A Cristiada (1926-29)
Está fora de dúvida que o século XX foi o mais acentuadamente martirizante de toda a história da Igreja. E nisto convém recordar que o testemunho impressionante dos mártires do México foi o modelo imediato para todos os católicos que mais tarde teriam de verter seu sangue por Cristo. Primeiramente, logo após, para os mártires espanhóis, tão numerosos. Antonio Montero, em La historia de la persecución religiosa en España (BAC 204, 1982, pp. XIII-XIV), diz que “em toda a história da Igreja universal não há um único precedente, nem sequer nas perseguições romanas, do sacrifício sangrento, em pouco mais de um semestre, de doze bispos, quatro mil sacerdotes e mais de dois mil religiosos”.
Mas alguns anos antes (1926-1929), também os mártires mexicanos foram modelo para tantas outras centenas de milhares, milhões de cristãos esmagados em nosso século pela Revolução em qualquer de suas formas, liberal ou nazista, socialista ou comunista. Muito nos interessa, pois, conhecer a perseguição religiosa no México, e entender bem a resposta daqueles católicos admiráveis, que com seu sangue seguiram escrevendo os Atos dos Apóstolos na América.
Encontramos informação sobre a Cristiada em obras como a de Aquiles P. Moctezuma, El conflicto religioso de 1926; sus orígenes, su desarrollo, su solución; Antonio Ríus Facius, Méjico cristero; historia de la Asociación Católica de la Juventud Mejicana, 1925-1931; Miguel Palomar y Vizcarra, El caso ejemplar mexicano. Possuímos relatos impressionantes dos mesmos cristeros, como o de Luis Rivero del Val, Entre las patas de los caballos, que vem a ser o diário do estudante cristero Manuel Bonilla, ou o do camponês Ezequiel Mendoza Barragán, Testimonio cristero; memorias del autor, cada qual mais admirável. E dispomos também de excelentes estudos modernos, como o de Jean Meyer, La cristiada, I-III, e Lauro López Beltrán, La persecución religiosa en México.
Será conveniente, em todo o caso, que comecemos nossa crônica pelo princípio: a perseguição liberal que ocasionou a Cristiada no século XX não era senão a continuação da que já se iniciara longamente no século XIX.
As perseguições religiosas do México no século XIX
Em 1810, com o grito do padre Miguel Hidalgo: “¡Viva Fernando VII y muera el mal gobierno!”, se inicia o processo que culminaria na independência do México. Ainda em 1821, o Plan de Iguala decide a independência completa do México como monarquia constitucional que, ao ser oferecida sem êxito a Fernando VII, fica sob a designação das Cortes Mexicanas. Pelo breve governo do imperador Agustín de Itúrbide (1821-24), rechaçado pela maçonaria e fuzilado em Padilla, proclamou-se a República (1824), que caminha vacilante até meados do século, e que perde, para os Estados Unidos, metade do território mexicano (1848).
Logo após a independência, já em 1855, desencadeia-se a revolução liberal com toda a sua virulência anticristã, quando obtém o poder Benito Juárez (1855-72), índio zapoteca de Oaxaca que aos 11 anos, com a ajuda do terciário carmelita Salanueva, aprende castelhano, a ler e escrever, o que lhe permite ingressar no Seminário. Advogado mais tarde e político, impõe, obrigado pela loja norte-americana de Nova Orleães, a Constituição de 1857, de orientação liberal, e as Leis de Reforma de 1859, ambas abertamente hostis à Igreja.
Por elas, contra todo o direito natural, estabelecia-se a nacionalização dos bens eclesiásticos, a supressão das ordens religiosas, a secularização de cemitérios, hospitais e centros beneficentes etc. Seu governo também deu apoio a uma Igreja mexicana, precária tentativa de criar, em torno de um pobre padre, uma Igreja cismática.
Todos estes atropelos provocaram um levantamento popular católico, semelhante, como assinala Jean Dumont, ao que iria produzir-se em nosso século. Com efeito, “a Cristiada [1926-1931] teve um precedente muito parecido nos anos 1858-1861. Também então a cristandade mexicana sustentou uma luta de três anos contra os Sem-Deus da época, aqueles laicistas da Reforma, também jacobinos, que haviam imposto a liberdade para todos os cultos, exceto o culto católico, submetido ao controle restritivo do Estado, à venda dos bens da Igreja, à proibição dos votos religiosos, à supressão da Companhia de Jesus e, portanto, de seus colégios, ao juramento de todos os funcionários do Estado em favor destas medidas, à deportação e ao encarceramento dos bispos ou sacerdotes que protestassem. Pio IX condenou estas medidas, assim como Pio XI expressou sua admiração pelos cristeros”.
Naquela guerra civil, em que houve “deportação e condenação à morte de sacerdotes, deportação e encarceramento de bispos e de outros religiosos, repressão sangrenta das manifestações de protesto, particularmente numerosas nos estados de Jalisco, Michoacán, Puebla, Tlaxcala” (Hora de Dios en el Nuevo Mundo 246), o governo liberal prevaleceu graças à ajuda dos Estados Unidos.
A Reforma liberal de Juárez não se caracterizou somente pelo seu sectarismo anti-religioso, mas também porque, junto à desamortização dos bens da Igreja, eliminou as propriedades comunais dos indígenas. Estas medidas não evitaram ao Estado um grave colapso financeiro, mas enriqueceram a classe privilegiada, aumentando o latifúndio. Com tudo isso, segundo o historiador mexicano Vasconcelos, também filósofo e político, “Juárez e sua Reforma estão condenados por nossa história”, e ele passou, como outros “à categoria de agentes do Imperialismo anglo-saxão” (Breve hª 11).
Sobre este último ponto, bastaria recordar as incríveis ofertas, vergonhosas, do governo de Juárez aos Estados Unidos nos tratados Mac Lane-Ocampo e Corwin-Doblado, ou nos convênios com os norte-americanos geridos pelo agente juarista José María Carvajal...
O período de Juárez viu-se interrompido por um breve período em que, por imposição de Napoleão III, ocupou o poder Maximiliano da Áustria (1864-67), fuzilado em Querétaro pouco mais tarde. Também nestes anos a Igreja foi sujeita a leis vexatórias, e os maçons “ofereceram ao Imperador a presidência do Supremo Conselho das Lojas, que ele declinou, aceitando porém o título de protetor da Ordem, e nomeando como representantes seus dois indivíduos que, imediatamente, receberam o grau 33” (Acevedo, Hª de México 292).
A Juárez o sucedeu no poder Sebastián Lerdo de Tejada (1872-76). Este, que estudara no Seminário de Puebla, acentuou a perseguição religiosa, chegando a expulsar até “as Irmãs da Caridade — a quem o mesmo Juárez respeitara — apesar de que, das 410 que existiam, 355 eram mexicanas que atendiam a cerca de 15 mil pessoas em seus hospitais, asilos e escolas. Em contrapartida, favoreceu-se oficialmente a difusão do protestantismo, com apoio norte-americano. No mesmo ano de 1873 se proibiu que existisse qualquer manifestação ou ato religioso fora dos templos” (Alvear Acevedo 310). Tudo isto provocou a guerra chamada dos Religioneros (1873-1876), um levantamento armado católico, anterior também aos dos cristeros (Meyer II,31-43).
A longa permanência de Juárez no poder ocasionou, entre os mesmos liberais, uma oposição cada vez mais forte. O general Porfírio Diaz — que era, como Juárez, de Oaxaca e antigo seminarista – defendendo como lei suprema a não-reeleição do Presidente da República (Plan de la Noria, 1871; Plan de Tuxtepec, 1876), desencadeou uma revolução que o levou ao governo do México durante quase 30 anos: foi reeleito oito vezes, em farsas eleitorais, entre 1877 e 1910.
Neste longo tempo exerceu uma ditadura de ordem e progresso, muito favorável aos investidores estrangeiros — petróleo, redes ferroviárias — sobretudo norte-americanos, e às camadas nacionais mais privilegiadas. Também em seu tempo incrementou o latifúndio, e se mantiveram injustiças sociais muito graves (Kenneth Turner, México bárbaro). Quanto ao mais, o liberalismo do Porfiriato foi mais tolerante com a Igreja. Ainda que deixasse vigentes as leis persecutórias da Reforma, normalmente não as aplicava; mas manteve em seu governo, especialmente na educação preparatória e universitária, o espírito laicista anti-religioso.
As perseguições de Carranza y Obregón (1916-20, 1920-24)
Os últimos anos do Porfiriato e os seguintes, em meio a contínuas ingerências dos Estados Unidos, registram numerosas conspirações e sublevações, movimentos indígenas de reivindicação agrária, e guerras marcadas por crueldades atrozes. A revolução liberal, que tão duramente perseguia os católicos, ia devorando também, um após o outro, seus próprios filhos: é o horror do “processo histórico do liberalismo capitalista, que durante o século XIX e metade do XX conseguiu apoderar-se das consciências de nossos povos e não apenas de suas riquezas” (Vasconcelos, Hª de México 10). Surgem neste período nomes como os do presidente Madero (+1913, assassinado), Emiliano Zapata (+1919, assassinado), presidente Carranza (+1920, assassinado), Pancho Villa (+1923, assassinado), ex-presidente Alvaro de Obregón (+1928, assassinado)...
A revolução do general Venustiano Carranza, que o levou à presidência (1916-20), caracterizou-se pela dureza de sua perseguição à Igreja. No caminho para o poder, suas tropas multiplicavam os incêndios de templos, roubos e violações, atropelamentos de sacerdotes e religiosas. Ainda hoje, no México, carrancear significa roubar, e um agressor é um carrancista.
