I — O Amor Pureza: João Batista e João Evangelista
Por dois modos distintos a Graça de Deus nos é manifestada, segundo vemos nos exemplos tirados das Escrituras ou da história da Igreja, ou ainda da vida dos Santos e de outros fiéis servos de Deus. Encontramo-los entre os Apóstolos do Senhor, representados pelas duas figuras mais significativas daquela pequena comunidade privilegiada: S. Pedro e S. João. S. João é o Santo da Pureza e S. Pedro é o Santo do Amor. Não que amor e pureza se possam separar; não, pois, como se um Santo não tivesse em si e desde logo todas as virtudes; não como se S. Pedro não fosse tão puro pelo muito que amava ou S. João amasse menos pela sua pureza. As Graças do Espírito não podem separar-se uma das outras; uma implica todas as outras o que é o amor senão um comprazimento, uma entrega total do homem a Deus? O que é a impureza, por outro lado, senão o tomar de alguma coisa deste mundo, algo de pecaminoso, para objeto das nossas paixões, em lugar de Deus? O que é, senão um deliberado voltar costas da criatura em face do seu Criador, e uma procura insaciável de prazer não na transbordada presença de alegria, de luz e de santidade, senão à sombra da morte? Portanto, o homem impuro não pode amar Deus; e aqueles que secos se tornaram de amor não podem realmente ser puros; em qualquer objeto havemos de fixar os nossos afetos, e nisso havemos de achar contentamento; ora, não podemos pôr a nossa alegria em dois objetos, tal como não podemos servir a dois Senhores, que um ao outro sejam contrários. Muito menos ainda, pode o Santo ser imperfeito na pureza ou no amor, porque não será este, fogo claro e límpido, se a substância que o alimente não for inalterável e puríssima.
Porém, certo que assim é, o é igualmente que as obras espirituais de Deus se mostram aos nossos olhos de modo diverso, e que os Santos revelam no seu caráter e nas suas vidas, uns, esta virtude mais do que as outras, outros, aquela mais do que quaisquer. Por outras palavras, é do agrado daquele que tem o poder de dispensar todas as graças, conferir-lhes certos dons especiais para Sua glória, que iluminam e embelezam uma porção ou parte da sua alma, de maneira a colocar na sobra as suas outras abundantes virtudes. E então essa graça torna-se como que o sinal e assume especial relevo aos nossos olhos, de maneira que o que eles possuem para além dela, nós o consideramos nela incluído ou dela dependente; é como se mais não tivessem, embora tudo possuam; e assim lhes buscamos títulos distintivos ou os pintamos com a cor e a tonalidade dessa graça particular que lhes é com tal relevo própria. E neste sentido podemos falar, como tenciono faze-lo a seguir, de duas categorias principais de Santos, cujos símbolos são o lírio e a rosa: alvo e casto um da pureza dos anjos, abrasado o outro pelo amor de Deus.
Os dois personagens do mesmo nome, João, surgem os grandes exemplos da vida angélica. Quem poderemos, meus irmãos, imaginar possuídos de tal grandeza e de tão severa santidade como S. João Batista? Foi-lhe dado um privilégio que quase iguala a prerrogativa da Bem-Aventurada Mãe de Deus; porque se ela foi concebida sem pecado, ele sem mancha nasceu. Ela era toda pureza e toda santidade, e nada havia o pecado com ela; S. João, porém, nos primeiros dias da sua existência foi ainda cúmplice da maldição do nosso primeiro pai; sob a ira de Deus, privado da graça que Adão recebera, e que é a perfeição da natureza humana. No entanto, assim que Cristo seu Senhor e Salvador se fez carne, e Maria saudou Isabel, a mãe de João, logo a Graça de Deus baixou sobre ele e o pecado original se apagou em sua alma. É por isso que celebramos a natividade de S. João; ora, a Igreja não celebra o que não é santo; não celebra, por exemplo, a natividade de S. Pedro ou de S. Paulo, ou de Sto. Agostinho, ou S. Gregório, ou S. Bernardo ou S. Luís, nem a de qualquer Santo, por mais glorioso, porque todos nasceram em pecado. Celebra, sim, a sua conversão, os seus privilégios, o seu martírio, a sua morte, a sua trasladação, mas nunca o seu nascimento, porque em nenhum caso foi santo. A Igreja comemora, pois, três natividades apenas, a do Senhor, a de Sua Mãe e por fim a de S. João Batista, distinguindo-o acima de todos os profetas e pregadores que jamais, por muitos santos, viveram, salvo, talvez, o profeta Jeremias! E tal como o seu começo, assim o curso da sua vida. Foi transportado pelo Espírito do deserto, e ali viveu, nutrindo-se dos alimentos mais pobres, vestindo as roupas mais grosseiras, açoitando-se numa caverna de animais selvagens, longe dos homens, durante trinta anos, uma vida de morte e de meditação, até que foi chamado a pregar o arrependimento, a anunciar a vinda de Cristo e a ser o ministro do Seu batismo. Uma vez cumprida a sua missão, e não havendo deixado qualquer resto de pecado, foi posto de lado como um instrumento que já não serve, e na masmorra o seu corpo definhou até que, súbito, a espada do carrasco o trespassou para a vida eterna. Santidade, eis que a qualidade, a idéia com que a sua vida nos surpreende no seu começo no seu fim; o mais maravilhoso dos Santos, um eremita desde a infância, pregador depois a um povo decaído, e mártir finalmente. De certo tal vida encheu bem a expectativa que a voz de Maria anunciara a seu respeito antes ainda que nascesse.
