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Os sofrimentos morais de Nosso Senhor durante a Paixão

Não há passagem da vida de Nosso Senhor que não seja de profundidade imensa e que não proponha à meditação matéria inesgotável. Tudo que lhe diz respeito é infinito; e o que à primeira vista divisamos não é mais que a superfície do que começa na eternidade e na eternidade acaba. Seria pois temerário, para quem não é santo nem doutor, querer comentar os seus atos e as suas palavras a não ser por via da meditação. Mas a meditação e a oração mental são tão necessárias aos que desejam alimentar em si a fé e o amor verdadeiros, que nos será sem dúvida permitido, caros irmãos, deter aqui nossa atenção, e, tomando por guia os santos que nos precederam na tarefa, discorrer sobre temas que na verdade mais convidam à adoração do que ao exame.

Certos tempos do ano — e o da Semana Santa em particular — convidam-nos a estudar com minúcia, e o mais perto possível, as passagens mais sagradas da história evangélica. Prefiro correr o risco de trata-las de modo insuficiente ou convencional, do que furtar-me à sugestão desse tempo sagrado. Vou hoje, portanto, voltar vossas atenções, segundo o piedoso costume da Igreja, para um tema que faria recuar a muitos pregadores — mas que convém particularmente a esses dias, e no qual sem dúvida muitos jamais pensaram: os sofrimentos padecidos por Nosso Senhor na sua alma sem mancha.
 
Bem sabeis, caros irmãos, que Nosso Senhor, posto que fosse Deus, era também, perfeitamente, homem; que tinha portanto não somente um corpo, mas uma alma igual à nossa, embora isenta de toda mancha. Não revestiu um corpo sem alma — Deus seja louvado! — pois isso não teria sido tornar-se homem. Como teria santificado a nossa natureza, se não a tivesse, na verdade, assumido? O homem destituído de alma estaria no nível dos animais do campo; mas Nosso Senhor vinha salvar uma raça capaz de obedecer-lhe e glorificá-lo, dotada de imortalidade, ainda que privada da esperança de uma eterna felicidade.
 
O homem foi criado à imagem de Deus e essa imagem se encontra na alma; quando pois o seu Criador, por uma condescendência inexprimível, quis se revestir da natureza humana, tomou uma alma a fim de tomar um corpo; a fim de se unir a um corpo: tomou primeiro uma alma, depois o corpo de um homem. Tomou os dois ao mesmo tempo, mas nessa ordem: alma primeiro e corpo depois. Criou ele próprio a alma que tomou; mas o corpo, tomou-o da sagrada carne de sua Mãe, a Virgem.
 
Tornou-se, portanto, perfeitamente homem, com corpo e alma. E assim como tomou um corpo de carne e de nervos sujeito ao sofrimento e à morte, tomou uma alma capaz de experimentar não só aqueles sofrimentos físicos, mas também os que não são próprios dela. Sua missão expiatória não foi apenas sofrida no seu corpo; ela o foi também — pensemos! — em sua alma, na sua alma de homem.
 
Nos dias solenes que vão seguir, seremos especialmente chamados, caros irmãos, a considerar os seus sofrimentos corporais, sua prisão, suas idas e vindas de um lugar a outro; suas pancadas, suas feridas, sua flagelação; os espinhos, a cruz, os cravos... Todas essas coisas estão resumidas para nós no crucifixo, todas a um só tempo se acham representadas na carne sagrada que pende diante dos nossos olhos: a sua meditação se torna fácil. Não acontece o mesmo com os sofrimentos de sua alma. Não poderão ser pintados aos nossos olhos, não poderão ser devidamente sondados; pois excedem ao mesmo tempo os sentidos e o pensamento, posto que tenham precedido os seus sofrimentos corpóreos. A agonia — sofrimento da alma e não do corpo — foi o primeiro ato do seu terrível sacrifício, “Minha alma está triste até a morte”, disse ele. Sim se ele sofreu então no seu corpo, sofreu realmente na sua alma, pois o corpo não faz mais que transmitir o sofrimento à verdadeira sede e recipiente da angústia.
 