E, já no poder, quando os chefes militares se tornavam governadores dos Estados liberados, ditavam contra a Igreja leis tirânicas e absurdas: que houvesse Missa somente aos domingos e com determinadas condições; que não se celebrassem Missas de defuntos; que não se conservasse água para os batismos nas pias batismais, e que se desse o batismo com a água que corre das bicas; que se administrasse o sacramento da penitência somente aos moribundos, e, “na ocasião, em voz alta e de frente para um empregado do Governo” (López Beltrán 35).
A orientação anticristã do Estado cristalizou-se finalmente na Constituição de 1917, realizada em Querétaro por um Congresso Constituinte formado unicamente por representantes carrancistas. Com efeito, naquela grotesca Constituição, o Estado liberal moderno, agravando as perseguições já iniciadas com Juárez nas Leis de Reforma, estabelecia a educação laica obrigatória (art. 3), proibia os votos e o estabelecimento de ordens religiosas (5), assim como todo ato de culto fora dos templos ou das casas particulares (24). E não apenas perpetuava o confisco de bens da Igreja, mas proibia a existência de colégios de inspiração religiosa, conventos, seminários, bispados e casas curiais (27). Todas estas e outras muitas barbaridades semelhantes se impunham no México sem que nenhum liberal ortodoxo do Ocidente pestanejasse.
O governo do general Obregón (1920-24), novo presidente, levou adiante o impulso perseguidor da Constituição mexicana: pôs-se uma bomba em frente ao arcebispado do México; içaram-se bandeiras da revolução bolchevique — o que havia de mais progressista naqueles anos — sobre as catedrais de México e de Morelia; um empregado da secretaria do Presidente fez explodir uma bomba ao pé do altar da Virgem de Guadalupe, cuja imagem ficou ilesa; foi expulso Monsenhor Philippi, Delegado Apostólico, por bendizer a primeira pedra posta no Cerro Del Cubilete para o monumento a Cristo Rei...
A perseguição de Calles (1924-29)
Depois da presidência de Juárez (1855-72), o México foi governado quase sempre, como vimos, por generais: general Porfirio Díaz (1877-1910), general Huerta (13-14), general Carranza (16-20), general Obregón (20-24). E agora, de forma ainda mais brutal, vai ser governado pelo general Plutarco Elías Calles (1924-29).
Reformando o Código Penal, a Lei Calles, de 1926, expulsa os sacerdotes estrangeiros, penaliza com multas e prisões os que dêem ensino religioso ou estabeleçam escolas primárias, ou se vistam como clérigo ou religioso, ou se reúnam de novo tendo sido retirados do claustro, ou induzam à vida religiosa, ou realizem atos de culto fora dos templos... Repetindo a estupidez dos tempos de Juárez, também agora, a partir de uma Secretaria do governo callista, se faz a ridícula tentativa de criar uma Igreja cismática mexicana, desta vez em torno de um precário Patriarca Pérez, que finalmente morreu em comunhão com a Igreja.
Os governadores dos diversos Estados rivalizam em zelo persecutório, e então o de Tabasco, general Garrido Canabal, um déspota corporativista, ao estilo mussoliniano, e mulherengo, exige dos sacerdotes que se casem, se quiserem exercer seu ministério (Meyer I,356). Em Chiapas, uma Lei de Prevenção Social “contra loucos, degenerados, toxicômanos, ébrios e vagabundos” dispõe: “Poderão ser considerados pessoas de má vida e submetidos a medidas de segurança, tais como reclusão em sanatórios, prisões, trabalhos forçados etc., os mendigos profissionais, as prostitutas, os sacerdotes que exerçam sem autorização legal, as pessoas que celebrem atos religiosos ou ensinem dogmas religiosos às crianças, os homossexuais, os fabricantes e vendedores de fetiches e estampas religiosas, assim como os vendedores de livros, folhetos ou qualquer impresso com que se pretenda inculcar preconceitos religiosos” (+ Rivero del Val 27).
Cessação do culto (31-7-1926)
Os bispos mexicanos, em uma enérgica Carta pastoral (25-7-1926), protestam, unânimes, manifestando sua decisão de trabalhar para que “esse Decreto e os Artigos anti-religiosos da Constituição sejam reformados. E não cessaremos até o ter conseguido”. O presidente Calles responde friamente: “Nós nos temos limitado a fazer cumprir as [leis] que existem, uma desde o tempo da reforma, há mais de meio século, e outra desde 1917... Naturalmente que meu Governo não pensa sequer em suavizar as reformas e acréscimos ao código penal”. Era esta a tolerância dos liberais ante o fanatismo dos católicos. Eles pediam aos católicos somente que obedecessem às leis.
Poucos dias depois, em 31 de julho, e sem prévia consulta à Santa Sé, o Episcopado ordena a suspensão do culto público em toda a República. Imediatamente, doze bispos, entre eles o Arcebispo do México, são tirados de suas sedes, e expulsos do país sem julgamento prévio.
É de supor que os callistas haviam acolhido a suspensão dos cultos religiosos com frieza, e até com uma certa satisfação. Eles não esperavam, como tampouco a maioria dos bispos, a reação do povo cristão, ao ficar privado da Eucaristia e dos sacramentos, ao ver os altares sem mantéis e os sacrários vazios, com a portinhola aberta...
O cristero Cecilio Valtierra narra aquela experiência com a eloqüência ingênua do povo: “Fechou-se o templo, o sacrário ficou deserto, ficou vazio, já não está Deus ali, foi ser hóspede de quem gostaria de dar-lhe pousada, já temendo ser prejudicado pelo governo; já não se ouviu o badalar dos sinos que chamam o pecador à oração. Só nos restava um consolo: estava a porta do templo aberta, e os fiéis, de tarde, rezavam o Rosário e choravam suas culpas. O povo estava de luto, acabara-se a alegria, já não havia bem-estar nem tranqüilidade, o coração se sentia oprimido, e, para completar, o governo proibiu as reuniões nas ruas: até o comum, ou seja, uma pessoa ficar em pé diante de outra, era um delito grave”.
Levantamento dos cristeros (agosto 1926)
Já em meados de agosto, por ocasião do assassinato do padre de Chalchihuites e de três leigos católicos com ele, levanta-se o primeiro foco do movimento armado. E, em seguida em Jalisco, em Huejuquilla, onde, em 29 de agosto, o povo insurreto dá o grito de fidelidade: Viva Cristo Rei!... Entre agosto e dezembro de 1926, produziram-se 64 levantamentos armados, espontâneos, isolados, a maior parte em Jalisco, Guanajuato, Guerreiro, Michoacán e Zacatecas.
Aqueles a quem o Governo, por zombaria, chamava cristeros não tinham armas no início, a não ser um machete ou, na melhor das hipóteses, uma escopeta; depois as foram conseguindo dos soldados federais, os juanes callistas, nas guerrilhas e ataques de surpresa. Sempre foi problema para os cristeros o provimento de munições; na realidade, “não tinham outra fonte de munições senão o exército, do qual as tomavam ou compravam” (Meyer I, 210)...
Em Aranas, um povoado de Los Altos, segundo refere J. J. Hernández, afluíam de todas as propriedades rurais novos contingentes, “alguns armando-se até com roçadeiras, machados, e, nas propriedades onde sabiam haver armas, iam pedi-las... Da pena ver esta gente; uns, além de trazer armas ruins, traziam umas garras de huaraches [sandálias], os chapéus rasgados, rotos, as roupas todas remendadas, outros iam a pêlo no cavalo, alguns não traziam nem freio, enquanto outros seguiam simplesmente a pé” (+ Meyer I,133).
À frente do movimento, para dar-lhe unidade de plano e de ação, pôs-se a Liga Nacional Defensora de la Liberdad Religiosa, fundada em março de 1925 com o fim que seu nome expressa, e que havia se estendido, em pouco tempo, por toda a república.
O levantamento vem assim expresso na carta de um cristero, camponês como quase todos o eram, Francisco Campos, de Santigado Batacora, em Durango:
“No dia 31 de Julho de 1926, alguns homens fizeram com que Nosso Senhor se ausentasse de seus templos, de seus altares, dos lugares dos católicos, mas outros homens fizeram com que voltasse outra vez; estes homens não viram que o governo tinha muitos soldados, muito armamento e muito dinheiro para fazer-lhes a guerra; isto eles não viram, o que viram foi defender seu Deus, sua Religião, sua Mãe, que é a Santa Igreja, isto é o que eles viram. A estes homens não importou deixar suas casas, seus pais, seus filhos, suas esposas e tudo o que possuíam; foram aos campos de batalha procurar Deus Nosso Senhor. Os rios, as montanhas, os montes, as colinas são as testemunhas de que estes homens falaram a Deus Nosso Senhor com o Santo Nome de Viva Cristo Rei, Viva a Santíssima Virgem de Guadalupe, Viva o México. Os mesmos lugares são o testemunho de que aqueles homens regaram o solo com seu sangue e, não contentes com isto, deram até suas vidas para que Deus Nosso Senhor voltasse de novo. E, vendo Deus Nosso Senhor que aqueles homens realmente o procuravam, dignou-se vir outra vez a seus templos, a seus altares, aos lugares dos católicos como estamos vendo agora, e recomendou aos jovens de hoje que, se no futuro aparecer novamente o problema, não se esqueçam do exemplo que nos deixaram nossos antepassados” (Meyer I,93).
Aprovações eclesiásticas da luta armada
Mas, antes de fazer a crônica desta guerra de mártires, temos de nos deter a analisar com cuidado, pois a questão é muito grave, a atitude da hierarquia eclesiástica contemporânea com relação aos cristeros. Prestemos atenção às datas.
18 de outubro de 1926. Em Roma Pio XI recebe uma Comissão de Bispos mexicanos, que lhe informa da situação de perseguição e de resistência armada. Poucos dias depois, tendo-se dirigido ao Cardeal Gasparri a questão de se os prelados podiam dispor dos bens da Igreja para a defesa armada, responde que “ele, o secretário de Estado de Sua Santidade, se fosse Bispo mexicano, venderia suas alfaias para o caso” (Ríus 138).
