróficas, o Brasil chegou ao período Kubitschek em que a pátria parecia transformada num carro carnavalesco. Perpetrou-se o erro gravíssimo da construção de Brasília, que arruinou o Brasil e até hoje impede o estancamento da inflação. Falsificaram-se metas com preferência dada aos gastos inúteis em prejuízo das coisas úteis e urgentes. Pouca gente sabe que o acréscimo percentual de potência elétrica instalada, mesmo favorecido com os trezentos e cinqüenta mil kilowatts da estação de Itapetininga (S. Paulo — Grupo Light), inteiramente construída no governo anterior e simplesmente “inaugurada” pelo Presidente Juscelino, foi a metade da cifra alcançada nos governos anteriores. Tudo isto sem falar no clima de uma jocosa corrupção que fez de Brasília o nosso panamá — com a diferença da sua perfeita superfluidade.
Segue-se a este período de alegre irresponsabilidade o curto governo de um louco, que não merece comentário. E estamos agora no sinistro período do Governo Goulart. Agrava-se a inflação e o Presidente chama a si a organização da desordem. Como todo ressentido, ou como todos os chamados homens de esquerda, João Goulart imagina que a ofensa ao princípio de autoridade agrada aos pobres, o que seria verdade se todos os pobres do Brasil já estivessem “conscientizados” pelo famoso MEB das cartilhas de luta de classes. E, com esta idéia-mestra, Goulart por seus ministros e pelegos, insuflou desordens, greves, insubordinações e insolências. Os comunistas tomam posições-chaves, e no Ministério da Educação se apoderam dos dinheiros públicos com espantosa facilidade: rapazes de vinte anos passavam recibo de somas de milhões em farrapos de papel e levavam como melhor título de recomendação a prova de pertencerem ao Partido Comunista. A UNE conseguia do Congresso verbas de 3 bilhões, que valiam o que hoje valem 500 mil cruzeiros.
Caminhávamos para o caos. O episódio da Faculdade Nacional de Filosofia é bem característico: os terroristas do diretório recusam entrada ao paraninfo eleito, o governador Carlos Lacerda. O Governo Federal mobiliza suas forças para garantir a desordem. O paraninfo, o Reitor e os demais professores são desfeiteados. E nesta mesma tarde eu vi um bravo barbeiro a agitar sua navalha e a perguntar ao céu, às árvores e ao vento:
— Como pode? Como pode? Atirar alunos contra os professores é o mesmo que atirar filho contra o pai...
Aceleram-se os acontecimentos depois do comício na Central do Brasil, no dia 13 de março. Lembro-me bem, e gostaria de que todos rememorassem aquela tarde sinistra. Sentíamos uma ameaça pesada e próxima. Dir-se-ia que até no céu carregado se viam prenúncios de desgraça. Estavam ali reunidos os possessos que desejavam reduzir o Brasil a um presídio com oitenta milhões de detentos. Os rádios, histericamente, transmitiam notícias, nomes, frases. Um matutino compusera sua primeira manchete com o novo titular: O COMISSÁRIO DO POVO... O agrupamento popular relativamente pouco numeroso, que cercava o palanque, procurava compensar sua tenuidade com multiplicação de gritos e de gestos. Um padre (de batina) pulava quase um metro de altura cada vez que seu sistema nervoso era percorrido pelas descargas vindas dos slogans. E o povo? O povo, que a UNE chamava de antipovo, olhava com medo e repugnância a desordem crescente. Greve todos os dias. Naquela tarde sombria e lívida com contrastes de tempestade e bonança, havia falta de luz. Racionamento da Light. (Esse racionamento da Light em 1964 foi uma das obras das antimetas de Juscelino Kubitschek; em seu governo a Light empreendera a construção da Usina de Ponte Coberta, que iria trazer mais 100.000 kW para o Rio. O empreendimento tinha financiamento estrangeiro, mas precisava de uma aval do governo brasileiro e portanto de uma assinatura do Presidente. Duas vezes teve a empresa de dispensar seus trabalhadores para reatualizar os orçamentos, porque o Presidente Juscelino, com uma omissão criminosa, deixava de assinar seu compromisso. Durante um ano andavam os homens da empresa a procurar o Presidente, sem conseguir seu rabisco, que aliviaria uma enorme construção e que traria luz e conforto a quatro milhões de cariocas).
