Pelo menos você já ouviu falar disso? De 1926 a 1979, no México, todo um povo cristão armado de facões e velhos bacamartes enfrenta, ao canto de Christus Vincit, os regimentos federais que arvoram a bandeira negra com tíbias cruzadas e que gritam: Viva o Demônio!
Chamam-no os Cristeros. Sua epopéia assinalou-se com mortes e deu à Igreja universal mais mártires do que a reconquista espanhola, dez anos depois. A Cristiada entra na comunhão dos santos em igualdade de condições com os do levante católico e realista da Vendéia. No entanto, ela é conhecida somente de alguns especialistas.
“A dimensão do fenômeno cristero”, diz muito bem Jean Meyer, “é encarecida pelo cuidado que dispensaram os censores em calá-lo. É notável a coincidência entre Igreja e Estado, que mostram a mesma obstinação em apresentar uma versão oficial, truncada e comum: houve conflito entre as duas instituições, pois o heroísmo e o patriotismo dos clérigos e o dos homens de Estado permitiram, conforme as versões, lograr um modus vivendi em que cada qual entrevê a sua vitória. Nesta versão de duplo sentido, só há um ausente: o povo em armas que, durante três anos, resistiu a todas as forças administrativas, econômicas e militares do Estado mexicano, solidamente escorado nos Estados Unidos.”.
De fato, a história não consta dos arquivos oficiais do Vaticano e do México. É desconhecida de nossos manuais escolares. É censurada no México pelos manipuladores da opinião pública. Se conseguirmos encontrar vestígios dela em alguma enciclopédia contemporânea, resumir-se-ão em três parágrafos que contarão a versão “comum e truncada” que aos poderosos agrada.
A verdadeira chacina dos cristerosnada teve de militar, como se mostrará: foi uma conspiração maçônica, sempre ativa, na qual se dão as mãos bispos e comissários da revolução.
Quanto à narração dos dias e dos sofrimentos, ao furor dos combates, tudo isso supõe o conhecimento da alma mexicana, pela qual começamos. Encontros de cronista católico, não obra de historiador.
ENCONTROS EM JUMILTEPEC
Don Pablo dirigia tenso nessas estradas terríveis do interior mexicano, com tanto mais segurança quanto ele nada conhecia da estrada e do ponto de chegada. Tínhamos partido pela madrugada à procura de um vilarejo indígena perdido, a leste, na direção dos vulcões de Michoacan; um vilarejo cujo nome parecia ter saído de um conto infantil: Jumiltepec. O vigário, refratário às duas revoluções mexicanas — a política e a episcopal — motivava essa curiosidade.
Eu encontrara don Pablo à saída de uma conferência bastante convencional, organizada pelo meu editor mexicano. Ele vivia só e era pródigo em palavras; logo fizemos amizade. Noventa quilos, um tórax formidável, don Pablo metralhava um espanhol sonoro e desordenado que nada tinha de mexicano. Condenado à morte por ser proprietário de terras, ele fugira, havia 25 anos, do paraíso de Fidel Castro. Ele, que nunca achava tempo para frear e assim poupar a suspensão do seu Ford, nas lombadas, parava todos os negros que passavam pela estrada, presumindo-os cubanos, e conversava sobre o país. O enorme charuto havana que nunca lhe saía da boca — tudo o que lhe restava da ilha — queimava duas vezes mais rápido, pelas duas extremidades simultaneamente... Quando o negro estourava de riso ao ouvir os suplícios que don Pablo reservava para Fidel Castro, o Ford tornava a sacolejar.
— Um charuto, amigo?
— Obrigado, basta-me a poeira da estrada.
— Que procura no México, Sr. Kéraly?
— A fé.
Don Pablo meditou nessa resposta com uma opulenta baforada. Aproveitei a ocasião para melhor explicar:
— A fé... os cristeros... a Revolução.
— O Sr. leu Meyer.
— Nada se pode ocultar de você. Mas Jean Meyer é mestre de conferências na universidade de Perpignan e está fazendo carreira. Ele não é dos nossos, tenho dúvidas sobre o método e as motivações.
— Esse é o problema. Meyer esteve aqui na maré de maio de 1968. Ele interrogou alguns chefes militares... enfim, os que ainda vivem numa semiclandestinidade, e deixou uma tese de três volumes, editada em espanhol, no México. Ela contém muitos documentos essenciais, mas nem todos. Meyer não nega que seja homem de esquerda e confessa ter partido de um ponto de vista “pessoalmente hostil” aos cristeros. Ponto de vista que se modificou consideravelmente, chegando mesmo a inverter-se ao tomar contato com o assunto. No entanto, o preconceito “populista” permanece evidente. O papel dos intelectuais é bastante minimizado, bem como o dos citadinos e o da Ação Católica da Juventude Mexicana, que fica omisso. Meyer parece um pouco prisioneiro da mentalidade de maio de 68. Contudo, se existe uma história insurrecional em que todas as classes sociais conseguiram unir-se, sem dúvida a Cristiada é uma delas... O Pe. Luis certamente falar-lhe-á disso... Se conseguirmos achar Jumiltepec!
FÉ DE MEXICANO
— Entrementes, fale-me do México cristão. É a primeira vez que ponho os pés nestes planaltos.
— Bem, comecemos pelo começo. Os Estados Unidos do México ocupam um território equivalente a quatro vezes a França, do Atlântico ao Pacífico, na parte inferior do continente norte-americano.
— Grato, don Pablo. Já notara isso em meu Atlas.
— Observando melhor, você teria visto que estamos no âmago da questão: o país apresenta 2.600 km de fronteira comum com os “States of America”. É a sua desgraça permanente... Conhece o adágio: “Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”?
— É uma expressão cruel, de diplomata, verdadeira quanto à sua segunda parte. Sem os Estados Unidos, os mexicanos gozariam hoje de um governo católico, oriundo da insurreição cristera. Teríamos um México próspero e radiante. Os americanos não quiseram assim. Puseram todo o seu peso — até o militar — na balança de uma revolução de agitadores sanguinários e corruptos. Seus motivos não eram somente ideológicos. O México enfraquecido é um excelente campo de caça para os negocistas e um estalão comparativo lisonjeiro ao turismo ianque. Os mexicanos engolem, silenciosamente, todos os dias, essa humilhação. Já percebeu isso?