18 de novembro de 1926. Um mês depois, o Papa publica a encíclica Iniquis afflictisque, em que denuncia as agressões sofridas pela Igreja no México:
”Já quase não resta liberdade alguma à Igreja [no México], e o exercício do ministério sagrado se vê de tal maneira impedido, que é castigado, como se fosse um delito capital, com penas severíssimas”. O Papa elogia com entusiasmo a Liga Nacional Defensora de la Libertad Religiosa, espalhada “por toda a República, na qual seus membros trabalham concorde e assiduamente com o fim de ordenar e instruir a todos os católicos, para opor aos adversários uma frente única e solidíssima”. E comove-se ante o heroísmo dos católicos mexicanos: “Alguns destes adolescentes, destes jovens — como conter as lágrimas ao pensá-lo — foram lançados à morte com o rosário na mão, ao grito de Viva Cristo Rei! Inenarrável espetáculo que se oferece ao mundo, aos anjos e aos homens”.
30 de novembro de 1926. Os dirigentes da Liga Nacional, antes de assumir efetivamente a direção do movimento cristero, quiseram assegurar-se do apoio do Episcopado, e, para isto, dirigiram aos bispos um Memorial, em que solicitavam:
“1) Uma ação negativa, que consista em não condenar o movimento; 2) Uma ação positiva, que consista: a) em sustentar a unidade de ação, pela uniformidade de um mesmo plano e um mesmo comandante; b) em formar a consciência coletiva, por meios que estejam ao alcance do Episcopado, no sentido de que se trata de uma ação lícita, louvável, meritória e de legítima defesa armada; c) em habilitar canonicamente párocos residentes...; d) em organizar e patrocinar uma campanha, desenvolvida energicamente, entre os católicos ricos, para que forneçam fundos destinados à luta, e para que, pelo menos uma vez na vida, compreendam a obrigação que têm de contribuir”.
Em 30 de novembro os chefes da Liga são recebidos por Monsenhor Ruiz y Flores e por Monsenhor Díaz y Barreto. O primeiro comunica-lhe alegremente que, “como de costume, se saíram bem”; que, estudadas as propostas pelos bispos reunidos na Comissão, “os diversos pontos do Memorial tinha sido aprovados por unanimidade”, menos os dois últimos, o dos párocos residentes e o dos ricos, não convenientes ou irrealizáveis.
15 de janeiro de 1927. O Comitê Episcopal, respondendo a algumas declarações incriminadoras do Chefe do Estado-Maior callista, afirma que o Episcopado é alheio ao levantamento armado; mas declara ao mesmo tempo “que há circunstâncias na vida dos povos em que é lícito aos cidadãos defender pelas armas os direitos legítimos que em vão procuraram salvar por meios pacíficos”; e faz recordar a todos os meios pacíficos utilizados pelos bispos e pelo povo, e desprezados pelo Governo. “Foi assim que os prelados da hierarquia católica deram sua plena aprovação aos católicos mexicanos para exercer seu direito à defesa armada, que a Santa Sé prognosticou que ocorreria, como único caminho que lhes restava para não ter de sujeitar-se à tirania anti-religiosa” (Ríus 135).
16 de janeiro de 1927. Em começos de 1927, no entanto, chegam a Roma notícias da imprensa nas quais se comunica que Monsenhor Pascual Díaz y Barreto, jesuíta, bispo de Tabasco, que havia sido desterrado do México, em diversas declarações feitas no exílio se mostra reservado quanto aos cristeros: “Como bispo e como cidadão reprova Díaz a Revolução, qualquer que seja sua causa” (Lpz. Beltrán 108).
Imediatamente, em 16 de janeiro, a Comissão de bispos mexicanos envia uma dura carta a Monsenhor Díaz y Barreto, então residente em Nova Iorque, lamentando com profunda tristeza suas declarações públicas feitas “contra os generosos defensores da liberdade religiosa e algumas favoráveis ao perseguidor, Calles”.
Os combatentes “dão o sangue e a vida para cumprir um santo dever, o de conquistar a liberdade da Igreja”. Ante o abuso gravemente injusto do poder, “existe o direito de resistir e defender-se, já que, tendo sido vãos todos os meios pacíficos postos em prática, é justo e devido recorrer à resistência e à defesa armada”. Recordam-lhe também os bispos que este “é o sentir da maioria de nossos irmãos [bispos] do México”, e também o “dos Padres da Companhia, não somente no México, mas na Europa, e especialmente aqui em Roma”. A propósito lhe citam as declarações feitas alguns dias antes (3-2-1927) pelo famoso moralista da Gregoriana, padre Vermeersch, jesuíta: “Fazem muito mal aqueles que, crendo defender a doutrina cristã, desaprovam os movimentos armados dos católicos mexicanos. Para a defesa da moral cristã não é necessário valer-se de falsas doutrinas pacifistas. Os católicos mexicanos estão valendo-se de um direito e cumprindo um dever”. Pouco depois chega um cabograma com a resposta de Monsenhor Díaz y Barreto: “Autorizo honorável Comissão negar aquilo que se assegura dito por mim, contrário o determinado por todos nós, aprovado, Bendito Santa Sé. Autorizo honorável Comissão publicar este cabograma, se conveniente” (Lpz. Beltrán 109-110).
22 de fevereiro de 1927. Em Roma, o presidente da Comissão de Bispos mexicanos declara à imprensa: “Fazem bem ou mal os católicos recorrendo às armas? Até agora não havíamos querido falar, para não precipitar os acontecimentos. Mas, uma vez que Calles mesmo empurra os cidadãos à defesa armada, devemos dizer: os católicos do México, como todo ser humano, gozam em toda a sua amplitude o direito natural e inalienável de legítima defesa” (107).
Pio XI bendiz o grito: Viva Cristo Rei!
17 de maio de 1927. Anos antes dos acontecimentos de que nos ocupamos, em 1914, São Pio X, a pedido dos bispos mexicanos, tinha autorizado, como “um projeto que nos é indizivelmente agradável”, consagrar a Cristo Rei a República do México, e pôr a coroa real nas imagens do Sagrado Coração de Jesus, pondo também um cetro em sua mão, para assim significar sua realeza.
A consagração do México a Cristo Rei, coisa aparentemente impossível —semelhantemente à realizada por García Moreno no Equador em 1873 — pôde, todavia, realizar-se, aproveitando a vênia do general Victoriano Huerta, presidente (1913-1914), índio puro de Jalisco, que, por rara circunstância, era católico e não maçom, sendo, ao contrário, odiado e caluniado pelas lojas. Foi então, em 6 de fevereiro de 1914, durante o soleníssimo ato realizado na Catedral, em presença de todas as primeiras autoridades religiosas e civis da nação, que pela primeira vez no México o povo cristão alçou o grito de Viva Cristo Rei!
Pois bem, nos começos da Cristiada, com a data de 17 de maio de 1927, enviam-se aos bispos mexicanos algumas respostas e licenças chegadas de Roma. E no documento se lê: “Outro rescripto que recebemos concede aos que estão no México, indulgência plenária in articulo mortis, se confessados e comungados, ou pelo menos contritos, pronunciem com os lábios, ou ao menos com o coração, a jaculatória Viva Cristo Rei!, aceitando a morte como enviada pelo Senhor em castigo de nossas culpas”. Jean Meyer nega a existência deste insólito documento (II, 344-345), mas, posteriormente, López Beltrán reproduziu sua fotografia na obra já citada (73).
2 de outubro de 1927. O Cardeal Gasparri, secretário de Estado, em algumas declarações ao The New York Times (2-10-1927), conta os horrores da perseguição sofrida no México pela Igreja, e denuncia o silêncio das nações, ao “tolerar tão selvagem perseguição em pleno século XX”.
Reservas quanto ao movimento armado
À medida que passavam os meses, as reticências da Igreja para apoiar os cristeros cresciam, até em Roma. Recordemos que a doutrina tradicional da Igreja reconhece a licitude da rebelião armada contra as autoridades civis com certas condições: 1. causa muito grave; 2. esgotamento dos meios pacíficos; 3. que a violência empregada não produza maiores males que os que pretende remediar; 4. que exista probabilidade de êxito (+ Pio XI, Firmissimam constantiam 1937: Dz 3775-76).
Pois bem, a perseguição de Calles preenchia claramente as duas primeiras condições. Mas alguns bispos tinham dúvidas quanto a se a terceira se preenchia, pois já havia muito tempo que o povo estava sem sacramentos nem sacerdotes, e a guerra produzia mais e mais mortes e violências. E ainda eram mais numerosos os que criam muito improvável a vitória dos cristeros. Não faltaram até alguns poucos bispos que chegaram a ameaçar de excomunhão quem partisse com os cristeros ou os ajudasse.
Aprovaram a rebelião armada os bispos Manríquez y Zárate, González y Valencia, Lara y Torres, Mora y del Río, e estiveram muito próximos dos cristeros o bispo de Colima, Velasco, e o arcebispo de Guadalajara, Orozco y Jiménez, os quais, com grave risco, permaneceram ocultos em suas dioceses, assistindo seu povo.
Reprovaram-na em maior ou menor medida outros tantos, entre os quais Ruiz y Flores, e Pascual Díaz, que sempre viu a Cristiada como «um sacrifício estéril», condenado ao fracasso. E os demais permaneceram indecisos. Pois bem, sendo discutíveis as condições terceira e quarta, há que evitar todo o juízo histórico cruel, que reparta entre aqueles bispos os qualificativos de fiéis ou infiéis, valentes ou covardes. Em todo o caso, é evidente que a falta de apoio mais claro de seus bispos foi sempre para os cristeros o maior sofrimento...
