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Concepção romântica e realista do amor

Quando a pedagogia católica nos ensina que o fim primário do casamento é a prole, e que daí se deduz a indissolubilidade do vínculo, temos geralmente uma impressão penosa. Parece-nos biológico demais o raciocínio que começa por considerar a natureza genérica do homem. Parece-nos que a prole, apresentada severamente pelo Código de Direito Canônico como fim primário do casamento é uma exigência da espécie, heterogênea com a experiência do amor que é personalíssima. Parece-nos que os casais humanos, aprisionados nas surpresas do amor — que seria um engodo — são oferecidos em holocausto ao Moloch da espécie.

Por mais amados que sejam depois os filhos, não é pelo amor deles, nem pelo desejo deles que começa a história do amor humano. Ao contrário, salvo exceções que até se nos afiguram esquisitas, é por um encantamento recíproco, onde só existem dois, que começa a história de uma família. Observando dois namorados, é difícil discernir nos seus gestos, nas suas atitudes, alguma coisa de institucional que de longe lembre o que diz Santo Tomás e o que severamente preceitua o Código de Direito Canônico.

Que quererá isto dizer? Á primeira vista chega-se a pensar que há realmente uma espécie de malícia com que o gênio das espécies pega os namorados desprevenidos. Namoro e família são opostos pelo vértice. O namoro é anti-social; mais parece conspiração do que edificação do bem-comum. O namoro foge à família, fisicamente e psicologicamente. Por mais que a acabrunhante experiência prove que os noivos se transformam sempre na pacata espécie de ser que parece realizar a lagarta depois da borboleta, os namorados tiveram, desde que o mundo é mundo, a impressão de ser única, inédita, inteiramente nova a história de seus amores.

Que quererá isto dizer? Será falsa a experiência do amor nascente ou será artificioso e forçado o que os doutores dizem do casamento? Ou então, quem sabe se não estarão mais certas as vozes que recentemente se levantaram para afirmar o primado da completação mútua, em oposição ao ensinamento tradicional?

Estamos aqui diante de duas concepções do amor e do casamento: uma que acentua a ordenação à prole; outra que acentua o caráter individual, a mútua completação.

A primeira, como já disse, deixa-nos embaraçados diante de certas dificuldades. O próprio vocábulo “prole” é assaz antipático. E a idéia de uma total subordinação do indivíduo aos interesses da espécie — como às vezes é apresentada esta doutrina — tem uma intolerável ressonância totalitária. A segunda concepção é geralmente apresentada com vocabulário mais persuasivo. Um autor recente fala em completação ontológica, e em comunidade de amor; o que parece mais elevado e convincente do que a “prole” dos tradicionais.

Ora, nós vamos ver, no decurso deste trabalho, se me não faltar o engenho, que é a primeira concepção que está certa. E farei o possível para provar também que é naquela direção, e não na outra, que nós encontraremos o que há de verdadeiramente bom e belo no amor humano.

Para responder às dificuldades que nos apareceram convém analisar um pouco mais detidamente o encadeamento das experiências amorosas desde o primeiro encontro até as núpcias. Variam muito essas experiências, mas nas suas linhas gerais há qualquer coisa de essencial e de constante nos mais diversos itinerários de amor.

A primeira fase do amor é a da surpresa feliz diante de uma descoberta. Precede geralmente a mútua declaração. É uma iluminação na vida, um encantamento de quem, de repente, acha mais rico o universo. Ela existe! Dir-se-ia que faltava alguma coisa no mundo, para ele ser um mundo razoável e que agora se preenche a lacuna.  

Essa primeira experiência é uma espécie de contemplação, é mais metafísica do que moral. A bem amada (ou o bem amado) nos parece como um arauto da riqueza do ser. Não é em si mesmo que o homem, no limiar desta experiência, sentia a falha. Era antes no cosmos. O homem, apesar de todas as carências, apesar da brecha sexual, sente-se substancialmente inteiro. Malgrado todas as deficiências que o aguilhoam, ele projeta para fora de si a idéia de incompletidão, e responsabiliza o universo. É o universo, é a inação, é o ser das coisas que está empobrecido para os olhos do  solitário. As existências estão rarefeitas, o ar das realidades é irrespirável.

Esse sentimento de um cosmos opressivo e avitaminado pode agravar-se a ponto de se tornar o homem metafisicamente pessimista, inimigo pessoal do ser. E essa inimizade, chegando às últimas conseqüências pode levar à neurose e ao suicídio.