Em nosso bairro as ruas estavam vazias, e nos rebordos das janelas víamos durante todo o dia velas acesas em sinal de que naquele apartamento rezava-se pedindo a Deus que não permitisse o assassinato do Brasil. Creio que foi nesta semana que um colunista católico escreveu que as reformas anunciadas por Goulart coincidiam com os ensinamentos de João XXIII!
Precipitam-se os acontecimentos. Foi nesta última semana ou na anterior? Cada manhã, à saída da missa, os amigos se entreolhavam com o ar de quem tem em casa um grande doente. Evitávamos falar no assunto. Nesta manhã, porém, alguém perguntou:
— Viram o que aconteceu ontem na Ilha do Fundão?
O Presidente Goulart aprazara encontro com o Reitor, professores e estudantes. Desceu de helicóptero, mas a meia altura mandou parar e começou a gritar:
— Os estudantes para a frente! Os estudantes para a frente!
E a manada de estudantes rompeu a socos e empurrões a fila dos professores. E nós, ouvindo a história, sentíamos uma vergonha profunda, alternada com convulsões de cólera perdida. Ah! que vontade de combater! “Ô rage, ô desespoir, ô vieillesse ennemie!”.
Cada notícia era uma injúria; cada página de jornal, uma bofetada. E os nervos tensos, e o coração sangrando... Não se via uma perspectiva, uma saída. A tênue esperança que tínhamos era a de que o Exército se organizasse e seus chefes soubessem sobrepor à mesquinha legalidade produzida pelo positivismo jurídico. Saberiam? Poderiam? O fato é que o comunismo já se achava no Poder e já tinha a seu favor a moleza de uma sociedade maltratada por tantos e tão maus governos. Faltava-lhe um arremate de forma, mas contava com grande parte da imprensa, com os “intelectuais”, com os estudantes e com padres e até arcebispos “progressistas” que já ensaiavam a voz para a declaração:
— Companheiros! Eu também sou comunista! Eu sempre fui comunista!
De onde nos viria o socorro humano, a reação viável? Trouxeram-me um revólver. Que faria eu com um revólver contra um bando de executores que me cercassem a casa à noite? Aconselharam-me a mudar de posição a mesa de trabalho colocada diante da janela. Cheguei a pegar na mesa, mas detive-me, prevendo que entraria num espiral de precauções intoleráveis se admitisse a primeira. Aconselharam-me a mudar de casa, mas o mesmo horror da organização do medo me tolheu. Sinceramente, a um Brasil emporcalhado de marxismo, eu preferiria não sobreviver. Dias depois, fui dar minha aula na Companhia Telefônica, na Avenida Presidente Vargas. Quando cheguei ao local, vi-me cercado no carro por uns oito ou dez indivíduos de má catadura.
— O que vem fazer aqui?
— Vim dar uma aula — respondi com uma repugnância infinita.
— Somos o piquete da greve! Você não sabe que a CTB está em greve?
Senti oscilar a razão sob a pressão da cólera explosiva. Tive medo e raiva de ter medo. Consegui conter-me: engrenei o carro, baixei a cabeça para evitar algum tiro, e entre gritos dos pelegos e freadas de carros entrei na roleta russa da Avenida Presidente Vargas. No dia seguinte, li no jornal o que o mesmo piquete de greve fizera com uma moça datilógrafa que ousara discutir com eles. Despiram-na e deixaram-na nua junto de uma palmeira.
Os possessos! Os possessos! Tínhamos a impressão de que o número deles crescia, ou que se multiplicava a sua força. E pasmávamos diante da inexplicável insensibilidade de alguns intelectuais e de muitos padres e bispos que não sentiam o cheiro da substância que lhes entrava pelo nariz. Empoleirados a rotular com louvores o hediondo fenômeno que os empurrava, esses intelectuais e esses padres ousaram apontar no comuno-peleguismo, cruel e cafajeste, uma realização da doutrina social da... Igreja.