18 de janeiro de 1928. Por fim, em meados de dezembro de 1927, o arcebispo Pietro Fumasoni Biondi, Delegado Apostólico nos Estados Unidos e encarregado de negócios da Delegação Apostólica no México, transmite a Monsenhor Díaz y Barreto, Secretário do Comitê Episcopal, a quem o mesmo Monsenhor Fumasoni havia nomeado Intermediário Oficial entre ele e os bispos mexicanos, a disposição do Papa segundo a qual “os bispos não apenas devem abster-se de apoiar a ação armada, mas também devem permanecer fora e acima de todo o partido político”. Norma que Monsenhor Díaz comunicou a todos os prelados (18-1-1928) (Meyer I,18; Lpz. Beltrán 111, 150-52)...
Lançaram-se ao campo, «para buscar a Deus»
Agosto de 1926. Muitos camponeses, da zona central do México sobretudo, lançam-se ao monte, como Francisco Campos, “para buscar a Deus Nosso Senhor”.
“Em Cocula (Jalisco), desde 1 de agosto a igreja estava guardada noite e dia por 100 mulheres no interior e 150 homens no átrio e no campanário. Os cinco bairros de Cocula se revezavam em turnos, e a cada alarme se dava um sinal. Então todos acudiam imediatamente, como conta Porfiria Morales. No dia 5 de agosto tocou o sino quando ela estava na cozinha; sua criada María exclamou: Ave Maria Puríssima! Tirou o avental, tomou seu manto e um pedaço de pau, e, quando ela lhe perguntou aonde ia, respondeu-lhe: ‘Que pergunta de minha senhora! Não ouve o sino que chama os católicos daUnião Popular? Em primeiro lugar as coisas de Deus!’ E saiu deixando as panelas no fogo”. (Meyer I,103).
Não se poderá apreciar suficientemente o valor das mulheres católicas mexicanas na Cristiada, distribuindo propaganda, levando avisos, acolhendo perseguidos ou cuidando de feridos, ajudando clandestinamente o provimento de alimentos e armas. As Brigadas Femininas de Santa Joana d’Arc, as Brigadas Bonitas, escreveram histórias de lenda... Mas, enfim, a guerra é coisa de homens, e a ela foram vigorosos camponeses. Ezequiel Mendoza Barragán, um fazendeiro de Coalcomán, em Michoacán, cuja voz patriarcal iremos escutar em outras ocasiões, assim o conta:
“Centenas de pessoas assinamos os papéis, e eles foram enviados a Calles e a seus sequazes, mas tudo foi inútil... Os Calles se julgaram muito poderosos e nos oprimiram ainda mais, matando gente e confiscando bens particulares dos católicos. Eu, ignorante, mas com brio, ao saber dos novos procedimentos de tal governo, me exaltei e me armei de disposição, estes eram meus sentimentos, fui conquistar gente armada e disposta à guerra em defesa da liberdade de Deus e dos próximos” (Testimonio 17).
O curso da guerra
Jean Meyer, no volume I de sua obra, descreve com detalhes as vicissitudes por que passou no correr dos anos a guerra da Cristiada, que ele divide nestas fases:
— incubação, de julho a dezembro de 1926;
— explosão do levantamento armado, a partir de janeiro de 1927;
— consolidação das posições, de julho 1927 a julho de 1928, ou seja, desde que o general Gorostieta assume a direção dos cristeros até a morte de Obregón.
— prolongamento do conflito, de agosto 1928 a fevereiro de 1929, tempo em que o Governo começa a entender que não poderá vencer militarmente os cristeros;
— ápice do movimento cristero, de março a junho de 1929;
— dissolução dos cristeros, em junho de 1929, quando se produzem os mal chamados Acordos entre a Igreja e o Estado.
O exército federal
O exército, “consubstancial com o governo” no México de então, “considerava a Igreja sua adversária pessoal. Agente ativo do anticlericalismo e da luta anti-religiosa, fez sua própria guerra, sua guerra religiosa. O general Eulogio Ortiz mandou fuzilar um soldado no pescoço do qual vira um escapulário. Alguns oficiais conduziam suas tropas ao combate com o grito de Viva Satã!” (Meyer I, 146).
“Cada arma recrutava por sua conta. O alistamento devia ser voluntário e firmado ao menos por três anos”, condição que muitas vezes não se cumpria, tanto que “continuavam utilizando cordas para atar os voluntários. Lançavam mão de quaisquer: condenados por crime comum, trabalhadores desempregados, camponeses” e sobretudo “o subproletariado rural e indígena, vencidos ou não” (149-150). A brutalidade e a indisciplina desta tropa é tal, que nem se pode descrever.
Por não existir serviço de intendência, “a copeiragem estava a cargo das mulheres dos soldados, as famosas soldaderas, que marchavam ao lado do exército em campanha e como gafanhotos caíam nas fazendas e nos povoados... A deserção, freqüente em tempo de paz, chegava a ser massiva em tempo de guerra” (152). O general Amaro, chefe do exército federal, não conseguia “pôr em linha de combate mais de 70.000 homens, ainda que se passasse todo o tempo recrutando: 20.000 desertores em um ano, de 70.000 soldados!” (153). Este general famoso, o índio Amaro, filho de um peão de Zacatecas, homem inteligente, implacável e sanguinário, o que mandou sua aviação bombardear no cerro do Cubilete o monumento a Cristo Rei, tornou-se muito culto, e reconciliou-se com a Igreja vários anos antes de morrer.
Os federais, maus cavaleiros, eram piores soldados, que disparavam de longe, gastavam muita munição, perdiam as armas com facilidade, e não conheciam bem o terreno por onde andavam. Isto explica por que os cristeros, cujas características de luta eram as contrárias, lhes infligiram tantas baixas. Os callistas, isto sim, eram muito cruéis, mas “a dureza da repressão, a execução de todos os prisioneiros, a matança dos civis, o saque, a violação, o incêndio dos povoados e das colheitas deixavam na esteira dos federais outros novos levantamentos em germe” (I,194).
A guerra também se fazia na imprensa do governo, ocultando a magnitude do conflito ou dando sempre a vitória por iminente. Unida à luta militar, o general Amaro propugnava uma campanha de “desfanatização”, como aquela pela qual deu ordem ao governador de Jalisco de mudar os nomes de todos os lugares que tinham nome de santo (I, 178). Todos os meios valiam, e também o suborno. Assim, em certa ocasião, o governou tentou comprar um chefe cristero chamado “o 14”, o qual respondeu: “Que a mim não dêem nada, que se arranjem com os padrecos e as igrejas, que eu estou em paz; mas, enquanto não o conseguirem, não pensem que com dinheiro vão comprar-me” (177).
O desespero do governo ia crescendo à medida que passavam os meses, e que se via incapaz de vencer — nas palavras do governador de Colima — “as hordas episcopais de fanáticos que, enganados pelo palavrório clerical, se lançaram à louca aventura de restaurar o predomínio dos padres”.
Balanço da guerra
Em meados de 1928, os cristeros, uns 25.000 homens em armas, “já não podiam ser vencidos”, diz Meyer, “o que constituía uma grande vitória; mas o governo, sustentado pela força norte-americana, não parecia prestes a cair” (I,248). Em verdade, a posição dos cristeros era, em meados de 1929, melhor que a dos federais, pois, combatendo por uma Causa absoluta, tinham melhor moral e disciplina, e operando em pequenos grupos que atacavam e fugiam — piquihuye — sofriam muito menos baixas que os soldados callistas. Depois de três anos de guerra, calcula-se que nela morreram 25.000 a 30.000 cristeros versus 60.000 soldados federais.
Em fevereiro de 1929, o embaixador norte-americano Morrow — que insistia com o governo e a imprensa que não falassem de cristeros, mas de “bandidos” (I, 301) — julgava improvável pacificar o Estado “antes que se solucione a questão religiosa”. Em fevereiro os mesmos políticos viam um panorama muito negro, e um senador dizia em um discurso a seus colegas: “Nossos soldados não sabem combater camponeses ou não se quer que a rebelião acabe? Pois diga-se de uma vez, e não fiquemos a pôr panos quentes. Não se esqueçam senhores de que com três Estados mais que se levantem de fato, cuidado com o Poder Público, senhores!” (I, 285).
Em meados de 1929 via-se já claramente que, a menos a curto prazo, nem um lado nem o outro podia vencer. Não obstante, neste empate havia uma grande diferença: enquanto os cristeros estavam dispostos a seguir lutando o tempo que fosse necessário até obter a derrogação das leis que perseguiam a Igreja, o governo, vendo-se quebrado tanto em termos econômicos como em termos de prestígio diante das nações, tinha extrema urgência em terminar o conflito quanto antes. Eram estas, pois, algumas condições favoráveis para negociar o reconhecimento dos direitos da Igreja...
Rumores de um possível acordo
Desde meados de 1927 estava no comando supremo dos cristeros o general Gorostieta, militar de carreira, a quem iam chegando, de quando em quando, rumores de possíveis acordos entre a Igreja e o Estado pelas costas da Guarda Nacional cristera. Como estes rumores iam aumentando, em 16 de maio de 1929 escreveu aos bispos mexicanos uma longa carta, de que citamos um trecho:
“Desde que começou nossa luta, não tem deixado de se ocupar a imprensa nacional, e até a estrangeira, de possíveis acordos entre o chamado governo e algum insigne membro do Episcopado mexicano, para terminar o problema religioso. Sempre que tal notícia apareceu, sentiram os homens em luta que um calafrio de morte os invade, mil vezes pior que todos os perigos que decidiram enfrentar. Cada vez que a imprensa nos diz que um bispo está possivelmente em entendimentos com o callismo, sentimos como uma bofetada no rosto, mais dolorosa ainda porque vinda de alguém de quem poderíamos esperar um consolo, uma palavra de alento em nossa luta; alento e consolo que, com uma única muito honrosa exceção (Monsenhor Martínez y Zárate, bispo de Huejutla, desterrado há 17 anos), de ninguém recebemos.