Vem muito à propósito insistir nesse ponto. Eu digo que não era o corpo que sofria, mas a alma no corpo; era a alma, e não o corpo, que era a sede dos sofrimentos do Verbo Eterno. Considerai que não pode haver dor real, mesmo quando há aparência de sofrimento, se não existe nenhuma sensibilidade interna, nenhum espírito que possa ser-lhe a sede. A árvore, por exemplo, é dotada de vida, tem órgãos e cresce; pode ser ferida e maltratada, secar e morrer; mas não pode sofrer, pois não tem espírito nem princípio sensível. Ao contrário, onde for encontrado esse princípio imaterial, a dor será possível, e será tanto maior quanto mais perfeito aquele. Se não tivéssemos espírito, seríamos tão insensíveis quanto as árvores; se não tivéssemos alma, sofreríamos apenas como os animais; mas sendo homens, sentimos a dor de um modo mais vivo, como convém aos seres dotados de alma.
 
Os seres vivos são pois mais ou menos sensíveis de acordo com o espírito que se encontra neles; os animais o são muito menos que o homem porque não podem pensar o que sentem: não têm nenhuma inteligência, nenhuma consciência direta  dos seus próprios sofrimentos. O que nos torna a dor tão intolerável, é que não podemos desviar dela o pensamento enquanto a estamos sentindo. Lá está ela, diante de nós, reinando sobre o nosso espírito, atraindo o nosso pensamento como um ímã. Tudo o que dela nos distrai, a alivia e acalma: por isso é que os nossos amigos se esforçam por nos divertir quando sofremos, pois a diversão é justamente uma espécie de distração. Às vezes eles o conseguem, se a dor é leve, e nós deixamos de certo modo de sentir a dor que ainda sofremos. Pela mesma razão freqüentemente acontece nos machucarmos ao praticar algum esforço violento, sem que tenhamos a idéia de ter sentido a dor, comprovada no entanto pelas cicatrizes. Nas rixas e nas batalhas não é a dor geralmente que faz com que os combatentes percebam que estão feridos, mas a perda de sangue.
 
Vou mostrar-vos agora, meus irmãos, como pretendo aplicar essas reflexões aos sofrimentos de Nosso Senhor. Antes, porém, farei uma outra observação. É a seguinte: não há dor que seja por si mesma intolerável; só se torna intolerável por causa da duração. Às vezes a gente exclama que não agüenta mais um minuto, e o paciente procura deter a mão do cirurgião que persiste em fazê-lo sofrer: parece-lhe que já suportou tudo o que podia, como se fosse a continuidade da dor, e não sua intensidade, que a tornasse intolerável. Que significa isto, senão que a lembrança dos momentos de dor que precederam age sobre a dor que segue e, de certo modo, a aviva? Se pudéssemos tomar isoladamente o terceiro, o quarto ou o vigésimo momento da dor, e esquecer a série dos que os precederam, ele não se tornaria mais intenso que o primeiro e seria tão suportável quanto aquele; o que o torna insuportável é ser ele o vigésimo e nele se concentrarem todos os outros: o primeiro, o segundo, o terceiro, até o décimo-nono — cada novo momento de dor aumentando, aumentando sem cessar, com o peso dos anteriores. Daí vem, repito, o fato de que os bichos pareçam geralmente quase insensíveis à dor: é que não são dotados de reflexão nem consciência. Não sabem que existem; não olham para diante nem para trás; o instante que passa é tudo para eles: passeiam à superfície da terra, vendo isto ou aquilo, experimentando prazer ou sofrimento, mas tomam as coisas como vêem e as deixam ir do mesmo modo, tal o homem, em sonhos. Eles têm memória, mas não a dos homens inteligentes, pois não estabelecem relações entre as coisas, incapazes de coordenar as sensações particulares que vão experimentando; nada, além dessas sensações, tem para eles realidade ou substância: um certo número de expressões sucessivas, eis tudo o que eles sentem. E é por isso que não sentem a dor, como várias outras coisas, senão de forma mitigada, a despeito das manifestações exteriores que porventura dão. É o fato de perceber intelectualmente a dor como um todo difuso através de movimentos sucessivos que dá a essa dor sua força e sua particular acuidade. E só a alma, de que está privado o animal, é capaz de tal compreensão.
 