Não víamos saída, sobretudo quando comparávamos nossa situação à dos países tombados sob o jugo do comunismo. Os processos se repetiam. “Vejam o caso da Tchecoslováquia!”, dizia-nos um comentador de política internacional. Eu acordava resmungando, não sei por que em francês: “sans issue... sans issue...”. Receávamos todos que nossas próprias lições na Resistência Democrática se tornassem obstáculos mentais, superstições, pontos de honra para os nossos melhores soldados: democracia, vontade do povo, legalidade... receávamos que tudo isso recobrisse a noção fundamental de bem comum e de lei natural e paralisasse as melhores consciências.
De Minas chegou a notícia consoladora de um comício pelego-comunista dissolvido por um grupo de senhoras armadas com o terço. Mas a anarquia se precipitava. O grupo de marinheiros rebeldes reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos venceu a resistência do próprio Governo. O Almirante Aragão voltou ao comando dos fuzileiros, e nesta tarde o povo carioca teve de suportar o vexame da carnavalesca passeata dos comandados do Cabo Anselmo na Avenida Rio Branco. De hora em hora arrematava-se a chinificação do Brasil. O Clube Naval esboçou uma resistência que obrigou o Presidente Goulart a voltar à ofensiva no tristemente famoso discurso no Automóvel Clube. Nesta noite o Brasil chegou ao ponto mais baixo de sua história. Um marinheiro rebelde, tomando a palavra, começou um discurso bobo e convencional, e pela força do hábito deixou escapar a palavra “disciplina”. Foi estrondosamente vaiado.
Naquela manhã, à saída da missa, percebemos logo que a anormalidade chegara a um ponto decisivo. Antes mesmo de ver os lençóis azuis, sentimos o ar de um dia diferente. O que faziam ali aqueles rapazes de lenço azul e revólver na cinta? Eram milicianos. O que é que se esperava? Um ataque ao palácio do Governador da Guanabara.
Esboçavam-se filas diante dos armazéns. A cidade inteira — adivinhávamos — se preparava e se retesava. Caminhamos na direção do Palácio e encontramos amigos, homens pacíficos, negociantes e professores, que se dirigiam também ao Palácio, com um revólver surgido na cinta que jamais sonhara tamanha responsabilidade. O brasileiro bom, o brasileiro sem jeito, modesto, caminhava mansamente e sem ares de heroísmo para uma situação em que possivelmente teria de dar a vida. Povo manso, povo bom, pensava eu, mas também povo bobo e sem jeito. O que iria acontecer?
Numa esquina ouvi uma conversa entre dois populares:
— Parece que os tanques vão atacar o Palácio pela Rua Paissandu.
— Não pode. Ô cara, você não sabe que é contramão?
Perto do Palácio adensava-se a multidão, mas no meio dos homens canhestramente dispostos a dar a vida pela Pátria passavam meninos de bicicleta e moças risonhas e despreocupadas. Seria da mocidade, desta bateria nova e bem carregada, que eles tiram energia? Não. O povo todo, observando melhor, ostentava uma graciosa e leve coragem. Uma coragem humorística. E eu tive, de repente, a intuição viva e fulgurante da vitória desse gênio brasileiro contra a substância que o ameaçava.
Pouco depois chegou a primeira onda de notícias surpreendentes: os tanques tinham aderido ao Governador, as Forças Armadas dominavam a situação, João Goulart fugira do Palácio das Laranjeiras, sem tempo de meter a fralda da camisa para dentro das calças. Pouco depois confirmava-se a notícia, e o povo brasileiro (com exceção dos intelectuais de esquerda e dos eclesiásticos paracomunistas) ficou sabendo que Nossa Senhora ouvira nossas súplicas, que Deus nos salvara e que o instrumento escolhido para este milagre fora o nosso bom soldado de terra, mar e ar.