— Com efeito, há uma semana que vivo a repetir “No soy gringo” a título de apresentação. Noutro dia devolveram-me 100 pesos, numa loja, ao saberem que eu era francês. Comigo todo o prazer do roubo desaparece... Mas voltemos ao México dos cristeros.
— Sua população é de 15 milhões de habitantes e caracteriza-se, ainda hoje, por sua religião. O maior país católico do mundo é sem dúvida o Brasil. Mas o país mais católico do mundo certamente é o México. Com exceção dos bárbaros da Nomenclatura, corpo estranho à essência nacional, todos aqui se deixam batizar... Sem desmerecimento. Observou os povoados que atravessamos? Em nove décimos a igreja está fechada. Não há padres. Na região montanhosa, certos vilarejos de índios esperam dois, três anos pela visita do sacerdote para se porem em festa e receber os sacramentos!
Aliás, não havia necessidade de insistir. O extraordinário apego do povo mexicano à sua fé católica é visível por toda a parte. Na catedral do México, diante das grades de um altar lateral da Virgem — fecham todos eles, do contrário neles se instalariam acampamentos noite e dia — eu mesmo surpreendi um rapazote de 13 ou 14 anos que parecia tão possuído de amores quanto mergulhado no álcool; literalmente o rapaz brigava com sua “Madrecita” por causa de uma jovem que lhe batera a porta no nariz. Envergonhado com a cena tão descosida, o fedelho, quando deixei o local, estava de joelhos a entoar canções bem doces em honra de sua Mãe dos Céus, a fim de pedir-lhe perdão.
Para as bandas de Morelia, Patzcuaro, Ouretaro, nos lugares de culto mariano, vi os índios honrar suas imagens da Virgem Negra expondo interminavelmente toda a sorte de problemas de consciência ou domésticos. Eles rezam de joelho, em família e de braços cruzados. Ao se retirarem, andam de modo que nunca dêem as costas à imagem da “Madre” ou ao Santíssimo Sacramento... Que lição para as nossas paróquias desfalecidas!
Atravessávamos um novo vilarejo nesse domingo de manhã. Don Pablo chamou-me a atenção para um grupo de pessoas. Diante da porta fechada da pequena igreja colonial, os camponeses estavam reunidos. Pedi a don Pablo que parasse o carro, e ele saudou com o charuto o extraordinário quadro. O lugarejo inteiro recitava o Rosário, com a cabeça descoberta ao sol do meio-dia, sob o olhar mórbido de dois policiais de botas imundas e com a baioneta calada... Quantas vezes os cristãos teriam arrebentado a porta para poder entrar na casa que é deles!
— O México não poderia mostrar-lhe nada de melhor como símbolo da perseguição, Sr. Kéraly... Quer continuar?
BANDIDOS E POLICIAIS
Circulávamos agora numa pequena estrada erma, onde o charuto de don Pablo dava sinais incomuns de vigilância, a despeito de ser fraquíssimo o trânsito. Logo percebi o motivo. Após uma curva, a nossa dianteira foi ocupada por uma barreira humana ouriçada de armas de fogo e que parecia ter saído de um desenho animado.
— Bandidos, apontou sobriamente o meu guia... Não há problema, segure-se apenas.
Don Pablo parou o carro sem o menor solavanco (a primeira vez durante a viagem) a cinqüenta centímetros de um valentão imenso, bem colocado sobre as pernas no meio da estrada, e que gesticulava com um belo revólver mexicano. Baixando o vidro, o amigo cubano fez-lhe sinal para que se aproximasse. Quando o bandido mal dera um passo, don Pablo engatou a primeira ao mesmo tempo que expelia uma tríplice baforada do havana. O artifício teve êxito: o carro mergulhou numa torrente de argila, de fumaça, de cascalho, deixando nossos pistoleiros furiosamente desnorteados. No cinema, a astúcia é clássica. No mundo real, contudo, é preciso muito sangue-frio para praticá-la, quando os canos das armas brilham ao sol e estão a um metro do pára-brisa.
— Poderia surpreendê-los se se fizessem de maus — explicou don Pablo, com a honesta intenção de me tranqüilizar... Ele já se inclinava para pegar o seu grosso calibre que estava sob o assento, quando sua atenção foi atraída por um caminhão da policia. Os policiais, contrariamente aos bandidos, nada fizeram para nos deter. No entanto, eles estavam estacionados a 500 metros da barreira armada! O cubano, que corria a mais de 110 Km, fez uma saudação aos policiais, reacendeu o charuto e explicou-me:
— Não julgue, meu amigo, que esses homens lá estejam para proteger-nos. Eles fiscalizam o trabalho dos ladrões e abocanham seu pequeno lucro no fim do dia. A maior parte dos guardas contenta-se com uma cota fixa. Os mais gulosos exigem uma percentagem: os carros dos turistas americanos são bastante rendosos... Essa instituição, quase nacional, chama-se a “mordida” e bem merece o nome que tem. Nosso pobre México oferece o privilégio de manter o mais numeroso, mais ávido e mais corrompido corpo de funcionários de todo o continente. A importância de um agente do serviço público mede-se aqui pela quantidade de pesos/dias que seus galões permitem extorquir da população... Nenhum motorista mexicano interpelado pela polícia procurará sua carteira de habilitação. Nesses momentos, o sinal vermelho é negociado por cerca de 10 pesos, sendo 20 pesos a tarifa noturna. Quando é fim de mês, o agente beneficiário de sua infração pode conceder um abatimento. Não peça, porém, para falar com o comissário: você seria depenado até o último centavo. O mais humilde suboficial protege suas porcentagens. Aliás, não há outro meio de sobreviver. O homem está endividado até o pescoço para comprar seu cargo a algum amigo do ministério que, por sua vez, estipendia o seu próprio superior hierárquico. O qual alimenta a “caixa” do ministro que é explorado por um cunhado do presidente. No exército o circuito das “mordidas” é ainda mais sofisticado. No vértice, um general, que recebe 12.000 pesos de soldo no papel, embolsará 75.000 pesos mensalmente de seus fiéis subordinados. Temos de reconhecer-lhe a atenuante de ter muitas despesas!