Porém, ainda mais bela, e quase tamanha, é a imagem do seu homônimo o grande Apóstolo, evangelista e profeta da Igreja, que muito cedo veio juntar-se aos amigos escolhidos do Senhor e que por muito tempo lhes sobreviveu. Podemos contempla-lo na sua juventude e na sua velhice; e toda a sua vida, de extremo, é percorrida por este dom inefável da pureza. É o Apóstolo virgem, por isso tão amado do seu Senhor, “o discípulo que Jesus amou” e que reclinava a cabeça em Seu Peito, e que recebeu em sua casa a Mãe de Jesus, segundo desejo manifesto por seu filho na cruz, que teve a visão de todos os pródigios que haviam de vir ao mundo no fim dos tempos.
“Digno de muito louvor”, diz a Igreja, “é o Bem-Aventurado João, que, durante a Ceia, se reclinou no seio do Senhor, a quem Cristo na cruz entregou uma virgem, Sua Mãe sempre virgem. Foi escolhido casto e sem mancha pelo Senhor, e mais amado do que os outros. A semente particular da castidade fecundou-o para um amor mais profundo, porque, havendo sido escolhido virgem pelo Senhor, como tal permaneceu toda a sua vida”.
Ele fora quem, na sua juventude, se mostrara tão pronto a beber com Cristo o Seu cálice, que viveu durante muito tempo como um estranho desolado numa terra estrangeira, que foi levado para Roma e mergulhado em óleo fervente e depois banido para uma ilha distante até que a conta dos seus dias se fechou.
É para nós impossível imaginar a santidade destes dois grandes servos de Deus, tão diferente a sua história, a sua vida e a sua morte, convergindo contudo no seu abandono do mundo, na sua serenidade, na sua liberdade em face do pecado. Nenhuma culpa mortal jamais os tocou; e podemos crer que mesmo isentos foram do pecado venial e voluntário; é impossível, mesmo, que nenhuma ocasião mais propícia ou momento de maior tentação tenha achado neles resposta do pecado. A rebeldia da razão, o capricho dos sentimentos, a desordem da inteligência, a febre da paixão, a traição dos sentidos, tudo lhes era sujeito pela onipotente graça de Deus. Viveram num mundo à sua imagem, uniforme, sereno, aceito, entre visões de paz inefável e perfeita, em comunhão com os Céus, numa antecipação da Glória; e se falavam ao mundo pregadores ou confessores, a sua voz vinha como que de um Santuário, não se misturando com ele mesmo quando a ele se dirigiam, como “uma voz que clama no deserto” ou “no Espírito do Dia do Senhor”. E, assim, nós falamos neles mais como modelos de santidade do que de amor, porque o amor diz respeito a um só objeto externo, para o qual conflui e se esforça; e no entanto, porque eles eram tão íntimos do objeto amado, foi-lhes dado recebe-lo nos seus corações não precisavam de amar o céu, porque já eram o céu, não lhes era mister ver a luz, porque luz eram eles, e viveram entre os homens como aqueles anjos de outrora que vieram ter com os patriarcas e lhes falaram como se fossem eles o próprio Deus, porque Deus estava neles, e por eles falava. Assim estes dois servos do Senhor estavam tão absortos da divindade que mereceram viver a vida angélica, tanto quanto possível ao homem viver, sereníssimos e cheios de doçura, tão acima da tristeza e do medo, da desilusão e do pesar, do desejo e da aversão, até se tornarem na imagem mais perfeita que a terra já contemplou da paz e da serena imutabilidade de Deus. Assim são os muitos Santos que sempre guardaram a sua virgindade e que a história registra para a nossa veneração, como S. José, o grande Sto. Antônio, Sta. Cecília, que foi visitada pelos Anjos, S. Nicolau de Bari, S. Pedro Celestino, Sta. Rosa de Viterbo, Sta. Catarina de Sena e uma multidão de muitos outros, e acima de todos a Virgem das Virgens, a Rainha das Virgens, a Bem-Aventurada Maria que, tão cheia e transbordante da graça do amor, contudo, porque ela é “o trono da sabedoria e a “arca da aliança”, é sobretudo representada sob o sinal do lírio mais ainda que da rosa...