Dois dias depois, em todas as cidades grandes do Brasil, o povo encheu as ruas com a Marcha da Família — com Deus pela Liberdade. Eu e quatro amigos estivemos perdidos, imersos na mais densa multidão que jamais víramos reunida. Ali estava o que os intelectuais de esquerda chamavam de antipovo. Ali estava o sangue vivo de nosso bom Brasil. E eu então senti-me possuído de uma enorme admiração por este povo singular que acabava de vencer uma Copa do Mundo no combate ao comunismo. Agradecendo a Deus os favores de exceção que de certo modo não merecíamos, agradecia também os favores da natureza e das merecidas conseqüências. Grande povo! “A Europa curvou-se ante o Brasil” nos dias de Santos Dumont. Menino de quatro anos, cantei o pequeno hino de nossa projeção internacional. Velho, às portas dos setenta, cantava outro hino e candidamente prelibava a admiração universal diante da facilidade dançarina, graciosa, dionisíaca, com que o povo brasileiro pôs a correr os comunistas. (Mal sabia, na embriaguez de meu entusiasmo, que o mundo inteiro nos caluniaria. Os Estados Unidos com base na superstição de sua liberal democracia, ou no seu “democratismo”, e a Europa com base no esquerdismo que se apoderou dos meios de comunicação).
Foi um dos mais belos espetáculos que vi. E tenho pena dos corações alienados que não tiveram a capacidade para acolher tão boa e tão bela alegria. Lembrei-me de uma página de Léon Bloy. A França acabara de marcar a vitória do Marne. Os jornais estavam encharcados de júbilo, de esperança, de triunfo. Mas Léon Bloy folheava os jornais com cólera crescente, e depois com tristeza infinita. O que é que o velho leão procurava nos cantos dos jornais? Lá está escrito em seu Diário: “Je cherche en vain le nom de Dieu”.
Ora, em nossa grande Marcha — cuja fotografia está diante de mim — não houve menção de um só nome dos tantos civis e militares que bem mereceram o aplauso do povo. Havia um só nome: o nome de Deus.
O levante militar de 1964 pôde expulsar dos postos de governo os comunistas, mas não pôde fazer o mesmo nas ordens religiosas, onde a infiltração se agravou com a cobertura dos bispos agora burocratizados ou motorizados na CNBB. Anos atrás D. Jaime Câmara, e muitos outros bispos do Brasil clamaram contra o perigo iminente e evidente da infiltração comunista, mas agora, ao sabor da chamada era pós-conciliar, e da liquidificação da autoridade episcopal, tornou-se ostensivo e agressivo o comunismo de padres desatinados, e tornaram-se inevitáveis os atritos entre esse clero e o Governo. Um dos primeiros padres presos foi o lazarista que deixamos páginas atrás a ensinar marxismo em Ferros, perto de Belo Horizonte.
Mais tarde foram presos dois padres assuncionistas franceses que ensinavam marxismo e que pertenciam à Ação Popular. Voa de Paris o Pe. Guillemin, superior dos assuncionistas que desde a primeira entrevista anunciou a nova-Igreja pós-conciliar, disse uma dúzia de asneiras em torno desse tema, e voltou à Europa para levar a queixa à Comissão de Justiça e Paz que nesse tempo já era o que é e já estava preparada para repositório das reclamações esquerdistas. Mereci desse Superior Assuncionista uma carta suavemente injuriosa, mas nunca tendo conseguido ser colecionador de coisa alguma não guardei o autógrafo do personagem. Nesse meio tempo chegou ao Brasil, com atraso de vinte anos, o fenômeno Teilhard de Chardin. Escrevi em 1965 mais de dez artigos sobre essa nova faceta do poliedro de estupidez que o mundo católico parecia empenhado em construir. O sucesso editorial alcançado pelas obras de Teilhard de Chardin, que não têm nenhum valor filosófico, teológico, literário ou científico, só é comparável à febre de valorização de tulipas que grassou na Holanda do século XVII, ou à quase idolatria do boi zebu que foi apaixonadamente praticada no Triângulo Mineiro há mais de quarenta ou cinqüenta anos. Ponderando, no caso, a gravidade da matéria tratada, podemos dizer que essa epidemia teilhardista foi certamente o mais humilhante acontecimento do último milênio nos dois hemisférios deste honrado planeta habitado. Não insisto no assunto porque já declina o fenômeno que brevemente mergulhará no nadir de um esquecimento total e absoluto, e se misturará às fantasias de Simão, o Mágico.