— Apesar de tudo, don Pablo, é o México o único pais do mundo em que o principal trabalho da polícia consiste em verificar se os burgueses são assaltados dentro do regulamento pelos bandidos de estradas...
— Sim, o único também em que a magistratura se contenta em aplicar aos criminosos que podem pagar uma taxa de absolvição. Assalto: 500 a 2.000 pesos; ferimentos: 5.000; homicídio: 25.000 (suplemento no caso de parricídio: 100.000 pesos!) etc. O México da corrupção socialista é uma serpente ocupada em devorar-se a si mesma pela cauda... Mas o Sr. erraria se julgasse o temperamento mexicano pela cupidez de funcionários que constituem um corpo estranho à alma autêntica do país. Em pouco tempo descobre-se aqui o povo mais doce, mais acolhedor, mais cristão dentre os que mais o sejam. A graça particular do povo mexicano, tão profundamente mestiçado, é uma herança indígena, em que o amor da paz terá sempre a última palavra. O restante, seu falar, sua honra, sua cortesia, sua fé, vem-lhe da colonização espanhola, que foi precisamente o contrário daquilo que o governo mexicano insiste em fazer crer hoje ao mundo inteiro... Já viu os afrescos “realistas” do palácio governamental do México?
— Horríveis. Julgar-se-ia estarem Moscou.
— Aí começa a mentira do México oficial. Os revolucionários contam-nos a história do Império espanhol conforme a imagem do que eles mesmos são hoje: escravagistas. Na realidade, a “civilização” mirabolante dos astecas não conhecia nem a abóbada nem a roda. Ela acabou dominada por uma terrível casta bolchevista que utilizava crianças como animais de carga para erigir seus altares e reservava para si o sangue de milhares de virgens em cada inauguração. A população servilizada festejou a vitória dos conquistadores como uma verdadeira libertação. Com a Espanha, o índio saiu de uma carnificina cotidiana, regulamentada como um calendário monástico pelos adoradores da lua. Ou adoradores do Demônio.
Don Pablo não tomava fôlego, mas nada inventava. Escutando-o, eu sonhava com o que a fé cristã fizera dessa doçura indígena enfim libertada. Em sua virtude de submissão visível nas coisas mais cotidianas, como nas relações com os pais. Em qualquer circunstância o mexicano dirige-se a eles ternamente — papacito, mamacita — com o hábito que têm dos longos diminutivos... No entanto, nas famílias em que fui recebido, qualquer que fosse a idade dos filhos, eu os vi ajoelhar-se antes de sair para receber a bênção dos pais. Quanto aos sacerdotes dignos desse nome, o católico mexicano cerca-os de uma veneração tanto mais emocionante quanto ela se efetua dentro de formas mundanas. O amor permanece para além das palavras.
Don Pablo informou-se na praça de um povoado que Jumiltepec estava próximo. Um camponês, que passava a cavalo, confirmou a informação.
Pe. Luis esperava-nos na residência paroquial, na parte alta do vilarejo, com vestes civis incrivelmente remendadas: ele teria conseguido um papel na filmagem de O Poder e a Glória, sem a menor modificação. O padre reconheceu don Pablo, pediu-me que me sentisse em casa e foi enfiar sua batina. Não era ela muito mais nova que suas calças. Pediu-nos que desculpássemos a ele.
— O camponês que me preveniu da chegada não sabia dizer-me se os senhores eram civis ou policiais... Uma desgraça nunca vem só; escolhi a prudência, perdoem-me.
O México é, com efeito, o único país do mundo “livre” (para os inocentes) onde portar uma batina constitui delito sancionado por lei. A multa é de cerca de 50 pesos na primeira infração. Quando da visita do Papa, em 1979, foi preciso que a polícia “fechasse os olhos”... Esta regulamentação não impede que o clero progressista durma (ele sente-se bem no uniforme de blusões pretos), mas complica enormemente as coisas para os tradicionalistas, que devem esconder a batina num saco para andar na cidade!
Pe. Luis é desses. Por isso a polícia mexicana não é a única a persegui-lo. Sua paróquia fica no centro de uma região montanhosa, onde quase todas as igrejas estão condenadas. Falta de padres. Aos domingos, numerosos mexicanos não hesitam em fazer três horas de marcha, debaixo do sol, para chegar a Jumiltepec, e outras tantas pela tarde para voltar. Pe. Luis, porém, celebra a missa católica tradicional, latina e gregoriana, segundo o missal romano de S. Pio V. Terrível provocação ao bispo de Cuernavaca, que jurou arrancar a sua cabeça, a sua batina e a sua pele... Os paroquianos de Jumiltepec contentar-se-iam com o escalpo de Méndez Arceo. Infelizmente o homem raspa a cabeça todas as manhãs, como se fosse isso uma oração.
— Parece que o Sr. tem diante de si um vigário suspens a divinis. Observe, nada é certo: por razões misteriosas, o correio de Cuernavaca jamais vem até aqui. Tampouco o pessoal do bispado. Não temos ligação regular pela estrada, e nenhum carro puxado a cavalo aceitaria levar-me ao Ordinário do lugar. Tenho de aceitar o que não posso mudar, não é?
Já vira muito em Jumiltepec para perceber que nesse recanto perdido, longe dos discursos oficiais do México, os cristeros continuavam vivos.
O BOLCHEVISMO MEXICANO
— Conhece a história do México, Sr. Kéraly?
— Bem, Sr. Padre, fora de casa os franceses são de uma ignorância tão beata quanto ilimitada.