II — O AMOR PENITENTE: PEDRO E PAULO
Mas agora, meus irmãos, voltemo-nos para a outra categoria dos Santos. Tenho falado daqueles, que, de um modo admirável e algumas vezes miraculoso, foram defendidos do pecado e conduzidos de degrau em degrau, graça após graça, desde a juventude até a morte; mas agora suponhamos que Deus quis derramar a luz e o poder do Seu Espírito sobre aqueles que mal empregaram o seu auxílio, e que em si deixaram secar a graça que lhes fora dada, ficando por isso à mercê de uma multidão de demônios de que tiveram que libertar-se, que vivem sob o jugo de hábitos obstinados, de paixões complacentes e de falsas opiniões: que serviram Satanás, não como crianças antes do batismo, mas segundo o seu querer e a sua razão, com as suas faculdades inteiramente responsáveis, de corações lúcidos e vivos. Reconduziria o Senhor estas almas a si, independentemente delas ou mediante o seu querer? Transformá-los-á com o Seu Verbo que os formou, e os fará morrer, e os ressuscitará, e entrará nas suas almas, e se dirigirá a elas para as persuadir e para as ganhar? Sem dúvida que poderia compeli-las, constrange-las, uma vez que é o Senhor absoluto. Poderia por uma santa violência forçar a Sua entrada e neles modelar depois a estatura da Santidade; poderia substituir qualquer processo de conversão e fazer nascer das pedras filhos de Abraão. Mas o Senhor quis que as coisas fossem de outro modo; senão por que se teria Ele próprio manifestado sobre a terra? Por que se cercou, quando da sua vinda, de tantos sinais sensíveis, persuasivos e irrecusáveis? Por que mandou os Seus Anjos anunciar que Ele seria encontrado como um menino numa manjedoura, ao peito de uma Virgem, em Belém? Por que andou espalhando o bem por toda a parte por onde passava? Por que morreu em público, à face do mundo, com sua Mãe junto de Si, e o discípulo amado? Por que nos diz agora que é glorificado nos céus com uma multidão de santos que são os nossos intercessores junto do Seu trono? Por que veio até nós mediante a maternidade de uma Virgem a mais perfeita imagem depois de Si, de tudo o que tem o sabor da beleza, da ternura, da delicadeza e da serenidade no mundo dos homens? Por que se manifesta, por uma muito misteriosa e inefável condescendência, sobre os nossos Altares fazendo-se pequenino e humilde. Ele que é o Senhor dos Céus e da Terra? O que quer tudo isto dizer senão que, quando as almas andam longe e dispersas, Ele as chama por meio de elas próprias, “por cordas humanas”, segundo a nossa natureza, como diz o profeta, conquistando-nos de fato segundo o Seu desejo, salvando-nos a despeito de nós próprios e contudo mediante a nossa cooperação, para que as razões e os afetos do velho Adão que haviam sido “as armas da justiça para Deus”?