Menos cômica do que a omegalização e a noogênese do infortunado jesuíta, foi a degradação que se via na ordem dominicana. Convém lembrar que em 1968 as esquerdas, vencidas e expulsas dos cargos, estavam levantando a cabeça. Vale a pena ler o divertido livro de Charles Antoine publicado pela Desclée Brouwer em 1971 com este título: L’Eglise et le Pouvoir au Brésil, e este subtítulo: Naissance du Militarisme. No capítulo 4, o autor que é ou foi padre, começa com estas palavras do mais límpido cinismo jamais impresso: “O ano de 1968 é particularmente fértil em campanhas de opinião pública contra a ala avançada da Igreja. A ofensiva se desenrola em três frentes: corrupção financeira dos bispos, comunismo no clero e perversão sexual nos colégio católicos. Os responsáveis dessas campanhas são respectivamente os meios conservadores, os integristas católicos e os militares da linha dura”.
E mais adiante o autor se entusiasma com a famosa passeata. Dom Castro Pinto e Pe. Adamo se desdobram na promoção dessa passeata chamada dos “100.000” em que todos se sentavam no chão quando o rapaz que a liderava — creio que se chamava Vladimir Palmeira ou Coqueiro, não tenho certeza — declarava que estava cansado. “Sentar no chão!” era a ordem; e padres, freiras e bispos sentavam-se no chão.
No auge do entusiasmo o professor Cândido Mendes publica no Correio da Manhã, de 30 de junho de 1968 um artigo: “Enfim, a Marcha!”, onde dizia no seu peculiar idioma:
“No máximo a alternativa à baixa dos cassetetes ou à carga de cavalaria se constituía na exasperação dos dispositivos de “derretência”, palavra que cada vez mais assume o primeiro na logística do conflito contemporâneo”.
A avalancha de perversidade e de estupidez se avoluma e se precipita sobre os restos de uma civilização vacilante, sob disfarces e com apelidos de “progresso” e “frutos maravilhosos” do Concílio Vaticano II, que se quis a si mesmo mais “pastoral” do que definidor, dogmático e condenador de erros, começando por emprestar o termo “pastoral” um significado de tolerância que destoa não apenas da tradição mas de qualquer idéia de reger, conduzir e governar. Se o Concílio tivesse sido realmente tão pastoral como euforicamente prometiam seus padres, teria reservado espaçoso lugar para a denúncia de mercenários e para os gritos de alarme contra os lobos. Ao contrário disto, tivemos um Concílio otimista, e os resultados não tardaram.
A famosa Constituição Pastoral sobre a Igreja e o Mundo Moderno, que um irreverente chamaria Constituição Pastoral sobre a Igreja e o Mundo da Lua, “reconhece agradecida a ajuda variada que recebe de parte dos homens de todas as classes e condições”. Que quererá dizer isto? Que a Igreja agradece aos padeiros e vinhateiros, e que além disso agradece ao mundo a afabilidade com que tolera sua presença e com que proporciona serviços de água e esgoto a suas instituições? Em outra passagem (21) a mesma Gaudium et Spes diz que “a Igreja, embora repelindo de forma absoluta o ateísmo, reconhece sinceramente (sic) que todos os homens, crentes e descrentes, devem colaborar na edificação do mundo em que vivem em comum, e isto requer necessariamente um prudente e sincero diálogo”. E assim se vê que já se consideram peremptos os decretos de Pio XII e João XXIII que severamente proibiam a colaboração dos católicos com os comunistas, como também se vê que cai em desuso e esquecimento a definição do Concílio de Trento pela qual “a Igreja na terra se chama de militante porque está em guerra constante contra três cruéis inimigos: o mundo, o Diabo e a carne. Agora, em vez disso “somos testemunhas do nascimento de um novo humanismo (!?) no qual o homem fica definido, principalmente, por sua responsabilidade diante de seus irmãos e diante de...”.
Se anos atrás entregássemos esse texto a alunos de catecismo elementar, com o claro por preencher, todos imediatamente escreveriam: “Deus”.