— É pena. O sangue dos mártires cristeros banha a história de uma longa perseguição, que começa antes de Lenine e está longe de terminar. Há aqui uma Igreja do silêncio. Invisível aos turistas, os quais se prefere escandalizar com os rigores da colonização espanhola. No entanto, a história do México contemporâneo é a que se deveria contar a todos os aspirantes ao “socialismo de feição humana”: a história de uma revolução permanente conduzida por um partido de funcionários e oficiais contra o sentimento nacional de nosso belo país, que se confunde com a sua religião.
— O Sr. disse antes de Lenine?
— Sim, em 1911. Ascensão ao poder dos agentes do estrangeiro. Nós os chamamos “ianques” porque provêm dos territórios desérticos do Norte mexicano, fronteira com os Estados Unidos. Esses aventureiros são protestantes, franco-maçons, marxistas, freqüentemente assassinos sem fé nem lei e, em qualquer caso, violentamente anticatólicos. E, como não lhes falta atrevimento, são eles que identificam no clero (e especialmente o episcopado mexicano) um “partido do estrangeiro”; sob as ordens do Vaticano... Observe que, em certo sentido, a seqüência de nossa história vai dar-lhes razão: a solução final do problema cristero, imposta pela hierarquia católica, é justamente a do partido ianque do México e dos canhões americanos! Contudo, não antecipemos... A Constituição revolucionária do México, ainda em vigor, remonta a 1917, grande data nas conquistas do Demônio. Na realidade, ela é mais bolchevista do que americana, uma vez que instituiu a ditadura suprema do Estado: todos os corpos intermediários, e especialmente os sindicatos católicos, foram postos na ilegalidade... A lei prevê uma cascata de artigos anti-religiosos. Mas o General Obregón teme a força da Igreja mexicana, não a julga amadurecida para o “compromisso histórico”, e não apressa a sua aplicação. Contenta-se, administrativamente, em tornar impossível a vida ao clero.
— É Calles o Anticristo?
— Como indica o seu nome, Calles vai pôr no poder toda a escória da capital e programar com ela o genocídio do cristianismo mexicano. Em 1911, nossa revolução pretendia ser principalmente política e anticlerical por simples imitação. Ela se torna escatológica, para não dizer apocalíptica, a partir de 1924. Calles empreende fragmentar toda a sociedade mexicana. É ele que impõe a fuzil a aplicação da sinistra “reforma agrária” que ainda hoje arruína terras e pessoas. Não sei se o Sr. teve oportunidade de observar, o México de hoje reúne os vícios dos dois modelos dominantes: todas as misérias de um capitalismo sem freio nas concentrações urbanas superpovoadas; todas as do socialismo no nosso interior árido e sovietizado. Com os mesmos fenômenos de rejeição verificados na União Soviética. Meus paroquianos vivem de expedientes. As mesmas conseqüências para o exército dos necessitados. Poder-se-ia levantar um mapa da fome mexicana, e nenhum estado da federação ficaria excluído! Foi o Presidente Calles quem impôs a pregação do ateísmo nas escolas do governo. “Únicas, gratuitas, obrigatórias”, lembra-lhe isso alguma coisa, Sr. Kéraly? Gostaria que o Sr. consultasse nossos manuais escolares, dir-se-ia que se traduziu a linguagem bolchevista (jamais faltaram ao México “conselheiros” para essa tarefa). Foi Calles, sempre ele, quem confiou ao exército a aplicação das leis anti-religiosas do regime precedente. Para compreender a sublevação dos cristeros, é preciso entender que no México da revolução callista — como na pátria dos soviéticos — os poderes políticos e militares são estreitamente confundidos. O exército só abriga comissários nos postos chaves, só recruta aventureiros, permanece anticatólico, antifeudal, antifamiliar, e foi ele que fez a revolução...
Fomos interrompidos pela chegada de um camponês, que girou por muito tempo a aba do grande sombrero antes de desembuchar:
— Prenderam o prefeito de Atlatlauhcan!
— É bem perto daqui. O vilarejo é construído em torno de um dos mais velhos mosteiros mexicanos. Seu prefeito quer obter a abertura da capela, e que se celebre lá a missa. Já o prenderam várias vezes por esse delito. Necessito inteirar-me dos fatos. Enquanto isso, consulte os meus “samizdats” na biblioteca. Eles lhe contarão, melhor do que eu, a perseguição de nossa fé.
UMA IGREJA DO SILÊNCIO NA AMÉRICA LATINA
Pe. Luis falava de “samizdats”, pois todas as memórias do México cristero foram publicadas sob pseudônimos, numa semiclandestinidade de que ainda não saíram. Interroguei mais tarde dois ou três sobreviventes; trouxe para a França todos os volumes que os meus amigos mexicanos me arrumaram, para neles encontrar a certeza de que o pároco de Jumiltepec nada distorcera.
O antiteísmo do exército federal mexicano, sob a presidência de Calles (1924-1928), não é um conceito vazio.
De início ele impôs-se pelo terror. O General Eulogio Ortiz mandou fuzilar imediatamente um de seus soldados que fora surpreendido, ao banhar-se, com uma medalha da Virgem de Guadalupe.
Ora aqui, ora ali, os oficiais investiam a cavalo contra a casa do Senhor. Profanam as santas espécies, organizam orgias sobre os altares, blasfemam e dançam com as estátuas! Toda a hierarquia militar é filiada às lojas maçônicas: essas têm por missão “desfanatizar” o México, extirpando-lhe a fé. Certa feita, na igreja de São Joaquim do México, o General Amaro, ministro da guerra, reúne o estado-maior para dirigir-lhe o seguinte sermão: “A Igreja Católica Apostólica e Romana e seu clero transformado em partido político, rapace, reacionário e retrógrado têm sido a causa única de todas as infelicidades que oprimem o México desde a conquista espanhola... Na interminável série de revoltas e de golpes de Estado que devastam o país há séculos, tem sido o clero o elemento instigador e mais poderoso, em virtude de seus recursos materiais e de sua identificação absoluta com todos os inimigos da Revolução” .