Sim, meus irmãos, sem dúvida Ele nos puxa a Si “por cordas humanas”, e o que são estas cordas senão, como diz o profeta no mesmo versículo, “os enleios” ou “os fios do amor”? É a manifestação da glória de Deus na face de Jesus Cristo; é a visão dos atributos e das glórias e das perfeições do Senhor onipotente; é o esplendor da Sua santidade, a doçura da Sua misericórdia, a claridade do Seu Reino, a majestade da Sua lei, a harmonia da Sua Providência, a música mágica da Sua voz, d’Ele que é antagônico da carne e o campeão da alma contra o demônio e o mundo. Tu me seduziste, Senhor, diz o profeta, e eu fui seduzido; Tu és mais forte do que eu, e a Tua força prevaleceu; “lançaste a tua rede com perícia e os seus fios sutis estão enredados em torno de cada afeto do coração, e as suas malhas manifestaram o poder de Deus, fazendo cativa a inteligência para o serviço de Cristo”. Se o mundo tem os seus fascínios, mais os tem o Altar de Deus vivo, se as pompas e as vaidades do mundo encadeiam os olhos, bem maior espanto há de trazer a visão dos Anjos subindo e descendo pela escada erguida entre o céu e a terra; se a vista do mundo embriaga, e os seus encantos enfeitiçam a alma, eis que Maria intercede por nós, e com os seus olhos castos oferece o Filho Eterno à nossa humana ternura, enquanto os cânticos dos querubins se elevam em todas as direções exaltando a graça que n’Ele acham. Será que a esperança de Deus é sem emoção, será que a caridade de Deus é insensível e sem êxtase? “Como são amáveis os teus tabernáculos, Senhor dos Exércitos”, diz o profeta; “a minha alma se regozija e desvanece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se alegram no Deus vivo. Um só dia nos teus átrios melhor é que mil; prefiro ser objeto na casa do meu Deus do que morar nas tendas dos pecadores”. Assim é, como disse o grande penitente e doutor da Igreja, Sto. Agostinho: “Não basta ser conduzido pela vontade, mas também levado pelo sentido da Alegria. O que é que significa ser conduzido assim pelo prazer? Alegra-te na presença do Senhor, Ele te dará o que o teu coração lhe pedir”. Há um certo prazer do coração para o qual doce é o pão dos céus. Além disso, se o poeta disse: “Todos somos levados pelo nosso prazer”, não por necessidade, mas por prazer, não por dever, mas por deleite; quão mais ousado seria dizer que o homem é levado a Cristo, quando a verdade o delicia, e se alegra na perfeição, e se deleita com a justiça e se regozija com a vida eterna, sendo que tudo isso é Cristo? Será que os sentidos são suscetíveis de prazer e a inteligência não? Se assim é, donde vem dizer-se: “Os filhos do homem viverão na esperança ao abrigo das Suas asas; eles se embriagarão com a riqueza da Tua casa, e das fontes da Tua alegria lhes matarás a sede; porque em Ti está a felicidade da vida, e na tua luz veremos a luz”? “Aquele que o Pai chamou, venha até mim”. E a quem chamou o Pai? Aquele que disse: “Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo”. “Estende-se à ovelha um ramo verde e ela vem. O menino apressa-se à vista da fruta que lhe oferecemos; é chamado aquele que come, aquele que corre ao chamamento do amor vem sem que o seu corpo se doa, trazido pelo impulso do seu coração”. Se então é verdade que a contemplação das delícias do mundo atraem aquele que ama, será que Cristo nos não seduz a nós quando revelado pelo Pai? Que mais do que a verdade atrai o espírito do homem? A alma anseia por descansar à sombra da sua paz.
Estes são os meios de que Deus se serve para fazer um Santo de um pecador. Toma-o tal qual é, usa-o contra si próprio. Canaliza as suas afeições e purifica o amor carnal inspirando-lhe a caridade sobrenatural. Não como se se tratasse de uma simples criatura irracional, compelido por instintos e condicionada por estímulos externos, sem vontade própria, e para quem um prazer é igual a qualquer outro, da mesma espécie, só que de intensidade diferente. Já afirmei que faz parte do glorioso plano da Sua graça que ele venha ao coração do homem e o persuada e nele prevaleça, ao mesmo tempo que nele opera um nascimento de novo. Não despreza em nada a natureza original a que o ordenou; trata-o como homem e deixa-lhe o poder de agir de uma ou de outra maneira. Apela para todos os seus poderes e faculdades, para a sua razão, para a sua prudência, para a sua consciência moral. Acorda o seu temor e desperta a sua ânsia de amar. Esclarece-o sobre a perversidade do pecado, ao mesmo tempo que sobre a misericórdia de Deus; mas ainda e em resumo, o princípio animador da nova vida, que o ilumina e o sustém, é o fogo da caridade. Só a ela é suficientemente forte para destruir o homem velho, para dissolver a tirania dos hábitos, para consumir a malícia da concupiscência e para queimar as sólidas raízes do orgulho.