Aplicai agora isso aos sofrimentos de Nosso Senhor. Estais lembrados de que lhe ofereceram vinho com mirra no momento de o crucificarem? Não o quis beber; e por quê? Porque essa bebida ter-lhe-ia entorpecido o espírito, e ele havia decidido experimentar a dor em toda a plenitude. Isto vos revela, meus irmãos, o caráter dos seus sofrimentos: ele os teria voluntariamente evitado, se tal tivesse sido a vontade de seu Pai “Se é possível” — dissera ele — “afastai de mim este cálice”. Mas não sendo possível aquilo, perguntou serenamente ao apóstolo que o queria subtrair ao suplício: “Por que não beberia eu o cálice que meu Pai me quis dar?” Já que devia sofrer, entregava-se ao sofrimento, e não viera para sofrer o menos possível; não se desviou da dor, mas fez-lhe frente: desafiou-a, se posso dizer, a fim de que ela se imprimisse cabalmente nele, em cada instante.
 
E assim como os homens, superiores aos animais, são mais sujeitos à dor por causa do espírito que reside neles e que dá à mesma uma substância; assim Nosso Senhor experimentou a dor no seu corpo com uma consciência — e portanto, com uma vivacidade, uma intensidade e uma unidade de percepção — que nenhum de nós pode sondar, de tal modo sua alma estava plenamente em seu poder, completamente livre de toda distração, inteiramente ligada à dor, absolutamente entregue e submetida ao sofrimento. Pode-se assim dizer que ele sofreu inteiramente sua Paixão, em todos os instantes.
 
Lembrai-vos que o nosso bem-amado Senhor, posto que fosse inteiramente homem, divergia de nós num ponto: havia nele um poder mais alto que a sua alma, que governava a sua alma, pois era Deus. As almas dos outros homens estão submetidas aos desejos, aos sentimentos, aos impulsos, às paixões, às perturbações que lhe são próprias, enquanto a alma de Nosso Senhor não estava submetida senão à sua divina pessoa. Nada chegava à sua alma por efeito súbito do acaso; jamais foi encontrado desprevenido; nada o atingiu sem que ele o tivesse querido. Jamais seu espírito se afligiu, temeu, desejou ou se alegrou, sem que ele tivesse antes querido se afligir, temer, desejar ou alegrar-se. Quando sofremos, é porque os agentes exteriores e as emoções incoercíveis do nosso espírito nos forçam a tal. Sofremos involuntariamente a disciplina da dor; sofremos mais ou menos vivamente, segundo as circunstâncias; nossa paciência é mais ou menos posta à prova, e fazemos o que podemos para aliviar ou extinguir a dor. Somos incapazes de prever em que medida  ela se abaterá sobre nós, nem quanto tempo a poderemos suportar; quando passou, não sabemos dizer ao certo porque sofríamos, nem o que sofríamos, nem porque não suportáramos melhor o nosso fardo.
 