“Se os bispos, ao se apresentar para tratar com o governo, aprovam a atitude da Guarda Nacional, se estão de acordo em que era já a única atitude digna que nos deixava o déspota, terão de consultar nosso modo de pensar e atender nossas exigências; nada temos que dizer neste caso...”
“Se os bispos, ao tratar com o governo, desaprovam nossa atitude, se não levam em conta a Guarda Nacional e tentam dar solução ao conflito independentemente do que nós ansiamos...; se se esquecem de nossos mortos, se não levam em consideração nossos milhares de viúvas e órfãos, então... rejeitamos tal atitude como indigna e traidora...
“Muitas e de mui diversa índole são as razões que cremos ter para que a Guarda Nacional, e não o Episcopado, seja quem resolva esta situação. Claro está, o problema não é puramente religioso; é este um caso integral de liberdade, e a Guarda Nacional se constituiu de fato em defensora de todas as liberdades e na genuína representação do povo, pois o apoio que o povo nos dá é o que nos fez subsistir...
“Como última razão, cremos ter direito a que nos escutem, se não por outra causa, pelo menos por sermos parte da Igreja Católica do México, precisamente por sermos parte importantíssima da Instituição que os bispos mexicanos governam” (+ Meyer I, 316-320).
Em 2 de junho de 1929 o general Gorostieta foi assassinado em uma emboscada pelos callistas, e o sucedeu à frente da Guarda Nacional o general Degollado.
Os «mal chamados Acordos» (21-6-1929)
A historia dos Acordos realizados em junho de 1929 é tão triste, que faremos dela uma referência muito breve, atendo-nos sobretudo à documentada informação que López Beltrán recentemente deu sobre o assunto. Monsenhor Ruiz y Flores, Delegado Apostólico ad referendum, escolheu como secretário para negociar Monsenhor Pascual Díaz y Barreto, o “único bispo que tinha mostrado decidido empenho em conseguir uma negociação com os callistas” (Lpz. Beltrán 499).
Ambos foram trazidos dos Estados Unidos ao México, incomunicáveis em um vagão de trem, pelo embaixador norte-americano Dwight Whitney Morrow, banqueiro e diplomata, protestante e maçom, cúmplice de Calles e do presidente Portes Gil. Já na cidade do México, continuaram incomunicáveis na luxuosa residência do banqueiro Agustín Legorreta. Não receberão nem os bispos mexicanos nem um enviado da Liga. Tampouco quiseram receber o bispo Miguel de la Mora, secretário do Subcomitê Episcopal, que mandou o aviso a Monsenhor Flores de que “tinha grandes e urgentes coisas para comunicar-lhe, e que não fosse firmar nada sem antes o ouvir”. As portas daquela casa, nestes dias, só estiveram abertas “para Morrow, para os sacerdotes estrangeiros: Wilfrid e Parsons e Edmundo Walsh, S.J. [especialista em política internacional da Universidade de Georgetown], para Cruchaga Tocornal, o embaixador do Chile, e para outros estrangeiros. Para os estranhos. Não para os mexicanos” (Lpz. Beltrán 516).
Pode-se afirmar, pois, que os dois bispos dos Acordos com Portes Gil não cumpriram as Normas escritas que Pio XI lhes havia dado, pois não levaram em conta o juízo dos bispos nem o dos cristeros ou da Liga Nacional; tampouco conseguiram, nem de longe, a derrogação das leis persecutórias da Igreja; e menos ainda obtiveram garantias escritas que protegessem os cristeros uma vez depostas as armas.
Só conseguiram do Presidente algumas palavras de conciliação e de boa vontade, e algumas Declarações escritas em que, sem derrogar lei alguma, se afirmava o propósito de aplicá-las “sem tendência sectária nem preconceito algum”. Dessa forma, os dois bispos, convencidos pelo embaixador norte-americano Morrow de que não era possível conseguir do Presidente mais que tais Declarações, e aconselhados por Cruchaga e pelo padre Walsh, que as “criam suficientes”, aceitaram o documento redigido pessoalmente em inglês pelo mesmo Morrow:
“O bispo Díaz e eu tivemos várias conferências com o Exmo. Presidente da República... regozijo-me em manifestar que todas as conversas se distinguiram por um espírito de mútua boa vontade e respeito. Em conseqüência de tais Declarações feitas pelo Exmo. Presidente, o clero mexicano renovará os serviços religiosos de acordo com as leis vigentes. Eu acato a esperança de que a renovação dos serviços religiosos [expressão protestante, própria de Morrow, seu redator] possa conduzir o Povo Mexicano, animado por um espírito de boa vontade, a cooperar em todos os esforços morais que existam para benefício de todos os da terra de nossos antepassados. México, D.F. 21 de junho de 1929. Leopoldo Ruiz, Arcebispo de Morelia e Delegado Apostólico” (Lpz. Beltrán 527).
As leis vigentes, claro, eram aquelas que haviam desencadeado a Cristiada. Para derrogar aquelas leis vigentes tinham morrido inutilmente vinte ou trinta mil cristeros?...
Frutos da Cristiada
Inutilmente lutaram, com tão grandes perdas e sofrimentos, os criteros e suas famílias? Em 1929, o jesuíta Eduardo Iglesias, com o pseudônimo de Aquiles P. Moctezuma, em El conflicto religioso de 1926, escrevia relativamente satisfeito: “Terminadas felizmente as conferências entre o Estado e a Igreja”... (441). Não é essa a interpretação mais comum. Mas também há atualmente aqueles que acreditam que os Acordos “foram um mal menor dentro das circunstâncias”. Assim o crê, por exemplo, Juan Landerreche Obregón, o qual, ademais, insiste em que os Acordos:
“de nenhuma maneira significaram que o esforço, o sacrifício e o sangue dos cristeros haviam sido inúteis para a liberdade da Igreja Católica e o respeito à religião e aos fiéis. Pelo contrário, os criteros demonstraram ao governo com seus sacrifícios, seus esforços e suas vidas que no México não se pode atacar impunemente nem a religião católica nem a Igreja... E tudo isto se demonstrou de forma tão convincente aos tiranos, que os obrigou não somente a desistir da perseguição religiosa, mas também a respeitar a religião e sua prática e seu desenvolvimento, apesar de todas as disposições da Constituição [de 1917] que a tanto se opõem, e que não são cumpridas, porque não se podem cumprir, porque o povo as rejeita... Os frutos [da Cristiada] foram recolhidos e se seguem recolhendo sessenta anos depois de sua luta, e seguramente culminarão a seu tempo na realização plena pela qual lutaram aqueles que deram esse testemunho” (Prólogo a E. Mendoza, Testimonio 4, 7-8).
Em 1993 o governo do México concedeu à Igreja um precário reconhecimento legal, como associação religiosa, e restabeleceu relações diplomáticas com a Santa Sé.
Um triunfo da maçonaria
Alguns dias depois dos Acordos alcançados, sobretudo, pelos maçons Morrow e Portes Gil, em 27 de junho de 1929, os maçons deram um grande banquete ao presidente Portes Gil, o qual falou, ao fim, “a seus reverendos irmãos”:
“Enquanto o clero foi rebelde às Instituições e às Leis, o Governo da República esteve no dever de combatê-lo... Agora, queridos irmãos, o clero reconheceu plenamente o Estado. E declarou sem reservas que se submete estritamente às Leis (aplausos). E eu não podia negar aos católicos o direito que têm de submeter-se às Leis... A luta [não obstante] é eterna. A luta foi iniciada há vinte séculos. Protesto ante a maçonaria que, enquanto eu estiver no Governo, se cumprirá estritamente esta legislação (aplausos).
“No México, o Estado e a maçonaria, ultimamente, foram uma mesma coisa: duas entidades que caminham conjugadas, porque os homens que nos últimos anos estiveram no poder souberam sempre solidarizar-se com os princípios revolucionários da maçonaria” (+ Lpz. Beltrán 540-541).
Alude à mesma revolução que assassinou García Moreno, e que tantas vitórias alcançou nos séculos XIX e XX na América hispânica com o apoio da maçonaria local e norte-americana. Portes Gil, mais tarde, em seu livro La lucha entre el Poder Civil y el Clero, deixou bem claro que “sua aparente capitulação [dos Bispos], à que deram o nome de Acordo com o Governo, não foi outra coisa que sua submissão incondicionalmente à Lei” (547). Em 1958, estranho à Igreja, morreu em Mixcoac, e em nota fúnebre publicada pela “Mui Respeitável Grã Loja Vale do México” era citado como “Membro Ativo e Grão Capitão de Guardas deste Supremo Conselho do Grau 33” (546).
Dissolução dos cristeros
O Chefe supremo da Guarda Nacional, general Jesús Degollado Guízar, dirigiu a todos os cristeros, “ainda que nos rasgue a alma”, uma patética mensagem de licenciamento, da qual retiramos o último parágrafo:
“A Guarda Nacional desaparece, não vencida por nossos inimigos, mas, em verdade, abandonada por aqueles que deviam receber, em primeiro lugar, o fruto valioso de seus sacrifícios e abnegação. AVE, CRISTO! Os que por Ti vamos à humilhação, ao desterro, talvez à morte gloriosa, vítimas de nossos inimigos, com o mais fervoroso de nossos amores, te saudamos, e, uma vez mais, te aclamamos.
REI DE NOSSA PATRIA.
VIVA CRISTO REI!
VIVA SANTA MARIA DE GUADALUPE!
Deus, Pátria e Liberdade”.