E desta maneira o amor surge-nos como a graça que distingue aqueles que eram pecadores antes de serem Santos; não que o amor não seja a vida de todos os Santos, daqueles que nunca precisaram de converter-se, como a Santíssima Virgem, S. João Batista ou o Apóstolo S. João, e de todos aqueles, muitos, que são as primícias de Deus e do Cordeiro; porém, enquanto que naqueles que nunca pecaram esse amor é contemplativo ao ponto de se identificar com a Santidade do próprio Deus, naqueles em quem Ele se estabelece como princípio da convalescença e de recuperação, vem com tal força e potencial de devoção de entrega, de disponibilidade, de cuidado e de zelo, de atividade e de boas obras, que chega para conferir um caráter visível às suas vidas, e permanece aos nossos olhos associado à idéia que deles fazemos.
Era assim o Grande Apóstolo, sobre que a Igreja está construída, e que eu coloquei no princípio em contraste com o seu companheiro S. João; se o contemplarmos depois da sua primeira chamada, ou durante o seu arrependimento, ele, que entre todos os Apóstolos foi que negou o Senhor, veremos que é o que mais se distingue pelo seu Amor por Ele. Foi por este amor de Cristo, que fluía da sua impetuosidade e exuberância para o amor dos irmãos, que ele foi escolhido para ser o principal Pastor do rebanho. “Simão, filho de João, amas-me mais do que os outros?” A prova foi-lhe feita pelo Senhor; e a recompensa foi: “apascenta as minhas ovelhas”. E é maravilhoso que o Apóstolo que Jesus amava tenha sido assim ultrapassado no seu amor a Jesus por um irmão que não era virgem como ele; porque não foi a João que Jesus fez esta pergunta nem foi ele quem assim respondeu, mas Pedro.
Reparemos numa passagem anterior da mesma narrativa; aí também os dois Apóstolos aparecem do mesmo modo contrastados nos seus caracteres. Assim, quando estavam no barco e o Senhor lhes falou da praia, e “eles não sabiam que era Jesus”, primeiro, “o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: é o Senhor”; e logo “Simão Pedro cingiu a sua túnica e lançou-se ao mar” para chegar mais depressa ao pé de Jesus. São João contempla e São Pedro age.
Portanto, à vista de Jesus o coração de Pedro ilumina-se e logo se lança após Ele; assim também, uma vez, quando viu o seu Senhor caminhando sobre as águas, o seu primeiro impulso foi, como mais tarde, saltar do barco e precipitar-se ao seu encontro: “Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. E quando caiu no seu grande pecado, foi o próprio olhar de Jesus que o fez vir a si: “E o Senhor voltou-se e olhou para Pedro; e Pedro lembrou-se da Palavra do Senhor, e saindo chorou amargamente”. Por isso, noutra ocasião, quando muitos dos discípulos abandonaram o Senhor, e Jesus perguntou aos doze: “Também quereis ir?” S. Pedro respondeu: “Senhor para quem haveríamos de ir? Só tu tens as palavras da vida eterna e nós acreditamos e sabemos que Tu és o Cristo, o Filho de Deus”.
Assim também era aquele outro Grande Apóstolo, que, de muitas maneiras, costuma ser associado a S. Pedro, o Doutor dos Gentios. Quando do milagre da sua conversão o Senhor lhe apareceu na estrada de Damasco para onde ele se dirigia com a intenção de condenar à morte os cristãos — que nos diz ele? “Se somos loucos, é para Deus que somos; se somos sensatos é para vós; porque o amor de Cristo nos compele. Assim, que se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo”. E ainda: “Estou crucificado com Cristo, já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim; e ainda que na carne, vivo pela fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”. E ainda: “Sou o último dos Apóstolos, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela Sua graça sou o que sou; e ela não foi vã em mim, antes trabalhei mais abundantemente do que eles, não eu, contudo, mas a Graça de Deus comigo”. E ainda, noutra passagem: “Se vivemos, no Senhor vivemos; se morremos é no Senhor que morremos; quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor”. Vemos, meus irmãos, o caráter do Amor de S. Paulo; um amor fervoroso, ávido, enérgico, dinâmico, cheio de grandes obras, “forte como a morte” como diz o Rei Sábio, uma chama que “muitas águas não podiam esconder, nem os regatos afogar”, que permaneceu fiel até ao fim, quando pôde dizer: “Combati o bom combate, cheguei ao fim da corrida, guardei a fé; daqui em diante está-me reservada a coroa da justiça que o Senhor me dará naquele dia, o Justo Juiz”.