Deu-se o contrário com Nosso Senhor. Sua divina pessoa não estava sujeita, não podia estar sujeita e exposta à influência de suas afeições e sentimentos, a não ser quando o quisesse. Repito que, quando ele queria temer, ele temia; irritava-se quando queria irritar-se; afligia-se quando queria estar aflito. Não estava exposto à emoção, mas expunha-se voluntariamente à influência que o devia comover. Por isso, quando resolveu sofrer os sofrimentos de sua Paixão expiatória, tudo o que ele fez, o fez segundo a expressão do Sábio: instanter, com diligência; aplicando nisso todo o seu poder, não o fez pela metade; não procurou, como nós, desviar da dor o seu espírito; — como o teria feito, ele que viera para sofrer, que não podia sofrer senão por sua própria vontade? Não falou, retirando depois suas palavras; não agiu, negando os atos em seguida; mas falou e agiu; e disse: “Eu venho fazer a vossa vontade, ó meu Deus; não quisestes sacrifício nem oferenda, mas me formastes um corpo”. Ele tomou um corpo para poder sofrer; fez-se homem para poder sofrer como os homens; e quando chegou a sua hora — a hora de Satanás e das trevas — a hora em que o pecado devia derramar sobre ele toda a sua malícia — ofereceu-se a si próprio, inteiro, em holocausto, em total oblação.
 
E assim como, estendido sobre a cruz, ofereceu o seu corpo todo, foi também todo o seu espírito, toda a sua lucidez, toda a sua sensibilidade, que apresentou aos seus algozes: não uma aceitação virtual ou uma submissão a contragosto, mas uma intenção presente e absoluta. Sua paixão foi um ato: sua energia vital atingira o auge, quando jazia desfalecido e agonizante. E se morreu, foi por um ato da vontade: inclinou a cabeça não apenas em sinal de resignação, mas de comando: “Meu Pai, nas vossas mãos entrego o meu espírito”. Pronunciou estas palavras e entregou a sua alma, sem a perder no entanto.
 
Vedes, meus caros irmãos, que ainda que Nosso Senhor tivesse sofrido apenas no seu corpo, e ainda que tivesse sofrido menos que os outros homens, teria no entanto sofrido infinitamente mais, já que a dor deve ser medida pela tomada de consciência da mesma. Era Deus que sofria; Deus sofria na sua natureza humana, e os sofrimentos pertenciam a Deus: foram bebidos, sorvidos até a última gota, porque era Deus que os bebia. Não se contentou em provar o cálice, mas bebeu — sem disfarçá-la com remédios, como fazem os homens — a taça toda da angústia. E o que acabo de dizer servirá de resposta a uma objeção que vou agora formular, porque existe talvez em estado latente no espírito de alguns, fazendo-os ignorar a parte que tomou, na sua misericordiosa expiação, a alma de Nosso Senhor.
 
Como sua agonia começasse, Nosso Senhor falou: “Minha alma está triste até a morte”. Perguntar-me-eis talvez, caros irmãos, se ele não dispunha de certas consolações particulares, impossíveis em outro, que lhe aliviavam ou amorteciam a penúria da alma, fazendo-o portanto sofrer menos intensamente que um homem comum. Possuía, por exemplo, o sentimento de inocência a tal ponto que nenhum outro poderia possuir: os seus próprios perseguidores, o próprio apóstolo que o traíra, os próprios soldados que o executaram, o atestam: “Condenei o sangue inocente”, disse Judas; “Estou puro do sangue desse justo”, declarou Pilatos; “Na verdade, esse homem era justo”, exclamou o centurião. Se esses mesmos, pecadores que eram, atestaram-lhe a inocência — quanto mais não haveria de proclamá-la o seu próprio coração! Ora, e se nós mesmos, por pecadores que sejamos, sabemos bem que do sentimento de nossa inocência ou culpabilidade depende nossa força de resistência à hostilidade e à calúnia — quanto mais, em Nosso Senhor, o sentimento de sua santidade não devia compensar seus sofrimentos e aniquilar a sua vergonha! Além do mais (direis ainda), ele sabia que os seus sofrimentos eram breves e que seriam coroados de alegria, enquanto que a incerteza do futuro é o elemento mais cruel da angústia humana: não poderia conhecer a ansiedade, pois não havia incerteza para ele; nem o abandono ou o desespero, pois não foi jamais abandonado. E isso nos é confirmado por São Paulo, que diz expressamente: por causa da alegria que lhe era prometida, Nosso Senhor “desafiou a vergonha”.
 
