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Ora, a observação dos singelos vaivéns da vida quotidiana mostra que já neste nível e nesta escala tão próxima de nós paira um equívoco cheio de riscos. O mundo moderno, acometido de avidez de coisas exteriores, é levado a valorizar tudo o que o homem faz quando parte para o trabalho em detrimento do valor e da significação da volta para casa. Ora, isto que parece sobrepor o social ao individual, e o universal ao caseiro, já é um começo de subversão porque a ida para a função produtiva tem caráter de meio, enquanto a volta para casa tem caráter de fim. O homem não vive para trabalhar, trabalha para viver e foi isto, em termos simplíssimos e elevadíssimos, que Jesus ensinou a Marta quando lhe disse que “uma só coisa é necessária”.
É claro que esta poliédrica questão poderá acidentalmente, pousada sobre uma de suas faces, reclamar certo primado acidental do trabalho e da função, no qual a Casa, símbolo de repouso, vida interior e contemplação, seja relegada à função subalterna de um posto de recuperação e reabastecimento; mas uma civilização que tornasse esta acidental posição por lema essencial terá o defeito mortal da subversão que escorre para o nada. Daí a necessidade de bater nesta tecla e de arvorar mais esta bandeira: a do dever de lutar pela volta à casa.
Nós sabemos que em nosso século são os próprios homens, um por um, e não alguma força oculta ou algum tirano que dificultam a volta para casa. É cada um habitante do planeta que anda perdido de si mesmo, esquecido de seu endereço e até esvaziado da nostalgia que constantemente o levasse a ter saudade de um paraíso perdido. A casa deixou de ser a casa e a volta deixou de ser a mais desejável das coisas humanas. Pobre gente, essa raça que mal chegada à casa é condenada a ricochetear e a voltar para o mundo dos programas pelas ruas, sim, voltar para a rua, isto é, voltar para a ida, já que ninguém sabe o que fazer de si mesmo e da simples companhia de seus familiares. Pobre gente condenada a procurar até em casa a anticasa multiplicada pela televisão, azulada ou policrômica.
Em outro contexto, em que estudei com agradecimento e admiração as idéias-mestras da obra de G. K. Chesterton (Três alqueires e uma vaca, AGIR) o problema da casa se impôs à minha atenção. Desde esse segundo livro, publicado em 1945, o tema da casa própria, da terra possuída e não socializada, e o correlato tema da volta para casa se tornaram pontos de honra na constelação das idéias simples em cuja defesa quero viver e morrer.
Não resisto ao desejo de transcrever estas linhas antigas e tão atuais:
“Agora, deixando de lado a fantástica enumeração de volumes, que já se tornava fastidiosa, consideremos a volta para casa no seu aspecto mais trivial e mais diretamente ligado à vida cotidiana. Servindo-nos do mesmo método negativo adotado para descobrir a utilidade social da casa, perguntemos o que é que o homem gasta na rua e que precisa ser restaurado em casa. Na rua, no emprego, no convívio com os companheiros de trabalho, o homem se fragmenta em funções. Aqui é o passageiro, logo adiante o pedestre, mais tarde o dentista ou o carpinteiro. Acidentalmente, num encontro de esquina, é um ex-colega; nas bancadas é um companheiro; no barbeiro, um freguês; no médico, uma ficha. Visto do alto de uma sacada ditatorial, ele torna-se um infinitésimo átomo social, uma célula, entre milhões, desse monstro informe e fluido, que hoje tem o nome de povo.
Na rua, na função, o homem espalha a sua própria substância, gasta-se no que é, aflige-se em sua unidade, sofre em sua liberdade; em casa, todas as funções sociais, as maiores e as menores, ficam no capacho da entrada, e o homem que chega, que toma posse de seus domínios, é um homem inteiro e livre. Em casa ele recupera, com o chinelo, a personalidade e o nome de batismo. E ele precisa de todas essas coisas para elaborar o fermento da amizade capaz de levedar uma cidade verdadeiramente humana.
E aí está, completo, o ciclo dos dias e das noites, o ritmo em dois tempos, que é a dança da vida e do amor, e que é também o ritmo dos peregrinos. A casa é portanto o lugar onde o homem se torna o que é. A casa é portanto uma clausura para aumento de liberdade e reconquista da unidade. E daí eu tiro conseqüências sobre a natureza do material e sobre a divisão das salas e dos quartos”.
Tiro muitas outras conseqüências e lembro, como já disse em artigo anterior, que a casa tem que ser feita como um porto seguro, como um abrigo, como um esconderijo. E volto a uma citação com o trecho seguinte, com que hoje arremato o artigo:
“As crianças também gostam de brincar de esconder, mas quando são encontradas no perigoso esconderijo, correm a se abrigar no pique que muitas vezes é o regaço da mãe. Ora, a casa, mais uma vez, se relaciona com todos os fenômenos que passam à maioria dos arquitetos e filósofos. É o lugar certo de se esconder. É um pique. É também um regaço. É ainda a cela murada para a santificação. O abrigo do nu, como extensão de uma veste, ou então, se quiserem, a veste é uma casa que o homem carrega, como um caracol.
A cidade que não tenha casas para todos os seus habitantes ou não tenha meios de transportes para facilitar a volta; ou cujos habitantes se espalham pelas ruas porque não amam suas casas, ou não voltam porque não querem voltar; ou não se revoltam somente porque não sabem, ou não querem saber, que estão diminuídos, frustrados, ofendidos; ou ainda por cima se alegram por não poderem voltar para casa, e logo que voltam e engolem um sanduíche reviravoltam para a rua, porque não têm como ficar em casa, não sabem ficar em casa, não sabem o que é casa, não sabem mais o que são eles mesmos — essa cidade não é uma cidade de homens livres; é um ajuntamento de escravos.
O Globo, 10/01/1976.