III — O AMOR PENITENTE: MARIA MADALENA
E há um terceiro, meus irmãos, há um ilustre terceiro, nas Escrituras, que devemos associar a estes dois Grandes Apóstolos quando falamos dos Santos, da penitência e do Amor. Quem havida de ser senão Madalena, a cheia de amor? Quem é exemplo mais perfeito do que busco mostrar-vos, senão “a mulher que era pecadora” que lavou os pés do Senhor com as suas lágrimas, os enxugou com os seus cabelos e os ungiu de perfumes precioso? E que circunstância para um tal ato de amor? Ela que havia chegado, trazida por um propósito exclusivamente profano, realiza um ato de tão perfeito arrependimento. Era um banquete como tantos outros, dado por um rico fariseu, para homenagear, e, contudo, para experimentar o Senhor. Madalena chegou, linda e jovem, “alegre da sua juventude”, “caminhando nas vias do seu coração e no deleite dos seus olhos”, chegou como um adorno para aquela festa, como era hábito as mulheres fazerem naquele tempo, para ungir com seus perfumes inebriantes e frescos a fronte dos cabelos dos convidados. E o orgulhoso fariseu suportava a sua presença desde que soubesse guardar as distâncias; que viesse, sim, como podemos deixar que qualquer animal da casa entre nos nossos quartos, sem lhe darmos atenção; suportava-a como simples decoração necessária ao banquete, mas como se ela não tivesse uma alma, ou fosse sem préstimo e destinada à perdição. Ele e os seus irmãos, no seu orgulho, seriam talvez capazes de galgar terras e mares para fazer um prosélito, mas quanto a escutar o seu coração, a condoer-se do seu pecado, a consola-lo, isso não entrava já no âmbito dos seus pensamentos. Não, o que lhe interessava realmente eram as necessidades do seu banquete, e por isso a deixou entrar, cumprir a sua tarefa, indiferente ao que era a sua vida, desde que devidamente a cumprisse e a isso se limitasse. Porém, eis que aos olhos de Madalena surge uma súbita e maravilhosa visão! Teria sido uma inspiração do momento ou uma decisão amadurecida? Eis que aquela pobre filha do pecado, ataviada de cores garridas, se aproxima para coroar com um perfume suave a cabeça d’Aquele a quem a festa era dedicada; porém, a sua mão se deteve. Ela olha e reconhece o Ancião dos Dias, o Senhor da Vida e da morte, o seu Juiz; e volta a olhar e vê na Sua face e na Sua expressão uma beleza e uma doçura terrível, serena e grandiosa, incomparável com a dos filhos dos homens que sombreavam o esplendor da sala do banquete. Olha uma vez ainda, tímida e sedenta, e no seu olhar presente, e no seu sorriso, descobre uma bondade feita de amor, de ternura, de compaixão e de misericórdia. Olha para si mesma e sente-se vazia e hedionda, como vazios e hediondos eram agora os seus atrativos; a sua graciosidade e frescura, mesmo a sua beleza louvada de boca em boca pelos seus admiradores, parecem subitamente murchas e ressequidas; o seu hálito, que até então julgara perfumado e cujo sabor era conhecido daqueles sete espíritos que nela haviam morado, tornou-se repugnante! Ali se detivera, ali se sumira, cheia de confusão, e no seu desespero, se não tivesse lançado um olhar ainda para aquele Rosto, expressão absoluta de perdão e de amor. O Senhor olha-a; é o Pastor que olha a ovelha perdida; e a ovelha perdida se rende, e agacha-se e se aconchega aos pés do seu Pastor. Ele nada diz, porém olha-a; e ela aproxima-se mais. E os Anjos se regozijam porque ela se aproxima, cega para tudo o que não seja o seu Senhor, esquecendo o desprezo dos orgulhosos, e o riso maldoso dos convivas. Ela vem saber se será salva, se será recebida ou o que dela será; sabendo só que Ele é a Fonte do bem e da verdade e da misericórdia; e para quem havia de ir senão para Aquele que tem as palavras da vida eterna? “Israel, Israel, a ti mesmo te destruíste; em mim, porém, está a salvação, volta para mim que não te voltarei o meu rosto; porque sou santo e a minha cólera não permanecerá para sempre”. “Eis que para ti vamos, porque tu és o Senhor nosso Deus. Verdadeiramente falsas são as colinas e a multidão das montanhas; verdadeiramente o Senhor nosso Deus é a salvação de Israel”. Extraordinário encontro entre o que era mais vil e o que havia de mais puro! Aquelas mãos lascivas, aqueles lábio poluídos, tocarem, beijarem os pés do Eterno. E Ele não evitou a humilde homenagem. E quando, debruçada sobre eles, umedecendo-os com os seus olhos abundantes de lágrimas, o seu amor simples refrescou, cresceu abundante nela, acendendo uma chama que nunca mais havia de declinar desde aquele momento e para sempre! E que escândalo quando o Senhor manifestou diante de todos os homens o seu perdão e a causa do perdão! “Muitos pecados lhe são perdoados pelo muito que amou, mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco se ama”. Depois disse-lhe: “os teus pecados te são perdoados; a tua fé te salvou, vai em paz”.