Sem dúvida deu demonstração em todos os seus atos de calma e sangue-frio maravilhosos. Considerai seus conselhos aos apóstolos: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação; o espírito é pronto, mas a carne é fraca”; ou o que ele disse à Judas: “Meu amigo, por que vieste? Com um beijo tu trais o Filho do Homem?”; ou o que disse a Pedro: “Todos aqueles que tomarem uma espada perecerão pela espada”; ou suas palavras ao homem que lhe bateu na face: “Se falei mal, provai o que disse de mal; se falei bem, por que me bateis?”; ou o que disse à sua Mãe: “Mãe, eis o teu filho”.
 
Tudo isso é verdade, e merece ser frisado, mas está perfeitamente de acordo com o que acabo de dizer; ou melhor, o ilustra. Afirmá-lo, meus irmãos, equivale a constatar que Nosso Senhor (para empregar uma expressão humana) foi sempre ele mesmo. Seu espírito era, nele, o seu próprio centro; jamais perdeu, em grau ínfimo que fosse, seu celeste e perfeito equilíbrio. O que Nosso Senhor sofreu, sofreu-o porque se expôs ele próprio ao sofrimento — e deliberada, e serenamente. Assim como dissera ao leproso: “Eu o quero; sara”; ao paralítico: “Que teus pecados te sejam perdoados”; ao centurião: “Eu vou curá-lo”; e de Lázaro: “Eu vou despertá-lo do seu sono”; — assim também disse: “Agora eu vou começar a sofrer” e deu início à Paixão. Sua tranqüilidade não é senão a prova do inteiro domínio que tinha sobre a sua alma. Tirou, no momento oportuno, os ferrolhos e as cadeias, abriu as portas, e as torrentes invadiram-lhe o coração com todo o ímpeto. Eis o que S. Marcos nos diz dele, e o escutou da própria boca de S. Pedro, que foi uma das três testemunhas: “Vieram”, diz S. Marcos, “a um lugar chamado Gethsémani: e ele disse a seus discípulos: Sentai-vos aqui enquanto eu rezo. Conduziu consigo Tiago, Pedro e João, e começou a ser invadido pelo terror e o abatimento”. Bem vedes como é deliberadamente que ele age: vai a um certo lugar, dá uma ordem precisa, retira à sua alma o sustentáculo da divindade — e logo ruem sobre ele o terror, a angústia, o abandono. Entra na agonia moral por um ato tão definido como se tratara de qualquer sofrimento físico, o fogo ou a roda.
 
Assim sendo, vedes logo, meus caros irmãos, como é fora de propósito dizer que Nosso Senhor pudesse ter sido sustentado nas suas provações pelo sentimento de sua inocência e a antecipação de seu triunfo, pois suas provações consistiam justamente na retirada desse sentimento e dessa antecipação, como de qualquer outro motivo de consolo. O mesmo ato de vontade que entregava sua alma à influência de uma determinada angústia, a entregava ao mesmo tempo à influência de todas as angústias. Não foi uma luta entre impulsos e idéias contrárias, vindas de fora, mas o efeito de uma resolução interior. Assim como os homens que se controlam podem se concentrar à vontade num tema ou noutro, assim Nosso Senhor recusou deliberadamente todo conforto, e se fartou de dor. Naquele instante não pensava no futuro: pensava apenas no fardo que lhe pesava na alma e que viera justamente carregar sobre os ombros.
 