Ora, não é diante dos homens e de Deus que o “novo humanismo” deve ser principalmente responsável: é “diante dos homens e da HISTÓRIA”!!! Está claro que o realce é nosso. Nosso é o espanto, nosso é o estupor, nossa é a preocupação. Frases como estas se diziam em discursos rotarianos, ou diante das pirâmides do Egito, mas nós, católicos, raça humilde e altiva que não reconhece outro senhor senão o Deus dos exércitos, sabemos que a história, com minúscula ou maiúscula, tomada como curso dos acontecimentos ou como o registro deles estudado pelos homens, pode ser julgada, mas não pode julgar coisa nenhuma, e sabemos que não é diante do trono do século XX ou do século XXX que prestaremos conta de nossos atos.
As conseqüências de tais afrouxamentos de doutrina e de relação se traduzirão rapidamente em afrouxamentos morais e disciplinares, e veremos espetáculos espantosos nas casas de recolhimento e de oração. Em 1967, temos em Belo Horizonte e em São Paulo conventos dominicanos e beneditinos que abrem suas portas a falsos estudantes da UNE sob pretexto de retiro espiritual. Nesses dias escrevi: “Ia eu formular um apelo... Mas, quando os religiosos chegam a mentir — e mentir descaradamente, pretendendo que se enganaram, e que tomaram o ajuntamento de moços como um desejo de retiro espiritual — todos os apelos se tornam inúteis e ingênuos demais” (O Globo, 2 de julho de 1967).
Em 1968, como se tornou manifesto ulteriormente, os guerrilheiros de Marighela tinham quartel-general ou cabeça-de-ponte no Convento das Perdizes, em São Paulo. Quando as autoridades policiais prenderam “frei Chico” (o prior) para prosseguimento do inquérito, todos os padres e frades progressistas se moveram e organizaram uma passeata diante do DOPS, em São Paulo, vestidos com os hábitos que já haviam desprezado. A CNBB pressionou o governo; o Cardeal Rossi pressionou o governo do Estado, e depois a Presidência da República.
Esses senhores agiam em função de dois novos princípios, ou novos dogmas: 1°, sendo dominicano, o preso não podia ser revolucionário, e muito menos comunista; 2°, sendo militares as autoridades que promoveriam a diligência, ela era evidentemente injusta. O provincial e o vice-provincial dominicanos, chacun avec sa chacune, já preparavam as malas para deixar tudo, como ulteriormente efetivaram.
E é nessa atmosfera de apostasias e de corrupção que os senhores bispos resolvem corrigir as estruturas econômicas da América Latina e aprazam reunião na Colômbia, em Medelin, onde, com base num manifesto marxista do padre belga José Comblin, elaboram um documento inflado de auto-suficiência, mas absolutamente vazio de qualquer saber sócio-econômico. O senso comum de nível mais elementar os aconselharia a não discorrerem tão profundamente sobre matéria que tão mal conhecem e que escapa a sua jurisdição, enquanto lavrava o incêndio nas próprias dioceses abandonadas, e as almas eram devoradas. Sim, senhores bispos, as almas que lhes foram confiadas se perdem! Ou não? Mas então, se a salvação não é o mais importante dos affaires, se não é para cooperar com Cristo crucificado que os padres e os bispos são padres e bispos, então fica provada, à luz da “Gaudium et Spes” ou de outros tópicos conciliares que invoquem à História, a perfeita inutilidade do esbanjamento do preciosíssimo Sangue.
Um ano depois estoura o escândalo Marighela, e logo depois, como era de esperar, surgem da Europa, de onde nos vêem as diretrizes e os agentes da corrupção, denúncias contra arbitrariedades e perversidades praticadas pelo governo do Brasil.
O tenebroso nadir de todo esse amontoado de perversidade e estupidez é atingido no dia em que todos os provinciais dominicanos franceses escrevem uma carta ao Cardeal Leroy, presidente da Comissão de Justiça e Paz. Nessa carta inimaginável os provinciais franceses, negando pura e simplesmente os fatos atribuem as notícias à invencionice do governo brasileiro.
O que terá acontecido na ordem dos dominicanos, perguntaria alguém que tivesse cochilado, não cem ou duzentos anos como no apólogo do frade que se entretém com o canto melodioso de um pássaro, mas apenas vinte.