“Talvez à morte gloriosa...” Com efeito, pouco depois dos Acordos, o Governo, mostrando “o espírito de boa vontade e respeito” assegurado aos Bispos negociadores, começou, através de sinistros agentes, “o assassinato sistemático e premeditado” dos cristeros que haviam deposto as armas, “com o fim de impedir qualquer renovação do movimento... A caça de homens foi eficaz e séria, já que se pode arriscar, apoiando-se em provas, a cifra de 1.500 vítimas, das quais 500 chefes, da a patente de tenente à de general”
Também “se deve dizer, e isto honra aqueles homens, que mais de um general federal advertiu os cristeros do perigo que os ameaçava” (Meyer I, 344-346). De qualquer modo, ainda assim, mais chefes cristeros foram mortos depois dos Acordos do que durante a guerra.
Isto envolveu uma longa e duríssima prova para a fé dos cristeros, que, porém, se mantiveram fiéis à Igreja com a ajuda, sobretudo, dos mesmos sacerdotes que durante a guerra os haviam assistido.
Depois dos Acordos
O capelão dos cristeros de Colima, padre Enrique de Jesús Ochoa, em Los cristeros del volcán de Colima, conta que “chorou de verdade o mesmo senhor Ruiz y Flores quando se viu ludibriado, quando viu o fracasso daqueles Acordos, “se acordos se podem chamar”, segundo ele mesmo disse, escrevendo com seu punho e letra (em 1º de agosto de 1929)”.
E acrescenta: “Eu mesmo vi chorar o Papa [Pio XI] ao tratar o assunto dos acordos do México: L’ho veduto piàngere, dizia o Cardial Boggiani ao vice-presidente da Liga Nacional, Dom Miguel Palomar y Vizcarra; e ao que isto escreve, em Roma no ano de 1930” (+ Lpz. Beltrán 517).
A verdade é que os dois bispos dos Acordos, e especialmente Monsenhor Pascual Díaz, sofreram muito nos anos posteriores, e, ao menos por parte de alguns setores, padeceram um verdadeiro linchamento moral.
Recentemente publicava a revista 30 Dias (1993, n. 66) uma entrevista com a pintora mexicana Dolores Ortega, de 85 anos, que viveu de perto a Cristiada com seu marido, Carlos Díez de Sollano, um dos responsáveis da Liga Nacional. À pergunta: Por que os bispos assinaram os acordos? Responde: “Estavam confusos, e os enganaram. Depois dos acordos, convidamos para jantar Monsenhor Díaz, arcebispo do México. Estávamos comendo, e meu esposo lhe disse: “Escute-me, Ilustríssimo: Que me diz o senhor dos acordos?” Baixou os olhos, quase lhe saltaram as lágrimas, e disse-lhe: “Veja, Carlinhos, esse assunto, não me toques nele, causa-me muita dor. Enganaram-nos”. E continua o jornalista: Também os senhores se enganaram. Ao que responde a senhora Ortega: “Não, de modo algum. Nós sabíamos que era uma armadilha, que o Governo não respeitaria nunca os acordos Nós o sabíamos todos, os da Liga e os cristeros”. Sabiam os senhores que era um engano, que entregando as armas e deixando a clandestinidade a morte seria certa. Por que então o fizeram? “Porque assim mandava a Igreja. Por fidelidade, por obediência à Igreja”.
Crônica dos mártires
Assim foi. E ainda hoje poucos povos católicos, como o mexicano, amam tanto a seus Bispos e sacerdotes. Mas façamos a crônica dos mártires, o mais importante de tudo quanto ocorreu em torno da Cristiada.
Anacleto González Flores
Os mártires cristeros — no sentido estrito da palavra — foram muitíssimos, ainda que, como é lógico, somente alguns sejam reconhecidos e canonizados pela Igreja como tais. Não é fácil, pois, entre tantos heróis destacar alguns, mas vamos fazê-lo com Anacleto Gonzálvez Flores, que organizou a União Popular em Jalisco, impulsionou a Associação Católica da Juventude Mexicana e se distinguiu como professor, orador e escritor católico. O Mestre Cleto, como costumavam chamar-lhe com respeito e afeto, era um cristão muito piedoso como mostra o seguinte dado:
“Ao final do Rosário, os cristeros de Jalisco diziam esta oração composta por Anacleto González Flores: “Jesus misericordioso! Meus pecados são mais numerosos que as gotas de sangue que derramastes por mim. Não mereço pertencer ao exército que defende os direitos de vossa Igreja e que luta por vós. Quisera nunca haver pecado para que minha vida fosse uma oferenda agradável a vossos olhos. Lavai-me de minhas iniqüidades e limpai-me de meus pecados. Por vossa Santa Cruz, por minha Mãe Santíssima de Guadalupe, perdoai-me, não soube fazer penitência por meus pecados; por isso quero receber a morte como um castigo merecido por eles. Não quero lutar, nem viver, nem morrer senão por vós e por vossa Igreja. Mãe Santa de Guadalupe! Acompanhai em sua agonia este pobre pecador. Concedei que meu último grito na terra e meu primeiro cântico no céu seja Viva Cristo Rei!” (Meyer III, 280).
Pois bem, em 1o. de abril de 1927, foi aprisionado com três rapazes colaboradores seus, os irmãos Vargas, Ramón, Jorge e Florentino. “Se me procuram”, disse, “aqui estou; mas deixem em paz os outros”. Foi inútil seu pedido, e os quatro, com Luis Padilla Gómez, presidente local da A.C.J.M., foram internados num quartel de Guadalajara. Ali interrogaram sobretudo o Mestre Cleto, pedindo-lhe nomes e dados da Liga e dos cristeros, bem como o lugar onde se escondia o valente arcebispo de Guadalajara, Francisco Orozco y Jiménez. Como nada obtiveram dele, despiram-no, suspenderam-no pelos polegares, flagelaram-no e sangraram-lhe os pés e o corpo com lâminas de barbear. Ele lhes disse:
“Só lhes direi um coisa: trabalhei com todo o desinteresse por defender a causa de Jesus Cristo e de sua Igreja. Os senhores me matarão, mas saibam que comigo não morrerá a causa. Muitos estão atrás de mim dispostos a defendê-la até o martírio. Vou-me, mas com a certeza de que verei prontamente, do Céu, o triunfo da Religião e da minha Pátria”.
Atormentaram, então, na sua frente, os irmãos Vargas, e ele protestou: “Não se aproveitem de moços; se querem sangue de homem, aqui estou!” E a Luis Padilla, que pedia confissão: “Não, irmão, já não é tempo de confessar-se, mas de pedir perdão e perdoar. É um Pai, não um Juiz, quem nos espera. O teu próprio sangue te purificará”. Atravessaram-lhe então o lado com um golpe de baioneta, e, como sangrava muito, o general ordenou a execução, mas os soldados escolhidos se negavam a disparar, e foi preciso formar outro pelotão. Antes de receber quatorze balas, ainda conseguiu Anacletro dizer: “Eu morro, mas Deus não morre! Viva Cristo Rei!”
E em seguida fuzilaram Padilla e os irmãos Vargas (+ Rivero 131-133).
Os beatos mártires do México
Uma vez suspenso o culto no México em 31 de julho de 1937, a imensa maioria do clero, uns 3.500, obedecendo a seus Bispos, recolheu-se nas grandes cidades, controladas pelo governo, com o que os civis e combatentes do campo ficavam sem pastores. Estes sacerdotes, ainda que sujeitos a estrita vigilância e, por vezes, a maus tratos, geralmente não correram perigo de morte.
Ao contrário, os sacerdotes que permaneceram no campo fizeram-no com seriíssimo risco, conscientes de que, se fossem presos, seriam executados, muitas vezes com sadismo, já que o governo pensava que “fuzilando sem compaixão todo sacerdote apanhado no campo, obrigava os demais, aterrorizados, a refugiar-se na cidade”, e esperava assim que, “deixando os camponeses sem sacerdotes, sufocaria rapidamente a rebelião” (Meyer I, 40).
Calcula-se que cem ou duzentos permaneceram no campo, escondidos com a proteção dos fiéis, que em muitos casos foram também executados por dar-lhes refúgio. López Beltrán, considerando os anos 1926-1929, dá o nome de 39 sacerdotes assassinados, e o de um diácono, um menorita e seis religiosos (343-4). Guillermo Ma. Havers recolhe os nomes de 46 sacerdotes diocesanos executados no mesmo período de tempo (Testigos de Cristo en México 205-8). Muitos destes padres pertenciam à arquidiocese de Guadalajara (Jalisco, Zacatecas, Guanajuato) ou à diocese de Colima, pois seus prelados, Monsenhor Orozco y Jiménez e Monsenhor Velasco, permaneceram em seus postos, com boa parte de seu clero.
Em 22 de novembro de 1992, João Paulo II beatificou vinte e dois destes sacerdotes diocesanos, destacando que “sua entrega ao Senhor e à Igreja eram tão firmes, que, ainda tendo a possibilidade de se ausentar de suas comunidades durante o conflito armado, decidiram, a exemplo do Bom Pastor, permanecer entre os seus para não privá-los da Eucaristia, da palavra de Deus e do cuidado pastoral
Longe de todos eles acender ou avivar sentimentos que lançassem irmãos contra irmãos. Ao contrário, na medida de suas possibilidades procuraram ser agentes de perdão e reconciliação”. A Conferência do Episcopado Mexicano, no livro Viva Cristo Rei! (México, 1991), dá-nos breves resenhas biográficas dos 25 mártires que foram beatificados (outras resenhas deles e de outros tantos, também de leigos e religiosos: + Lpz. Beltrán 243-487; Havers, Testigos de Cristo en México). Aqui nos limitaremos a recordar seus santos nomes, com as datas de seu martírio.
Em 1915: David Galván Bermúdez, na perseguição de Carranza (30-1).
Em 1926: Luis Batis Sainz, e com ele três paroquianos da Ação Católica, Manuel Morales, casado, Salvador Lara Puente, e seu primo David Roldán Lara (15-8), também beatificados.