Mas qual será, meus irmãos, esse fardo que Nosso Senhor teve de carregar quando abriu assim a sua alma à torrente do sofrimento? Era um fardo que conhecemos bem — ai de nós! — que nos é bastante familiar, mas que representava, para ele, um tormento inexprimível. Teve de carregar um peso que transportamos tão facilmente, tão naturalmente, tão à vontade, que custamos a imaginá-lo como um grande suplício. Mas, para ele, tinha o cheiro da morte, o cheiro envenenado da morte. Teve, meus caros irmãos, de carregar o peso do pecado; teve de carregar os nossos pecados; os pecados do mundo inteiro.
 
O pecado nos parece leve, fazemos pouco caso dele, e não compreendemos por que motivo o Criador o tem em tão grande conta: não conseguimos crer que ele mereça ser castigado; e, quando já aqui no mundo recebe o seu castigo, arranjamos uma explicação qualquer para isso, e desviamos o pensamento. Mas, considerai o que o pecado é em si mesmo: é uma rebelião contra Deus; é o gesto do traidor que procura destronar o seu soberano e eliminá-lo; é um ato que, para usar uma expressão bem forte, chegaria a aniquilar o próprio Senhor do mundo, se ele pudesse ser aniquilado. O pecado é o inimigo mortal do Altíssimo, de modo que o pecado e ele não podem permanecer juntos; e, assim como o Altíssimo lança o pecado fora da sua presença para as trevas exteriores — assim, se Deus pudesse ser menos que Deus, o pecado é que teria o poder de transformá-lo em tal.
 
E notai, caros irmãos, que quando o Amor todo-poderoso entrou, pela sua encarnação, nesse sistema criado e se submeteu às suas leis — logo esse adversário do bem e da verdade, aproveitando a ocasião, se lançou sobre aquela carne divina, agarrou-se a ela e a fez morrer. A inveja dos Fariseus, a traição de Judas e a insensatez do povo não eram mais que o instrumento ou a expressão da iniqüidade que o pecado sentia pela Eterna Pureza, desde que, na sua infinita misericórdia pelos homens, Deus se pusera ao seu alcance. O pecado não lhe podia atingir a Majestade divina, mas podia assaltá-lo, como ele próprio o consentia, por intermédio da humanidade que assumira. E o desfecho, a morte do Deus encarnado, nos ensina, meus irmãos, o que é o pecado em si mesmo, e qual o fardo que ia cair, num dado momento e com todo o peso, sobre a natureza humana de Deus — quando permitiu que essa natureza fosse invadida pelo terror e a agonia.
 
Nessa hora tão terrível, portanto, o Salvador do mundo se pôs de joelhos, recusando as garantias de sua divindade, afastando os anjos solícitos, prontos a responder por miríades ao seu apelo; abriu os braços e descobriu o peito para se expor, na sua inocência, ao assalto do inimigo — um inimigo cujo hálito era uma peste e cujo abraço, uma agonia. Lá estava de joelhos, imóvel e silencioso, enquanto o impuro demônio envolvia-lhe o espírito numa veste banhada no que o crime humano tem de mais hediondo e mais atroz; enquanto o demônio invadia a sua consciência, penetrava-lhe em todos os sentidos, em todos os poros do seu espírito, estendendo sobre ele a sua lepra moral — até que se sentisse quase transformado naquilo que ele não poderia ser jamais, naquilo em que seu inimigo teria querido transformá-lo. Qual não foi o seu terror quando, ao se contemplar, não mais de reconheceu: quando se sentiu igual a um impuro e detestável pecador, na sua percepção aguda desse amontoado de corrupções que lhe choviam sobre a cabeça e escorriam até a extremidade da sua veste! Qual não foi o seu espanto, quando viu que seus olhos, suas mãos, seus pés, seus lábios, eram como membros de um mau, e não mais os de um Deus! Serão as do Cordeiro imaculado, essas mãos, outrora inocentes, rubras agora de milhões de atos bárbaros e sanguinários? Serão os do Cordeiro, esses lábios que não mais pronunciam orações e louvores, manchados que estão pelos perjúrios, as blasfêmias e as doutrinas diabólicas? Serão os do Cordeiro, esses olhos profanados pelas visões malignas e as fascinações dos ídolos, pelos quais deixaram os homens o seu adorável Criador? Seus ouvidos ressoam o tumulto das festas e dos combates; seu coração está gelado pela avareza, a crueldade e a ingratidão; sua própria memória está carregada de todos os pecados cometidos depois da Queda em todas as regiões do mundo: o orgulho dos antigos gigantes, a luxúria das cinco cidades, o endurecimento do Egito, a ambição de Babel, a ingratidão e o desprezo de Israel. Quem não conhece a tortura de uma idéia fixa, que volta sem cessar, por mais que a queiramos repelir, e que, não podendo nos reduzir, nos obseda? Ou a de um pensamento sufocante e odioso, que de modo nenhum nos pertence, mas que nos foi imposto de fora para dentro? Ou a de fatal conhecimento, adquirido ou não por nossa culpa, mas do qual daríamos tudo para sermos imediatamente libertados?
 