Do lado de fora os soldados persignam-se às ocultas, consternados. O exército mexicano, porém, nomenclatura do regime, conta em mais de 40% com oficiais. Alguns estados punem com multa de 10 pesos — uma fortuna para os camponeses — a menor alusão, em público, ao nome do Todo-Poderoso. Já não se pode dizer “adiós” nem “se Deus quiser”... Os próprios mendigos estão obrigados a mudar a sua litania.
Inventa Calles incríveis medidas para limitar o número de sacerdotes, até aquelas que os deixarão a todos na ilegalidade. Os governadores vão além dele. Uma lei de 28 de fevereiro de 1925, promulgada pelo estado de Tabasco, “proíbe o exercício do ministério” aos sacerdotes que não reunirem as seguintes condições:
1º) “Ser tabasquenho ou mexicano de nascimento, com cinco anos consecutivos de residência no Estado” (para eliminar as congregações e ordens religiosas que possuem uma maioria de padres espanhóis).
2°) “Ter mais de quarenta anos” (o clero mexicano, em que não faltam as vocações, é, então, o mais jovem do mundo).
3°) “Ter feito seus estudos primários e secundários nas escolas (bolchevistas) do Estado”.
4°) “Oferecer bons antecedentes de moralidade” (a propaganda anticlerical no México pretende impor o mito da devassidão eclesiástica; empreendimento destinado ao fracasso num país em que a maioria dos sacerdotes sai do povo e vive com o povo em estreita comunidade).
5°) “Ser casado” (sem dúvida, no espírito dessa lei, para oferecer bons antecedentes de moralidade é mister renunciar ao celibato... Como é preciso “ter mulher para viver santamente”, segundo uma tradução de São Paulo no Lecionário do episcopado...!)
6°) “Não responder a nenhum processo judiciário” (condição inexeqüível para um sacerdote, sob o regime do Presidente Calles) .
Certamente não se poupam os fiéis. Eis o texto de uma proclamação oficial, fixada nas portas das igrejas ao abrir-se o verão de 1926:
“Art. 1º Qualquer indivíduo responsável por uma igreja será condenado a 50 pesos de multa e a um ano de prisão se os sinos soarem.
Art. 2º A mesma penalidade a todas as pessoas que ensinarem os filhos a rezar.
Art. 3º A mesma penalidade para as casas em que se encontrarem imagens de santos.
Art. 4º Qualquer pessoa que trouxer consigo medalhas e cruzes estará sujeita à mesma punição.”
(e assim sucessivamente, até o art. 30) .
Paralelamente às profanações, a artilharia do exército federal passa a destruir os edifícios religiosos. Em todo o estado de Tabasco, na véspera da Segunda Guerra Mundial, só restavam de pé a igreja de Cunduacán, transformada em guarnição, e três capelas de vilarejo, perdidas entre os montes. A revolução mexicana proibia militarmente que o povo restaurasse as ruínas, e ela mesma nada reconstruiu. Ainda hoje, seus museus funcionam em conventos confiscados à Igreja, e seus governadores ocupam palácios episcopais... Todas as revoluções se assemelham em seu niilismo.
FOGO NA PÓLVORA
Desfere-se o último golpe com a lei federal de 14 de junho de 1926. Parece inspirar-se diretamente no despotismo editado na França pelos maçons. De nada carece: expulsão das congregações religiosas, especialmente as que se dedicam ao ensino; inventário dos bens de Igreja para fins de nacionalização (de início utilizá-los-á para alojar suas tropas e para armazenar munições), colocação fora de lei de todas as organizações profissionais não-governamentais, isto é, católicas, etc.
Visam-se particularmente as religiosas. Prendem-nas em todo o país. Simples religiosa: um a dois anos de prisão, sem nenhuma atenuante. Superiora: seis anos. A revolução timbra em conservar certo respeito pela hierarquia.
A 2 de janeiro de 1926, os católicos mexicanos, posto que endurecidos por 15 anos de perseguição diária, esfregam os olhos ao descobrir o pormenor das sanções previstas em lei, nas colunas do Jornal Oficial do México: “O ensino será leigo para todo o mundo: uma multa de 500 pesos punirá os contraventores... Corporações religiosas: 500 pesos de multa... Pessoas que encorajassem um menor a pronunciar votos: prisão imediata, sem consideração de parentesco... Ministros do culto, porte de vestimentas eclesiásticas: 500 pesos... Encobrimento ou dissimulação de um bem da Igreja: dois anos de prisão... Autoridades municipais que tolerassem ou encorajassem esses delitos: 1.000 pesos de multa e destituição.
O ponto decisivo da perseguição callista é o Registro dos sacerdotes, medida equivalente ao juramento da Revolução Francesa. Todos os ministros do culto público são convidados manu militari a passar sob o controle direto do poder civil. O menor pároco do interior deve apresentar-se ao comissariado e assinar compromisso de não proselitismo religioso. Sob pena de multa. Entrementes, a detenção, a tortura e o pelotão de fuzilamento.
(É preciso salientar que, a respeito desse ponto crucial do registro dos sacerdotes, o episcopado jamais cederá às pretensões do México. Saudemos essa coragem, sem exageros. Roma não teria permitido, seria uma adesão manifesta à Revolução; tampouco nada minimizar: há poucos atos de bravura episcopal que assinalar, na epopéia dos cristeros.)
Estamos no início do verão de 1926. Está o povo mexicano intimado a defender-se ou a perecer com a sua fé. Sua resistência é imediata, unânime, exemplar. E TODA A INICIATIVA CABE ÀS ORGANIZAÇÕES DOS LEIGOS, que começam por esgotar todas as vias pacíficas sem resultado algum. Os católicos mexicanos improvisam por toda a parte imensas manifestações penitenciais, especialmente nos centros mariais: “Fazia-se penitência, entrando de joelhos na igreja e recitando o rosário, para que Deus afastasse a revolução, para que o sangue não corresse” . “Os atos de penitência não tinham conta... Peregrinações todos os dias, pela manhã e pela tarde, recitando o rosário ou a Via Crucis, coroados de espinhos e descalços” .