É pela afetividade, por um sentimento que eu chamaria de cordialidade metafísica, que o homem se equilibra no universo; e são as pessoas, as relações de amizade que mantém essa saúde da alma. Ora, a primeira notícia de amor é uma explosão luminosa no quadro das afetividades cinzentas. Ela existe! Uma luz nova brilha no mundo. E assim começa o amor humano por uma Visão.

A primeira grande notícia que nos traz o amor é pois a da superabundância do ser. O universo, não só está completo, como também excedeu às expectativas. Existe o amor, existe o desejado! E dessa notícia o homem deslumbrado tira um agradecimento atirado às estrelas. Antes de entrar na fase do isolamento e da conspiração, o namorado de um dia é expansivo, tem vontade de abraçar as pessoas que passam, tem desejo de ver em torno de si uma universal felicidade.

Ao contrário, e ainda que já tenha alcançado os pontos mais avançados do itinerário, inverte-se a experiência nos dias de malogro. Volta tudo atrás, passando em sentido oposto pelos mesmos pontos. O universo torna-se pérfido, emagrecem as existências, fica tudo cinzento, sem perfume e sem gosto. A decepção amorosa diminui o brilho das estrelas. Resseca o cosmos. Encolhe o mundo.

Ninguém ignora como é fútil propor derivativos aos decepcionados do amor. Não há em todo o universo riqueza capaz de obturar aquele buraco produzido pela falha do amor, porque a falha do amor empobrece todo o universo. Há então, na ordem criada, no oceano do ser, um refluxo, um baixa-mar que o filósofo chamou de a “revanche de l’être”.

Prosseguindo o exame das etapas do amor, eu diria que ele vai descer agora do plano da contemplação metafísica para a ordem prática; ele vai produzir uma certa atividade: os namorados se procuram, se isolam, como se para cada um bastasse o outro, ou como se toda a riqueza do universo estivesse cristalizada na pessoa do outro.

Nesse momento, o bom e o belo descem do firmamento transcendental do ser, e se realizam em analogados. A visão, tocando os sentidos, como uma centelha, põe em movimento as forças criadoras que têm raízes profundas no sexo. E os namorados começam a fase do bailado do amor. Dançam. Cantam. Vivem a intensa poesia do deslumbramento encarnado. O amor desceu do céu e toca a terra, a boa terra do grão e da uva, e firma sua tenda de aventura no domínio da poesia. Viverão doravante os namorados num jardim de delícias. Exultação espiritualizada dos sentidos, tensão ascencional que subtiliza o sexo com a reminiscência do belo e do bom transcendental, o amor-idílio é engenhoso na confecção dos instantes em ninho, é harmonioso nos gestos, é gracioso nas atitudes e nas palavras.

Estamos agora na fase do amor-poético. A mais universal experiência através das mais caricatas deformações ou das mais sublimes realizações, comprova essa estação do amor nos domínios da poesia. A namorada desses dias é para o namorado um ser poético, essencialmente destacado e diferente dos outros seres prosaicos que ele vê em casa na hora do jantar. Não é por mero acidente, espécie de sarampo da alma, que o namorado de todas as épocas sempre tentou fazer versos, para exprimir de modo adequado a sua experiência. Como porém a  poesia-expressão é um dom especial de uns poucos, resulta em humilde aborto, algum acróstico ou algum soneto, a maioria das tentativas que não conseguem exprimir a poesia-experiência do homem comum. O amor de um Dante ou de um Petrarca não é maior, não é necessariamente melhor, mais amplo e mais vivo do que o obscuro amor de um funcionário padrão L que se apaixonou por uma comerciaria padrão K. O namorado comum vive a sua própria poesia; o namorado das grandes lendas exprime a sua experiência. E exprimindo-a empresta a lira a todos os namorados que não tenham o mesmo dom. Mas essa contribuição, a rigor, não é indispensável, porque o namorado quer mais viver do que dizer sua amorosa poesia.

A primeira conseqüência dessa fase do amor é a contração do universo, não num sentido de empobrecimento e de miséria, mas num sentido de aconchego. Toda a ordem criada passa a ter para os namorados uma significação emoldural. As estrelas e as rosas são magníficos supérfluos para o adorno do amor. Os namorados sentem uma angústia dos grandes espaços, fogem da luz, evitam o convívio que põe em risco a unidade magnífica do poema que vivem.