Eis os inimigos que, aos milhões, se comprimem em torno de vós, ó Senhor! Que sobre vós se abatem em nuvens mais numerosas que as dos gafanhotos, das moscas e das rãs enviadas contra o Faraó. Estão aí todos os pecados. Os pecados dos vivos, dos mortos e daqueles que ainda não nasceram. Dos condenados e dos eleitos. Do vosso povo e dos povos estrangeiros. Dos pecadores e dos santos. E vossos bem-amados estão também presentes: vossos santos, vossos escolhidos, vossos três apóstolos: Pedro, Tiago e João — não para vos consolar porém, mas para vos acabrunhar, “lançando o pó contra os céus”, como os amigos de Jó, amontoando maldições sobre a vossa cabeça.
 
Estão todos aí, menos uma criatura. Uma só não está aí; uma só. Porque ela, que nunca teve parte no pecado, era a única que vos podia consolar; é por isso que está ausente. Virá para perto de vós quando estiverdes na cruz; mas no jardim, permanecerá afastada. Foi a vossa companheira e a vossa confidente por toda a vida; trocou convosco os pensamentos e as reflexões de trinta anos: mas seu ouvido virginal não poderia captar, nem seu coração imaculado conhecer, o que se oferece agora à vossa vista. Esse fardo, só Deus mesmo é que o pode carregar. Às vezes mostrastes a alguns dos vossos santos a imagem de um pecado apenas, tal como aparece à luz da vossa Face (e a imagem de um pecado venial, não de um mortal); e eles nos disseram que esse espetáculo quase os ia matando, que os teria de fato morto, se não tivesse sido logo desviado de seu olhar. A Mãe de Deus, apesar de toda a sua santidade, ou antes, por causa dela, não teria podido suportar a vista de um só desses inumeráveis prepostos de Satanás que vos cercam agora.
 
Na verdade, é a longa história de um mundo, e só Deus é que pode carregar-lhe o peso. Esperanças desfeitas, votos partidos, luzes extintas, advertências desprezadas, ocasiões perdidas; inocentes enganados, jovens endurecidos, penitentes que caem de novo, justos abatidos, velhos sem rumo; sofismas da incredulidade, cegueira das paixões, obstinação do orgulho, tirania do hábito, verme roedor do remorso, febre do mundanismo, angústia da vergonha, amargor das decepções, agonia do desespero; tais são as cenas cruéis, dilacerantes, revoltantes, detestáveis, enlouquecedoras, que, todas juntas, se oferecem a ele. As vítimas voluntárias da rebelião — faces transtornadas, lábios convulsos e as frontes sombrias — estão sobre ele, estão nele. Ocupam o lugar daquela paz inefável que não cessou de habitar-lhe a alma desde a sua concepção. Estão sobre ele, e parecem, quase, suas. Ele invoca o seu Pai como se fora o criminoso, e não a vítima. Sua agonia toma a aparência da culpabilidade e da compunção. Faz penitência; confessa-se. Faz ato de contrição de um modo infinitamente mais real, infinitamente mais eficaz que todos os santos e todos os penitentes juntos. Porque ele é para nós todos a única vítima, o único holocausto expiatório, o verdadeiro penitente — sem ser no entanto o verdadeiro pecador.
 