Dirigir-se-ão petições ao Congresso, solicitando a ab-rogação das leis anti-religiosas (artigos 3º, 5º, 19, 23, 27 e 130) da Constituição. Os estudantes da ACJM, ala militante da Liga Nacional Defensora de la Libertad Religiosa, conseguirão, em alguns dias, dois milhões de assinaturas. Dois milhões num país em que a maioria dos cidadãos não sabe escrever, sem falar na dificuldade das comunicações... O presidente da Câmara responderá, em setembro de 1926, que nada recebeu!
Vieram em seguida a ocupação das igrejas e as manifestações de rua: marcha-se até os palácios governamentais, com cartazes e estátuas, sob a proteção do Santíssimo Sacramento. Reuniões reprimidas a fogo de metralhadoras pesadas pelos regimentos federais. Os primeiros mártires cristeros contam numerosas mulheres e crianças, que desfilam armadas de rosários e vestidas de branco.
Meyer cita esse episódio — que é de 28 de março — no estado de Aguascalientes: “O Governador Elizade, emparelhando em zelo com o seu colega de Tabasco, convocara sua clientela para lançá-la ao assalto da Igreja de São Marcos. Os católicos, que montavam guarda havia um mês, deram o rebate, e os atacantes tiveram de recuar diante da multidão. Reforçados por 200 soldados armados de três metralhadoras, voltaram à carga. O combate durou até as duas horas da manhã, fazendo numerosos mortos e 256 feridos. Quatrocentas pessoas foram sumariamente condenadas e expulsas do estado. Únicas provas de sedição apresentadas ao tribunal: duas pistolas, algumas facas e um saco com pedras.”
A última iniciativa, lançada pela Liga de Defesa da Liberdade Religiosa, mostrava engenhosidade. Mandou-se circular uma lista de todas as lojas, monopólios e serviços que no México eram de propriedade do Estado. Subentendia-se a ordem. As famílias católicas já não tomavam o trem, o barco, a diligência: privavam-se de espetáculos, feiras e corridas; suspendiam-se todas as encomendas que não fossem rigorosamente necessárias à vida. Em suma, organizava-se o bloqueio econômico do governo. Somente o pequeno comércio de artigos de alimentação podia sobreviver ao naufrágio geral da economia.
Lição admirável: os católicos mexicanos provam aos seus colonizadores ianques que lhes importa muito mais a salvação de suas almas, que ela permanece, para eles, acima de todos os progressos materiais da civilização. Seríamos capazes de fazer o mesmo?
QUE FAZ O EPISCOPADO?
Era a pergunta que eu mesmo me fazia quando o Pe. Luis voltou de Atlatlauhcán. O prefeito do vilarejo fora objeto de uma queixa do Ordinário do lugar: ele (prefeito) forçara as portas de sua igreja, com toda a população, para ouvir a missa católica tradicional, na diocese de Méndez Arceo! Pe. Luis não se fez de rogado para voltar à situação da Igreja mexicana, em julho de 1926:
— O sangue cristão, o Sr. sabe agora, derramou-se por toda a parte. Nossos bispos contemporizaram. Em nome de uma “moral evangélica” que a verdadeira fé mexicana abomina, já reduzida a um neutralismo lamuriante, eles pregam aos fiéis moderação e paciência. Secretamente o arcebispo do México procura obter do Vaticano que este tome, em seu lugar, a responsabilidade de uma decisão, diante da guerra imposta pelo governo maçom.
Pio XI desejava um acordo a qualquer preço e também o episcopado mexicano. A 23 de julho envia-se D. Tito Crespi, legado apostólico, ao ministro do Interior. O prelado multiplicou as concessões: contentar-se-ia com o compromisso verbal do governo mexicano, o qual, em troca da assegurada docilidade clerical, “amoleceria” a aplicação da lei. Nada disso se verificou. Tejeda permanecia inflexível. Sobretudo a respeito do artigo 19 (registro dos sacerdotes), que abria a porta à formação de um clero do Estado... Nesse mesmo dia, Roma decidiu a questão. Foi o telegrama do Cardeal Gaspari ao Comitê Episcopal mexicano, cujo texto o senhor deve ter lido em meus “samizdats”: “Santa Sé condena lei e ao mesmo tempo qualquer ato que possa significar ou ser interpretado pelo povo fiel como aceitação ou reconhecimento da referida lei. O episcopado mexicano deverá seguir por norma de ação o critério da maioria, se possível da unanimidade, e dar o exemplo da concórdia.”
— O critério da “maioria”, isso não é muito romano...
— Sem dúvida. Contudo, na situação do povo mexicano era perfeitamente eloqüente. Toda uma nação exigia a ab-rogação dos artigos anticristãos. Calles respondeu agravando o dispositivo. Urgia, pois, renunciar ao diálogo e portar-se de outra maneira. Poucos apelos à resistência política, em toda a história da Cristandade, foram tão claramente legítimos quanto este. Imediatamente o episcopado compreendeu que já não podia recuar. No dia seguinte à resposta romana, 24 de julho, o episcopado decreta uma medida absolutamente inédita que deveria entrar em vigor no dia 31 do mesmo mês: a SUSPENSÃO DO CULTO PÚBLICO. Pela primeira vez, na igreja universal, o clero cessa, em toda a parte, de celebrar a missa, suspende a administração dos sacramentos em todos os lugares de culto abertos aos 15 milhões de católicos mexicanos.
— Mas é contraditório!
— Não. A resposta era coerente e lógica, já que se tratava de responder ao inaceitável decreto do “registro” (estabelecem-se condições impossíveis para a continuação do culto público? A igreja mexicana celebrará apenas em capelas privadas!) A astúcia episcopal teria sido corajosa e plenamente católica, se os bispos tivessem organizado imediatamente, se tivessem permitido a entrada do clero nas catacumbas, ao lado do povo mexicano, que ocultava espontaneamente os seus padres. Como ainda ocorre em Jumiltepec. Tudo estava pronto... A Hierarquia, contudo, ordena aos párocos do interior que se reúnam nas cidades ao abrigo das capelas privadas. E os nossos padres, que tinham 20 anos, que estavam dispostos a todos os sacrifícios, dobram-se diante do Ordinário e de sua solução fácil. Convencem-nos, sem muito trabalho, que desobedecer ao bispo, ainda que por fidelidade ao povo, que é, no momento, a igreja crucificada, é desobedecer ao Papa. Como censurá-los?