Em 1927: Mateo Correa Magallanes (6-2); Jenaro Sánchez (18-2); Julio Álvarez Mendoza (30-3); David Uribe Velasco (12-4); Sabas Reyes Salazar (13-4); Cristóbal Magallanes, com seu coadjutor Agustín Sánchez Caloca (25-5); José Isabel Flores (21-6); José María Robles (26-6); Miguel de la Mora (7-8); Margarito Flores García (12-11); Pedro Esqueda Ramírez (22-11).
Em 1928: Jesús Méndez Montoya (5-2); Toribio Romo González (25-2); Justino Orona Madrigal (1-7); Atilano Cruz Alvarado (1-7); Tranquilino Ubiarco (5-10);
Em 1937: Pedro de Jesús Maldonado (11-2), em uma perseguição desencadeada em Chihuahua, no tempo do presidente Lázaro Cárdenas, outro general (1934-40).
“A solenidade de hoje [Cristo Rei]”, destacava João Paulo II na cerimônia de beatificação, “instituída pelo Papa Pio XI precisamente quando era mais vigorosa a perseguição religiosa do México, penetrou muito fundo naquelas comunidades eclesiásticas e deu uma força particular a estes mártires, de maneira que ao morrer muitos gritavam: Viva Cristo Rei!”.
A todos, deve-se acrescentar o nome do padre jesuíta Miguel Agustín Pro Juárez, beatificado pelo papa João Paulo II em 25 de setembro de 1988. Diferentemente dos sacerdotes já recordados, ele estava na cidade do México, por ordem de seus superiores, dedicando-se ocultamente ao apostolado. Por ocasião de um atentado contra o presidente Obregón, foram aprisionados e executados os autores do golpe, e, com eles, foram também eliminados o Padre Pro e seu irmão Humberto, que eram inocentes (23-11-1927) (+ Rafael Ramírez Torres, Miguel Agustín Pro; e Luis Butera, Un mártir alegre. Vida del P. Miguel Pro).
O espírito dos cristeros
Mas voltemos aos cristeros, àqueles católicos que se alçaram em armas, lançando-se ao monte “para defender seu Deus, sua Religião, sua Mãe, que é a Santa Igreja”. Traremos acerca deles alguns dados e observações, seguindo principalmente Jean Meyer, que estudou largamente a Cristiada, e entrevistou durante quatro anos muitos antigos cristeros. Dois avisos prévios:
1. Note-se que os dados refletem um tempo, até 1970, em que o povo mexicano estava havia um século e meio independente de Espanha, e havia um século submetido a perseguição religiosa contínua por parte dos governos liberais, a partir de Juárez.
Recordemos que em 1917 a Constituição estabelece a educação leiga. Em 1934 se impõe ao povo a educação socialista, e Calles proclama indispensável que a Revolução se apodere “das consciências da infância e da juventude”, porque ambas “devem pertencer” à Revolução (353) — à revolução liberal ou à revolução socialista, dá no mesmo. E em 1946 se volta à educação arreligiosa. Mas sempre, e em todo o caso, “foi constante a atitude que supõe que é o Estado quem tem o direito de educar, direito negado expressamente à Igreja e não reconhecido aos pais de família” (Acevedo 357).
2. Advirta-se também que a imensa maioria dos cristeros era de agricultores modestos, gente do povo, ainda que também se unissem a eles alguns estudantes, acadêmicos ou trabalhadores. Os ricos católicos, diga-se de passagem, quase nunca os ajudaram, ainda que os cristerosnecessitassem sempre deles, sobretudo para comprar armas e munição. Pois bem, os questionários mostram que, entre os cristeros, “cerca de 60% não haviam ido jamais à escola”, ainda que nem todos fossem analfabetos, pois muitos tinham aprendido a ler em casa (III, 272).
Mostram, não obstante, uma surpreendente cultura, e, mais concretamente, uma profunda cultura cristã. Já conhecemos, por exemplo, a voz de Ezequiel Mendoza Barragán, camponês michoacano de Coalcomán, que nunca foi à escola, e que chegou a ser um célebre coronel dos cristeros. Jean Meyer, que conheceu Mendoza quando este tinha já 75 anos, confessa: “Fiquei deslumbrado, fascinado, pela misteriosa energia que dele irradiava” (pról. Testemunho). E em outro lugar diz que “todas as entrevistas confirmam o caráter representativo de Ezequiel Mendoza”, e que sua linguagem era “especialmente clara e bela” (III, 289).
Espiritualidade católica. Em entrevistas, crônicas e cartas de cristeros, causa admiração comprovar a qualidade doutrinal, bíblica e poética de suas expressões. Tudo isso contradiz abertamente o menosprezo de alguns pedantes acerca da veracidade do cristianismo entre os indígenas da América. Os cristeros, concretamente, tinham em si toda a força de quem sabe estar fazendo a vontade de Deus. “Conscientes de fazer a vontade de Deus”, diz Meyer, “os cristeros podiam resistir a todas agressões militares, a todas as desditas espirituais e até à mais terrível de todas: os acordos e o pouco apoio clerical” (289). Essa fidelidade à vontade de Deus providente os fazia inquebrantáveis.
Ezequiel Mendoza, por exemplo, dizia à sua gente: “Não, homens, lembrem-se de que aqui pedimos a Deus o que mais nos convier, e por isso não digamos, desatinados, ‘logo as coisas vão mudar, de um momento para outro’; ‘a folha da árvore não se move sem a grande vontade de Deus’, paciência e resignação” (289). Em certa ocasião, segundo ele mesmo refere, assim exortava os seus: “Não queremos companheiros que tragam fins torcidos, queremos homens que de todo o coração queiram agradar a Deus em tudo, sem outro interesse senão o de defender a sua Igreja, nossa Mãe; já que seus ferozes inimigos a querem exterminar, ainda que não o consigam, porque foi dito por Nosso Senhor Jesus Cristo que ‘as portas do inferno não prevaleceram contra ela’; e o que Cristo prometeu, o cumpre; também disse que ‘passarão os céus e a terra, mas suas palavras não passarão’. Além disso, temos nossa Rainha e Mãe, a Virgem de Guadalupe, e ela nos recomendará a seu Pai, a seu Filho, e a seu esposo, o Espírito Santo. Mais ainda, contamos com todos os santos e santas do Céu e da terra, para que eles roguem a Deus por nós em todo o tempo e lugar, e, se Deus está conosco, não tenhamos medo de morrer em defesa da Igreja e da Pátria, seremos mártires e iremos para o céu por todo o sempre” (Testemunho 31).
Por seu lado, Aurelio Acevedo, um simples agricultor de Zacatecas, assim animava a sua tropa: “Vós, valentes sem mácula, pensai sempre que ides rumo ao Calvário; pensai que ides ao martírio, cume por onde se entra no Céu da Paz e do eterno gozo. Todo redentor tem de ser crucificado a fim de que triunfe e seja glorificado. Não esqueçais que esta lição é mais clara que o sol que nos ilumina: lembrai-vos de Jesus!” (Meyer III, 275).
E outro chefe, Pedro Quintanar, dizia a suas tropas: “Todo o bem que há em vós é de Deus somente e... todo o mau que há em vosso regimento é vosso. A Deus deve-se atribuir todo o bem e toda a glória e todo o triunfo, pois vós sois instrumentos vis” (289).
Práticas religiosas. A guerra foi para muitos cristeros como exercícios espirituais continuados. A missa sobretudo era, quando havia sacerdote, o mais apreciado pelos cristeros, o centro de tudo, cada dia. Mais ainda, “nos acampamentos cristeros, quando isto era possível, o Santíssimo Sacramento ficava exposto, e os soldados, em grupos de quinze ou vinte, praticavam a adoração perpétua. A comunhão freqüente era a regra... Os sacerdotes que permaneciam com os cristeros passavam o tempo confessando, batizando, casando, organizando exercícios espirituais e fazendo missões” (III, 278).
Mas “era freqüente que já não existisse sacerdote, e então um irmão tomava a direção da vida religiosa, como Cecilio Valtierra, o qual todas as manhãs lia o Ofício da Igreja em presença dos fiéis, e todas as tardes conduzia o Rosário. Estas missas brancas iam acompanhadas de outras inovações” (III, 277). “Os cânticos e o Rosário acompanhavam todos os instantes da vida, na marcha ou no acampamento. Os cristeros oravam e cantavam a altas horas da noite, rezando coletivamente o Rosário, de joelhos, e cantando as laudes à Virgem ou a Cristo, entre as dezenas” (III, 279).
Está fora de dúvida que de sua fé cristã tiravam os cristeros toda a sua abnegação e coragem para a guerra. Não eram valentes apesar de serem homens piedosos; eram antes valentes porque eram piedosos.
Somente um exemplo: em certa ocasião, em que os cristeros haviam sofrido várias baixas e estavam tristes, o general “Degollado lhe fez rezar o rosário, após o qual os exortou: ‘Porque Cristo Rei levou os nossos, já vocês se acovardaram, já se esqueceram de que ao alistar-se nas fileiras de Seu exército Lhe ofereceram seus serviços e suas vidas? [...] Deus, sem necessidade de usar de combates, dispõe de nossas vidas quando a Ele Lhe apraz... Deixem suas armas ao pé do altar, que eu nunca serei chefe de covardes”. As tropas choravam e gritavam: “Não, meu general! Seguiremos sendo os valentes de Cristo Rei, e, se não, ponha-nos à prova” (Meyer I, 232).
Idéia do governo e da guerra. Os cristeros tinham da guerra, e da perseguição que a causou, uma idéia muito mais teológica que política. Nas entrevistas, algumas vezes também se reflete certa visão política do conflito. Por exemplo, “para os cristeros, o turco Calles, vendido à maçonaria internacional, representava o estrangeiro ianque e protestante, desejoso de terminar sua obra destruidora (a anexação de 1848 é conhecida de todos, e a situação de sub-homens dos chicanos do Texas e Novo México...), descatolicizando o país” (III, 285).