Ele se ergue dolorosamente; volta-se para contemplar o traidor e o seu bando, que deslizam furtivamente na sombra profunda. Olha; e vê o sangue nas suas vestes, o sangue nas pegadas dos seus pés. De onde vêm essas primícias da paixão do Cordeiro? As varas dos soldados ainda não lhe tocaram as espáduas; nem os cravos do carrasco, as suas mãos e pés. Meus irmãos, ele derramou o seu sangue antes da hora. Sim, ele espalhou seu sangue. Foi sua alma agonizante que partiu o invólucro de carne para o fazer brotar...
 
Sua paixão começou dentro dele próprio. Esse coração supliciado, sede de ternura e amor, se pôs a palpitar, a bater com veemência que excede a natureza. “As fontes do grande abismo se romperam”; os rios de sangue se chocaram com tanto ímpeto e furor, que transbordaram as veias, brotaram pelos poros e formaram um orvalho espesso por toda a superfície do corpo. Pois as gotas deslizaram, grossas e pesadas, inundando o chão.
 
“Minha alma está triste até a morte”, disse ele. Já se disse, a respeito da epidemia que atualmente nos aflige, que ela começa pela morte, evidenciando, assim, que ela não conhece fases nem crises, que toda esperança está perdida quando ela se declara, e que o que aparece como evolução não é senão agonia mortal e processo de dissolução. Assim, posto que num sentido muito mais elevado, nossa vítima expiatória começou por essa paixão de dor. E se ela não morreu, foi porque sua vontade todo-poderosa impediu seu coração de quebrar-se e sua alma de separar-se do corpo antes que tivesse sofrido na cruz. Não. Nosso Senhor ainda não esgotou o cheio cálice, de que sua fraqueza natural se tinha de início desviado. O aprisionamento, a acusação, a bofetada, a paixão, o julgamento, as zombarias, as idas e vindas de um lugar para outro, a flagelação, a coroa de espinhos, a lenta subida ao Calvário, e a crucifixão — tudo isto viria ainda. Será preciso que uma noite e um dia se passem lentamente, hora por hora, antes que chegue o fim, que a crucifixão seja consumada.
 
Depois, quando o momento fixado veio e que ele deu a sua ordem, sua paixão terminou com sua alma, como com ela havia começado. Não morreu de esgotamento corporal, nem de dor corporal; seu Coração supliciado se partiu, e ele entregou o espírito ao seu Pai.
 
*  *  *
 
Ó Coração de Jesus, ó Todo Amor, eu vos ofereço essas humildes súplicas por mim mesmo e por todos que se unem a mim em espírito para vos adorar. Ó santíssimo Coração de Jesus, eu me proponho renovar e vos oferecer esses atos de adoração e essas orações por mim mesmo, miserável pecador que sou, e por todos os que estão associados na vossa adoração. Eu me proponho renová-la em todos os instantes, até meu último alento. Eu vos recomendo, ó meu Jesus, a Santa Igreja, vossa cara Esposa e nossa verdadeira Mãe, as almas que praticam a justiça, todos os pobres pecadores; os aflitos, os moribundos e todo o gênero humano. Não permitais que o vosso sangue tenha sido derramado por eles em vão. E dignai-vos enfim aplicar os seus méritos para o consolo das almas do Purgatório, especialmente daquelas que, no correr de sua vida, vos adoraram com devoção. 
 
 
(A Ordem, Março – Abril, 1951)

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