A obra de arte, a composição, tem sempre esta característica essencial: é qualquer coisa arrancada ao confuso e desarrumado reservatório comum; é um cristal. Fazer uma estátua é arrancar o mármore que sobra; é tirar a forma escondida no informe. O artista é o homem que mais agudamente escolhe, e que portanto mais resolutamente recusa. A obra de arte é sempre uma exceção, uma ablação, um protesto, uma espécie de greve.

Ora, é com todas essas características de isolamento, de retraimento, de recusa heróica que se reveste o amor-poético. E é nesse ponto, nessa especial atitude, que um par de namorados mais se diferencia de um casal cercado de filhos. Ou melhor, é neste ponto que família e namoro se opõem, e que não parece aplicado aos namorados o que os doutores dizem do fim primário do casamento. Realmente, a nota dominante, o fim desse par em idílico enlevo é a mútua completação, a harmoniosa, diria até poética completação. O par se fecha, se basta, se define por si mesmo, se completa como as partes de uma obra de arte de completam.

Diremos nós então que existe realmente uma contradição entre o amor e o casamento, ao menos como o definem os doutores?

Aqui é que tocamos o nervo de um grande problema: e aqui é que bifurcam duas concepções do amor radicalmente diversas. Nós responderíamos afirmativamente àquela pergunta se o amor-poético fosse para nós todo o amor. E esta é a concepção do romantismo. Mas responderemos negativamente se amor para nós tem outra significação mais ampla. Ou melhor, diremos assim: o amor-poético tem realmente uma certa contradição com o casamento e com a família; mas o amor-poético é apenas uma estação do amor.

Nesse ponto de seu itinerário, efetivamente, o par de namorados nada tem de matrimonial. Diria até que há no idílio poético alguma coisa de anti-matrimonial que resiste, que se arma em tensão contra as conseqüências fecundas do amor, que defende o especial caráter dessa união, querendo perpetuá-lo, sentindo talvez um certo horror de se reintegrar na vida comum, preferindo às vezes a morte harmoniosa, lírica, exaltada, às humildes conseqüências do amor fecundo. O poeta, ao contrário do que pretendem certos insensatos que pretendem viver a poesia, é alguém que morre abraçado à obra que termina. Cada obra de arte tem arestas que recusam à promiscuidade e ao destino comum; cada obra de arte contém em tensão uma condenação de vida, e por conseguinte um princípio de morte.

O amor-poético quando não tem seu normal dinamismo transformante, pretende também essa condenação de vida, e encerra também o mesmo princípio letal. No amor-cortês, em que essa tensão é levada ao máximo, nós vemos associadas intimamente as idéias de amor e de morte.

“Quereis ouvir uma bela lenda de amor e de morte?” pergunta-nos o trovador medieval. Tristão e Isolda serão para sempre os enamorados perfeitos desse perfeito amor-poético, que procura eternizar a flor e recusar o fruto. O amor-cortês proíbe a fecundidade, a conseqüência, a reintegração na vida comum. Prefere a morte. E nós, que nos gabamos de reagir contra essa estranha concepção do amor, facilmente nos deixamos levar por seu encantamento. Todos nós, realmente, custamos a admitir o desenlace ordinário da extraordinária lenda do amor fulgurante. Parece-nos uma concessão à mediocridade, uma capitulação. E não podemos, sem ironia, pensar numa Isolda cansada, numa Isolda que tivesse o título de madame Tristão.

Uma outra característica essencial da obra de arte é a ficção. Se é verdade que o artista se abastece na natureza, não é menos verdade, que introduz uma novidade de forma impressa no antigo material. O artista é essencialmente criador, inventor, inaugurador. Mas, essa ficção que o artista põe em sua obra conserva uma ligação de verdade profunda, mas uma ligação indireta, obscura, que foge aos sentidos e se perde no mistério do ser. “Truth is poetry, poetry is truth”, dizia Shelley. A arte não pode viver sem a lâmpada da verdade, dizia Ruskin.

Assim também, no amor-poético, há uma composição, uma invenção, uma ficção que é própria da natureza poética dessa experiência, mas que entra em choque com a vida comum dos personagens. Os namorados, quando namoram, estão num palco sem platéia. Dançam, brincam, representam. Mas quando se separam, e voltam à vida comum, sentem a descontinuidade, como atores que acabassem de representar Tristão e Isolda e voltassem para casa num ônibus superlotado. Direi que há uma mentira nos jogos do amor-poético? A resposta aqui é mais difícil do que no caso próprio da poesia. Haverá mentira na medida em que o amor-poético resiste ao seu efêmero mandato, e recusa a reintegração na vida comum.