Não obstante, prevalecia largamente a visão teológica da guerra. Conheciam bem, em primeiro lugar, o dever moral de obedecer às autoridades civis, pois “toda autoridade procede de Deus”, mas também sabiam que “se deve obedecer a Deus antes que aos homens”, quando estes faziam guerra a Deus. Viam claramente na perseguição do governo uma ação poderosa do Maligno.
Ezequiel Mendoza, por exemplo, considerava os governantes de sua pátria “endiabrados callistas, maçons e protestantes maus, que somente buscam as comodidades do corpo e a satisfação de seus caprichos neste mundo enganador e não crêem que os espera um inferno de tormentos eternos, pobres morcegos que se crêem aves e são ratos” (III, 283). E dizia: “Ai dos tiranos que perseguem a Cristo Rei, bestas humanas de que nos fala o Apocalipse! Todos devemos ter muito presente as bem-aventuranças de que nos fala Nosso Senhor Jesus Cristo: pobreza de espírito, lágrimas de contrição, justa mansidão, fome e sede de justiça, misericordiosos, os de coração limpo, os pacificadores, os bons quando são perseguidos pelos maus, como nos perseguem os Calles agora, dizem que porque somos muito maus, que somos obstinados querendo defender a honra e glória daqu’Ele que morreu despido na cruz mais alta e entre ladrões, por ser Ele o pior de todos os humanos, que não quis submeter-se ao supremo da terra. É o que dizem eles, porque lhes falta um domingo e os redobres de tambor, mas nós os daremos com a ajuda de quem ressuscitou dos mortos no terceiro dia, e que, porque nos ama, nos deixou por Mãe a sua própria Mãe” (III, 287).
Este tom profundamente bíblico era o da Cristiada. É a visão do Apocalipse: Satã, o dragão infernal, a antiga serpente, dá sua força à Besta, poder maligno intramundano, que faz guerra aos santos e a quantos guardam o testemunho de Jesus. Neste sentido, os cristeros estavam indizivelmente mais próximos do Apocalipse de São João que da teologia da libertação moderna.
Com toda a razão o Cardeal Ratzinger afirmava que “a teologia da libertação, em suas formas conexas com o marxismo, não é certamente um produto autóctone, indígena, da América Latina ou de outras zonas subdesenvolvidas, nas quais teria nascido e crescido quase espontaneamente por obra do povo. Trata-se, em verdade, ao menos em sua origem, de uma criação de intelectuais; e de intelectuais nascidos ou formados no Ocidente opulento” (Informe sobre a fé, 207). A espiritualidade popular real é a de Ezequiel Mendoza e seus companheiros, cheia de ressonâncias da Bíblia e do catecismo.
O martírio. A teologia do martírio entre os cristeros não é menos rica que a das Paixões dos primeiros séculos, ainda que muitas vezes vá em clave de humor. “Que fácil está o céu hoje, mamãe!”, dizia o jovem Honório Lama, que foi executado com seu pai (III, 299). “É preciso ganhar o céu agora que está barato”, dizia outro (298). Norberto López, que rejeitou o perdão que lhe ofereciam se se alistasse com os federais, antes de ser fuzilado, disse: “Desde que me armei, tive o propósito de dar a vida por Cristo. Não vou perder o jejum 15 para o meio-dia” (302).
Em Sahuayo assassinaram, um a um, 27 cristeros, que morreram, um a um, dando vivas a Cristo Rei; mas pouparam a vida de Clarudio Becerra, por ser muito jovenzinho. Mais tarde, com grande tristeza, ia este pedir junto ao sepulcro de seus companheiros martirizados: “Companheiros, peçam a Deus que eu vá para o céu para acompanhá-los”. Bebia então demasiado, e, quando o padre o censurou, ele disse: “Embebedo-me, Padre, porque tenho a sensação de que Deus não me quis para mártir” (Lpz. Beltrán 66-70)...
Uma vez mais a voz do patriarca Mendoza: “Vocês e eu lamentamos de coração o falecimento destes homens que de boa-fé ofereceram suas vidas, família e demais interesses terrenos, derramaram seu sangue por Deus e por nossa querida pátria, como o fazem os verdadeiros mártires cristãos; pois seu sangue, unido com o de Nosso Senhor Jesus Cristo e com o de todos os mártires do Espírito Santo, nos alcançará de Deus Pai os bens que esperamos na terra e no Céu. Ditosos os que morrem por amor ao Deus que fez os céus e a terra, e que em tudo está por essência, presença e potência, não como os deuses falsos de Plutarco Elias Calles e de outros loucos desviados por Satanás, que lhes oferece os bois e a carreta desta vida e depois os faz coisa horrenda, quente e gorda no inferno dos tormentos” (III, 299).
A morte tranqüila dos cristeros, com freqüência depois de terríveis tormentos, impressionava sempre os federais. Morriam perdoando e gritando Viva Cristo Rei! E o povo guardava suas palavras, recolhia seu sangue, enterrava seus corpos, comparecia em massa a seus funerais, quando eram possíveis, em protesto silencioso e confissão de fé.
Alegria. A alegria também estava sempre presente, como é lógico, nestes homens que estavam arriscando a vida por Cristo, passando indizíveis misérias e penas. Em crônicas e escritos sempre há sinais de alegria e de humor. Conta Ezequiel Mendoza que seu pai, em certa ocasião, arriscando a vida, ficou segurando uma porteira para que escapasse um grupo de cristeros. Os federais atiravam repetidamente, sem notá-lo. Assim que ele, sem soltar a porteira, “como que raivoso, virou o rosto e repreendeu o inimigo, disse: Imbecis, atirar para cá, parece que não vêem gente” (Testemunho 37). Como estas, há inúmeras anedotas cristeras.
Espiritualidade bíblica e tradicional
Sendo a Bíblia e a Tradição eclesiástica as fontes permanentes da espiritualidade cristã, o qualificativo de tradicional, em seu sentido mais genuíno, é tão precioso como o de bíblico. Pois bem, a espiritualidade dos cristeros é claramente bíblica e tradicional. Jean Meyer sublinha com força ambas as notas: “Ficamos admirados pelo número e exatidão das citações bíblicas. A idéia de um povo católico ignorante da Bíblia não é válida para o camponês mexicano desta época. Nos casarios distantes da paróquia se liam-na de pé, ou melhor, formava-se um círculo em torno daquele que sabia ler” (307).
Tampouco há mariolatria na devoção à Virgem: “O culto da Virgem ee Guadalupe não é distinto do que recebe na Rússia (800 lugares de peregrinação marianos!), na Polônia ou na França” (309). Meyer afirma diversas vezes “a indiscutível catolicidade da fé mexicana” (309).
“A religião dos cristeros era, salvo exceção, a religião católica romana tradicional, fortemente enraizada na Idade Media hispânica. O catecismo do P. Ripalba, sabido de memória, e a prática do Rosário, notável pedagogia que ensina a meditar diariamente sobre todos os mistérios da religião, da qual ministra assim um conhecimento global, dotaram esse povo de um conhecimento teológico fundamental assombrosamente vivo. Cristo era conhecido em sua vida humana e em suas dores, e com Ele pode o fiel identificar-se com freqüência; era amado, ademais, no grupo humano que o rodeia: a Virgem, o patriarca São José, patrono da Boa Morte, e todos os santos, que ocupavam um lugar muito grande, completamente ortodoxo, na vida comum; adoravam-n’O no mistério da Trindade. Esta religião próxima do fiel, qualificam-na de superstição os missionários norte-americanos (protestantes e católicos), e os católicos europeus não a julgam de maneira distinta” (307). Não obstante, “o cristianismo mexicano, longe de estar deformado ou ser superficial, está sólida e exatamente fundamentado em Cristo, é mariano por causa de Cristo, e sacramentalmente, por conseguinte, orientado para a salvação, a vida eterna e o Reino. Durante a guerra, os santos se retraem notavelmente até seu próprio lugar, enquanto se manifesta o desejo ardente do céu” (310).
México católico
A profundidade da evangelização realizada no México durante séculos ficou absolutamente provada quando, depois de mais de um século de contínuas perseguições liberais, socialistas e revolucionárias, os cristeros ofereceram ao mundo este testemunho formidável de espiritualidade e de martírio.
Voltemos, pois, ao princípio, e escutemos a voz franciscana de um dos primeiros evangelizadores, Frei Toribio de Benavente, Motolinía. O que ele disse do México, di-lo-emos aqui, para terminar nossa história; e o diremos pensando em toda a América hispânica:
“Ó México, que tais montes te cercam e coroam! Agora com razão voará tua fama, porque em ti resplandece a fé e evangelho de Jesus Cristo! Tu, que antes era mestra de pecados, agora és professora de verdade; e tu, que antes estavas em trevas e obscuridade, agora dás resplendor de doutrina e cristandade” (Ha de los indios III, 6, 339). “Pois concluindo digo: Quem não se espantará vendo as novas maravilhas e misericórdias que Deus faz com esta gente?... Estes conquistadores e todos os cristãos amigos de Deus devem muito alegrar-se de ver uma cristandade tão completa em tão pouco tempo, e inclinada a toda a virtude e bondade. Portanto, rogo a todos os que isto lerem que louvem e glorifiquem a Deus desde o íntimo de suas entranhas; digam estes louvores que se seguem, segundo São Boaventura: “Louvor e bênçãos, engrandecimentos e confissões, graças e glorificações, exaltações, adorações e satisfações se façam a vós, Altíssimo Senhor Deus Nosso, pelas misericórdias para com estes índios recém-convertidos à vossa santa fé. Amém, Amém, Amém” (II, 11, 283).
(Extraído do livro Hechos de los Apóstoles en América, de José Maria Iraburu.)