Desde aquele momento, meus irmãos, o amor tornou-se para ela, como para Sto. Agostinho e mais tarde para Sto. Inácio (grandes penitentes de sua época) como uma fenda na alma, uma ferida aberta ao amor, que o amor rasga numa doçura quase dolorosa. Ela não podia viver longe da presença d’Aquele em que pusera a sua alegria; e o seu espírito era saudoso d’Ele, quando O não via; e seguia-O em silêncio, humilde e ansiosa quando estava na Sua bendita Presença. Vemo-la noutra ocasião, sentada aos Seus pés, ouvindo as Suas palavras; e Ele testemunhou-lhe que ela havia escolhido a melhor parte que lhe não seria tirada. E, depois da Sua ressurreição, foi ela que, pela sua perseverança, mereceu vê-lO antes ainda dos Apóstolos. Não abandonou o sepulcro, quando Pedro e João se retiraram; mas ali ficou chorando e, quando o Senhor lhe apareceu e ela o olhou sem o reconhecer, perguntou muito triste àquele que ela supunha ser o jardineiro: “se o levaste dizei-me para onde, e eu irei busca-lo”. E quando, por fim, o Senhor se deu a conhecer, ela voltou-se e correu a lançar-se-lhe aos pés, como no princípio; porém, como que para experimentar a obediência do seu amor, Ele a deteve, dizendo: “Não me toques porque ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes que eu subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus”. E assim ficou só, suspirando pelo tempo em que voltaria a vê-lO e a ouvir a Sua voz e a alegrar-se no Seu sorriso e ser deixada servi-lO para sempre.
Esta é, pois, a segunda grande classe dos Santos, em contraste com a primeira. O amor é a vida de ambas; porém, enquanto o amor do inocente é calmo e sereno, o amor do penitente é ardente e impetuoso, geralmente comprometido no combate com o mundo ativo nas boas obras. E este é o amor que vós, meus irmãos, deveis possuir segundo a vossa medida, se quiserdes ter uma sólida esperança de salvação. Porque fostes pecadores; quer por um desprezo ativo e voluntário, quer por uma secreta transgressão, quer por indiferença, quer por qualquer mau hábito permitido, quer por terdes posto o vosso coração em qualquer objeto deste mundo, e terdes feito a vossa em vez da vontade de Deus. Penso, posso dize-lo, que precisastes ou precisais de vos reconciliar com Ele. Tivestes ou tendes necessidade de ser levados até junto d’Ele, e lavardes no Seu Sangue os vossos pecados e deles receberdes o perdão. Que significa para vós isso, senão que vos é mister arrepender-vos? E o que é o arrependimento sem o amor? Não digo que haveis de sentir o mesmo amor que os santos possuíram para que sejais perdoados, o amor de S. Pedro ou de Sta. Maria Madalena; mas mesmo assim sem a vossa parte nessa Graça sobrenatural, a vossa condição será bem precária e insegura. As vossas obras de penitência devem proceder de uma chama viva de caridade. Se fordes perseverantes até o fim, sê-lo-eis em virtude de uma contínua oração de amor, de fé e de obediência. Àquele que é o Alfa e o ômega, o princípio e o fim. Se tiverdes uma boa esperança de que Ele vos aceitará no fim dos vossos dias, é ainda e só o amor que apaga o pecado. Meus irmãos, nessa hora terrível talvez não possais obter os últimos sacramentos; a morte pode vir de repente quando estiverdes longe de um sacerdote. Podeis ser abandonados a vós próprios, à vossa própria compunção, ao vosso arrependimento; à vossa decisão de vos emendardes. Podeis ter estado semanas e semanas longe de qualquer auxílio espiritual; podereis ter que ir ao encontro do vosso Deus sem a salvaguarda, o consolo, a mediação de qualquer rito sagrado; e nesse caso, o que vos poderá salvar senão a presença da “caridade divina derramada no coração pelo Espírito Santo que nos foi dado”? Nesse momento, nada que não seja sólido hábito de caridade que nos preservou de pecado mortal, ou um poderoso ato de caridade capaz de o apagar, nos aproveitará de alguma coisa. Nada a não ser a caridade vos pode permitir uma vida feliz e uma morte feliz. Como podeis suportar o sono da noite, como podeis suportar partir para qualquer viagem, como podeis suportar a presença da peste ou o ataque de qualquer indisposição por mais ligeira, ou a doença, se precavidos não estiverdes com o amor, o único capaz de defender-vos no momento da terrível mudança, que sobre vós sobrevirá algum dia, embora como ou quando não saibais.