— Não conte comigo para dizer-lho. Esse drama não se extinguiu na Igreja com a morte de Pio XI e dos bispos mexicanos.
— O Sr. está indo muito rápido... Voltemos ao mês de julho de 1926. Uma centena de padres somente, talvez 110 (em 3.500), ignoram as ordens do episcopado. Eles vão oferecer suas vidas ao lado dos cristeros. Numerosos regimentos entrarão em combate sem o socorro dos sacramentos. Quanto às damas do México, nada lhes faltará. Fala-se que até a esposa de Calles sustentava seus capelães... Outros tiveram de comprar a proteção dos membros do governo. Verdadeiras fortunas foram gastas pelo episcopado mexicano. Até hoje existem sinais de reconhecimento que não enganam. Eis tudo. O Sr. já sabe tudo o que é preciso saber, Sr. Kéraly, e que se oculta há meio século ao mundo inteiro, sobre as origens do levante.
Quando deixei Jumiltepec em companhia de don Pablo, meu amigo cubano, caía a noite. Fomos saudados cerimoniosamente por todos os mais idosos do vilarejo. Vários mostravam ainda, no rosto, as cicatrizes da última cruzada católica do novo continente. Solicitavam tão-somente que se contasse na França sua verdadeira história e que se dissesse que a perseguição continua. Por isso tive de deixar a palavra às duas gerações mexicanas que se confundem no sofrimento da barbaria revolucionária, do General Obregón a López Portillo. Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do México, tem sua guarda de honra nas colinas de Jumiltepec.
PELA GRAÇA DE DEUS
Julho de 1926. O destino do catolicismo mexicano oscila no plano do extraordinário. Ele vai juntar-se, recordando-os no sangue dos pobres, aos maiores momentos do levante da Vendéia. O governo mexicano não acredita no que lhe telegrafam seus funcionários. Menos ainda os bispos.
Eis que esse povo, que tudo suportara do despotismo maçônico, como dos bandidos que assolavam o México: o chicote, a espoliação, a miséria — esse povo humilde e submisso, pronto a atirar o chapéu à passagem dos ricos e poderosos, esse povo que abandonou a César, no sangue e nas lágrimas, suas terras, riquezas e liberdade, sua honra nacional, esse povo que continua a ser o mais doce do continente americano, não suporta que seja privado dos sacramentos de sua religião.
O clero pelo menos deveria ter compreendido, pelo que sabia desse povo (os índios choravam à narração da Paixão), que o católico mexicano de 1926 levaria a sério os ensinamentos de sua religião: nem só de pão vive o homem, e só a morte espiritual deve temer-se. Entrava o país na cruzada que lhe haviam ensinado. Os cristeros, porém, estão conscientes de entrar em combate só porque são batizados. Prova é a resposta da brigada Quintanar ao vigário que lhe suplica que se deixem degolar evangelicamente: “Sem vossa permissão e sem vossa ordem, lançamo-nos nessa luta bendita pela liberdade da fé. É pois sem a vossa permissão e sem a vossa ordem que a levaremos adiante até a vitória ou a morte. Viva Cristo Rei! Viva a Virgem de Guadalupe! E viva o México!”
Cruzada sem sacerdotes. Com os dois pés nas misérias, no mistério e na glória a que nos chama hoje o sorriso do Deus feito homem, para o perdão dos pecados.
AS FORÇAS EM PRESENÇA
Nos primeiros dias do ano de 1926, a Igreja já não possui personalidade legal para o governo mexicano. O general Plutarco Elías Calles, presidente da República, acaba de assinar um “projeto de lei” que visa a agravar o art.130 da Constituição imposta em 1917 pelos bolchevistas do novo continente. Ele não esperará a aprovação pelas Câmaras (27 de outubro de 1926) para estender os malefícios do projeto a todos os estados mexicanos: pela astúcia, pela força e até pelo derramamento de sangue.
O decreto presidencial dá competência às autoridades federais para legislar em matéria de disciplina eclesiástica. Todas as igrejas se tornam propriedade do governo. Os ministros do culto são objeto de um estatuto à parte, único então na história das relações entre a Igreja e o Estado: são postos sob controle judicial e esbulhados de todos os seus direitos. O mais simples governador tem licença de fixar-lhes o número por decreto, em sua jurisdição, e de impor o castigo, o exílio ou o banimento aos recalcitrantes.
Coroamento de uma conspiração muito antiga de maçons e protestantes ianques que, constantemente, se aliam aos ditadores mexicanos para esmagar o catolicismo mexicano. Nos clubes americanos diz-se que no México os progressos da Ciência, do Esporte e duma educação popular assegurada pelo Estado estão em vias de triunfar sobre as fábulas obscurantistas e retrógradas impostas pelo clero a um povo ignorante. O próprio Pio XI — que na primeira parte de seu pontificado não pode ser acusado de integrismo — adivinhou as terríveis perseguições que se anunciavam sob essa propaganda. Ele transmite sua inquietude aos bispos mexicanos, vítimas de “um governo inimigo da Igreja”, cujos arrestos “não merecem sequer o nome de leis”. Por intermédio dos bispos, o Papa convoca os fiéis a fazer o “melhor uso de seus direitos e deveres”, apesar dos interditos oficiais, “para o bem supremo da pátria e da religião” .