Sim, o que aconteceu entre a data do desembarque do Pe. Lebret no Brasil e o dia em que Marighela marcou encontro fatal com dois comparsas duplamente traidores? Apenas isto: os erros, os desvios produziram suas conseqüências. E alargaram-se: parvus error in initio magnus est in fine.
Recrudesce em toda a América Latina a onda de assaltos e seqüestros. Praticam-se friamente crimes espantosos. No aniversário de morte de Guevara é decidida nos “tribunais” revolucionários a condenação à morte de um norte-americano qualquer. É “justiçado” o oficial Chandler, quando saía de casa com seu filho de onze anos.
Entusiasmado com esses feitos praticados por jovens, o arcebispo de Olinda e Recife sai voando e em Paris dá à revista L’Express uma entrevista que fica registrada para vergonha do planeta Terra: ele aplaude os seqüestradores assassinos. Pede bis. Escreve em livro que devemos abrir aos jovens “crédito de ilimitada confiança”. E nós nos perdemos em monótonas indagações: como se explica? O que aconteceu com o Concílio? Com o Papa? Com os bispos? Com as freiras que vendem prédios, imagens, objetos sagrados para saírem por aí a multiplicar conferências sobre o sexo? O que aconteceu com a Igreja? “Has the church gone mad?”.
Uma ponta do mistério está no Livro Santo: “Simão, Simão, eis que Satanás te reclamou para joeirar-te como trigo, mas eu roguei por ti para que tua fé não desfaleça: e tu, uma vez convertido, vai e conforta teus irmãos” (Luc. XXII, 31, 32). Nesta hora sexta do século, Deus permitiu que Satanás passasse pelo crivo os discípulos de Jesus. Se quisermos lograr algum entendimento de tão sombrio mistério, será preciso voltar anos atrás a fim de ver e auscultar o que andaram fazendo os homens que descendiam de uma civilização cristã, e orgulhosamente anunciavam o surgimento de um “novo humanismo”. Nas páginas subseqüentes trago minha minúscula colaboração, arrancada das lágrimas e do estudo, e tornada possível com a graça de Deus e com uma sobrevivência que já me causa certo espanto, e que quero aproveitar para o serviço da mesma Igreja de Deus, tão bela, tão luminosa, mas momentaneamente toldada eclipsada pelo enxame dos que a abandonam mas ainda se detêm em torno de suas torres, diante de sua porta, para o triste mister de um escândalo rendoso, e de uma última bofetada na Mãe e Mestra que renegam. Ousemos desejar que esses maus filhos se afastem mais lealmente e vão comer bolotas com os porcos, porque essa será talvez a última oportunidade que terão de sentirem um dia saudades da Casa do Pai. E como filhos pequeninos que temem e tremem nesta hora crepuscular, nesta hora do lobo, coloquemos estas páginas sofridas e choradas aos pés de Nossa Senhora, Consoladora dos Aflitos.
E agora que já esbocei um resumo de nossos itinerários e de nossos extravios, deixemos o Brasil, aonde apenas chegaram os efeitos de causas remotas e alheias. Proponho ao leitor, nas páginas deste livro, que ainda não começou, a procura, a indagação, não digo das causas de tão assombrosos acontecimentos, por me parecer que o termo é austero demais e que a aventura está acima de minhas forças, mas a procura e indagação de sinais, das pegadas, dos sulcos que vêm deixando na história a passagem de uma caravana destruidora. Contentemo-nos com os marcos mais próximos e recentes e procuremos de onde vieram eles, o que disseram, por onde passaram...
E não se queixa algum leitor de que estejam na Europa e principalmente na França, na Inglaterra e na Espanha os personagens da Comédia de Erros, nem espalhe por aí que me desinteressei da própria história pátria. Na tragédia ou comédia de que depende a sorte da Civilização por alguns milênios já escrevi, e continuo a escrever, milhares de páginas sobre o que vem acontecendo no Brasil. Reunidas em volume dariam dez livros maiores do que este que hoje ofereço.
E agora partamos. Examinemos o chão do século e procuremos de onde vieram eles, os principais, por onde passaram e o que pelo caminho deixaram. E retiremo-nos para esperar novos avanços da sinistra caravana que dá à desesperança e ao nada do século nomes de otimismo e de progresso.