Mais adiante voltarei a esse problema do romantismo, que situa no amor-poético toda a essência do amor. Veremos então de que aberrações pode revestir-se essa paixão que tem nome divino. Agora, neste capítulo, para dar alguma inteireza à breve análise que estou fazendo dos itinerários do amor, imagino uma evolução normal.

Mas essa evolução normal não se processa com um encadeamento necessário, como a flor se transforma em fruto. O namorado não vira noivo, e o noivo não vira marido. Há em cada uma dessas transições um ato livre, uma tomada de consciência, uma escolha. É essa tomada de consciência, essa livre decisão que introduz na história do amor a disposição propriamente matrimonial que faltava no clima do amor-poético.

O erro dos autores que abordam esse problema, admirando-se da heterogeneidade que se observa entre as primeiras experiências do amor e as exigências do matrimônio, é o erro do naturalismo. Abordam um problema dessa magnitude e dessa intensidade humana, como se devesse existir um encadeamento necessário, um determinismo rigoroso decorrente da natureza física do homem. Ou melhor, como se o amor não se movesse no universo da liberdade.

Se a atração dos sexos estivesse no homem ordenada irresistivelmente  à procriação, como parecem ensinar alguns outros autores que apresentam deste modo desumano o problema do casamento, não haveria solução para explicar cabalmente a aparente contradição que existe entre o idílio e a instituição da família. Ou, pelo menos, para explicar a consciência que temos dessa contradição.

É o ato livre, a tomada de consciência, o conteúdo moral dessa decisão que concilia as duas fases do amor, e que introduz a nota essencial que doravante se orientará para os fins do matrimônio. Dir-se-ia que a estação do amor no domínio da poesia tem o sentido de valorizar ao máximo a disposição generosa voltada para a fecundidade e para a sociabilidade. É o mais alto desafio lançado à alma humana: o jardim de delícias deve ser abandonado, voluntariamente abandonado, para a grande missão social da família. Por si mesmo o amor pede continuação de entrega e generosidade. Os namorados do paradisíaco amor-poético são solicitados por duas forças a seguir o ímpeto conseqüente de seu mútuo afeto. De um lado as forças do sexo pedem união mais completa do que as que proporcionam as carícias superficiais do jogo idílico. Resistem a essa solicitação física que viria toldar a pureza do bom amor. Por virtude moral, e por sentimento poético, defendem-se desse impulso dos sentidos. Por outro lado, em nível mais alto, o amor quer ser difusivo,  quer ser fecundo em toda a sua extensão, quer, digamos assim, retornar à atmosfera da abundância do ser. É nessa linha de inflexão que evolui normalmente o amor humano, com plena consciência dessa inflexão, dessa volta à intersolidariedade universal, que é tanto mais generosa quanto mais deleitoso é o jardim fechado que é preciso deixar para a aventura do amor fecundo.

Nesse momento, o amor que havia acampado no domínio da poesia, por um “rebondissement” procura um bem mais alto, mais substancial do que o bem deleitoso do puro amor-poético. E os namorados agora se voltam resolutamente para esse bem maior, que é belo e bom como diziam os gregos, mas de uma beleza obscura e humilde. Em outras palavras, os namorados inscrevem seus mútuos afetos, seus dias felizes, seu reservatório de poesia, e mais ainda seus apetites sensíveis, tudo enfim, sonhos, aspirações, sexo, na pauta ampla do universo moral que abrange o homem todo, desde a mais fina ponta da alma até as impaciências do sexo.

E é aí, no universo moral, no país do belo e do bom, ou do bonum-honestum, como dizem os filósofos, que o amor está no seu verdadeiro domínio.

O amor humano, configurado à vida física do homem, tem esse estranho itinerário: parte do paraíso para o mundo; começa na claridade de uma visão e aceita a inflexão com que se torna aparentemente menos fulgurante, e menos belo. Troca o brilho pela obscuridade, a delícia pela dedicação; e deixando guardada a beleza com que se compõem as óperas e as baladas, reveste-se da obscura, da paciente, da humilde bondade — da pura bondade que é apropria essência do amor. E é neste ponto que começa a verdadeira e inenarrável história do verdadeiro amor. E é neste ponto de inflexão que inicia uma nova e invisível ascenção em que o amor rastejante espera o dia em que a crisálida se liberte, e as asas vivas da alma tornem a encontrar a grande luz, o grande fogo, que é a fonte viva de todos os genuínos amores.     

 

(A Ordem, Junho de 1952)

 

 

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