Ah! Como vos apresentareis diante do trono de Cristo, com os sentimentos imperfeitos e confusos que agora vos contentam, com uma certa fé, uma confiança relativa e temor hesitante dos Juízos de Deus, mas sem a autêntica substância da alegria, sem um comprazimento real na sua vontade, nos seus atributos, nos seus mandamentos, no seu serviço, que os Santos possuíam com tal plenitude; e só eles podem conferir à alma o título seguro dos méritos da Sua Paixão e Morte.
Que diferente é o sentimento com que a alma transbordante de amor, uma vez separada do corpo, corre ao encontro de Cristo! Ela sabe quão tamanha é a dívida de castigo que impende sobre ela, embora há muitos anos se haja reconciliado com o Seu Senhor, e espera o purgatório, sabe que não pode senão espera-lo como a dor contígua à alegria eterna. Mas ver a Sua face mesmo por um momento! Ouvir a Sua voz, ouvi-lO falar, mesmo que venha depois o esperado castigo! Ó Salvador dos homens, venho a Ti, mesmo que logo seja expulso da Tua presença; venho a Ti que és a minha vida e tudo quanto tenho, venho a Ti que és a imagem viva que encheu o tempo da minha vida. A Ti me dei quando pela primeira vez tive que tomar parte no mundo; desde muito cedo Te procurei, desde cedo me ensinaste que o bem fora de Ti não era. Quem tenho eu no céu senão Tu? Quem desejei na terra, quem tive no mundo além de Ti? Quem estará comigo no meio da angústia e da saudade de não ver-Te? Sim, embora desça agora à terra deserta, crestada e sedente, “não temerei qualquer mal porque Tu estás comigo”. Hoje Te vi face a face e isso me basta; vi-Te Senhor e esse olhar para Ti é suficiente para um século de sofrimento na terra inferior. Será meu alimento ter-Te olhado conquanto não Te veja agora, até que volte a ver-Te, para nunca mais me separar de Ti. Ter-Te olhado será o sol límpido e o conforto da minha alma lânguida e cansada; a Tua voz é a música eterna nos meus ouvidos. Nada me pode fazer mal, nada me pode perturbar; sofrerei os anos marcados, até que o meu fim chegue, com coragem e mansidão. Levantarei o meu canto num Confiteor, Senhor a Ti e aos Teus Santos, naquele vale de inquietas sombras; a Deus onipotente é à Bem-Aventurada sempre Virgem Maria, Tua Mãe e minha, concebida sem pecado, e ao Bem-Aventurado Miguel Arcanjo, criado na sua pureza pela Mãe de Deus, e ao Bem-Aventurado João Batista santificado desde o ventre de sua mãe; e depois destes três aos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, penitentes, que eram compassivos para com os pecadores segundo a sua própria experiência do pecado; a todos os santos quer tenham vivido em contemplação ou em árduos trabalhos, durante os dias da sua peregrinação, dirigirei as minhas súplicas, rogando-lhes que “se lembrem de mim e que por mim roguem e de mim façam menção junto do Rei, para que Ele me liberte deste cativeiro”. E por fim, “Deus enxugará cada lágrima dos meus olhos, e não haverá mais morte, nem mais luto, nem choro, nem dor nunca mais, por que as coisas antigas já passaram”.
(REVISTA PERMANÊNCIA, nos. 46-49, Agosto-Novembro de 1972).