FALA UM BISPO
No começo de fevereiro de 1926, El Universal publica uma estrepitosa entrevista de D. Mora y del Río, arcebispo da capital mexicana: “A doutrina da Igreja é invariável, enquanto verdade revelada... Nós encetamos uma campanha contra as leis injustas e contrárias ao direito natural. Nós, episcopado, clero, fiéis, declaramos não reconhecer os artigos 3º, 5º, 7º, 27 e 130 da Constituição em vigor, contra os quais lutaremos. Essa posição nos é ditada pela fé e pela religião, e seria traí-las se nada fizéssemos” .
Examinemos mais de perto a questão. O artigo 3º proibia aos sacerdotes e às corporações religiosas o exercício do ensino. O artigo 5º considerava corrupção de menores, punida com prisão, a aceitação de votos monásticos pelos superiores dos conventos. O artigo 27 desapropriava, em proveito do Estado, todos os bens móveis e imóveis das “associações religiosas denominadas igrejas”. (Calles jamais aplicará esta medida às igrejas reformadas; contra o clero católico, ao contrário, a lei apela para a delação: “A presunção será suficiente para fundamentar na justiça o ato de denúncia”.) O artigo 130, enfim, com que Pio XI justamente se inquietava, fornecia as receitas jurídicas e policiais para aplicar ao clero, segundo a expressão de Jean Madiran, a “técnica sociológica da escravatura”.
Todas as associações de leigos — a Liga para a Defesa da Liberdade Religiosa, a Associação Católica da Juventude Mexicana e a União Popular — nas quais repousaria o peso da resistência, subscrevem logo ao non possumus do prelado mexicano.
Calles explode. Ele convoca seu chefe de polícia, o gen. Roberto Cruz, ao seu gabinete: — O que eles fizeram é um desafio ao governo e à Revolução. Não estou disposto a tolerar isso.
A 6 de fevereiro, o arcebispo é indigitado: o verbo “lutar”, usado em sua declaração, constituiria uma ameaça direta à segurança do Estado. Prudente, D. Mora também mantém o protesto da Igreja, mas retira a palavra. Alega que nenhuma recusa de reconhecer a lei, nenhum apelo direto à resistência figurava em suas declarações ao repórter de El Universal, que teria manipulado a declaração a fim de agradar à direção do jornal.
Sem referir-se ao prelado, La Vanguardia, órgão da Liga para a Defesa da Liberdade Religiosa, restabelece a integridade da posição católica: “O direito da Igreja é anterior ao do Estado... Rejeitamos antecipadamente qualquer ato ou manifesto, emane donde emanar, que seja contrário à liberdade da religião” . Esse episódio basta para mostrar com que força de resistência os direitos da Igreja poderão contar a partir de agora.
A 10 de fevereiro de 1926, Calles convoca um conselho de ministros extraordinário para precipitar a aplicação dos decretos anti-religiosos. O clero, que fazia o impossível para obedecer aos bispos e permanecer “dentro da legalidade”, será a vítima privilegiada desses arrestos. Um primeiro contingente de 200 sacerdotes estrangeiros é conduzido à força a Veracruz, onde a polícia os embarca, na 3ª classe, no Espanha, em direção a Cuba. Noventa e três conventos e colégios católicos são fechados no Estado do México, e 104 no conjunto dos outros Estados. Os estabelecimentos que permanecem abertos são rebatizados com nomes leigos e expurgados de qualquer simbolismo religioso.
Paralelamente, tal como o artigo 58 do Código Penal de Lenine no arquipélago Gulag, o art. 13 é posto em funcionamento. Ao sabor de sua imaginação, mais ou menos fértil em crueldade, os governadores limitam o número de padres. O do estado do México decreta que bastarão 140, para a população de um estado que ultrapassa então um milhão de batizados. Em Colima a administração autoriza um sacerdote por grupo de 2.500 habitantes (depois os limita a 15 para todas as cidades do Estado). Em Jalisco, um sacerdote para 5.000 habitantes. Em Yucatán, um para 10.000. Em Durango, um para 20.000. Em Tabasco, um para 30.000. O governador do Estado de Campeche emite, ao todo, três habilitações.
A despeito de toda a prudência, já não são beneficiados os prelados. D. Caruana, o novo núncio apostólico americano enviado por Pio XI para evitar o conflito, tinha atravessado a fronteira do México em 4 de março de 1926. Ele a cruzará no sentido contrário no dia 12 de maio entre dois policiais, sob a acusação de ter violado o artigo 130 da Constituição, escondendo das autoridades mexicanas seu nascimento, profissão e sua religião! No México da Revolução essas coisas não têm direito de cidadania.
Registram-se somente resistências episcopais individuais e que não têm muita oportunidade para manifestar-se. Mas há lições memoráveis! É nesses termos que o bispo de Huejulta, José de Jesús Manriques y Zárate, numa carta pastoral de 1º de março de 1926, se dirige ao tirano:
“O Sr. Presidente da República acaba de declarar que ele julga que a aplicação dos artigos constitucionais atentatórios à liberdade de culto não levanta nenhum problema notável no país: tudo se reduziria a protestos femininos, sem que nenhum indivíduo do sexo masculino tenha coragem bastante de tomar-lhe a direção. O Sr. Presidente da República acaba de mentir à Nação. Ele deve saber que aqui, nestas terras longínquas, perpetuamente submetidas à barbaria, queimadas por um sol africano, existe uma raça de homem, de cristão, que terá a coragem, com a graça de Deus, de suportar o martírio, em caso de necessidade, pela causa sacrossanta de Jesus Cristo. E, se o jacobinismo pode conceder algum favor, que esse homem não seja apunhalado pelas costas. Uma vez que o governo do México exige dos católicos de seu país a verdadeira coragem cristã, estão eles no direito de exigir de seus carrascos o mínimo de honra e audácia que não faltou aos Césares da Roma pagã” .
Como única resposta, a 15 de maio de 1926, Calles envia ao bispo de Huejulta um regimento de cavalaria. Desde a aurora do dia seguinte, D. Manriques, a cavalo e ao lado do coronel López Leal, abençoa os fiéis da diocese ajoelhados à beira da estrada e toma o caminho da prisão. Aí esperará um ano e mais tarde suportará 17 anos de exílio longe dos seus. Advogado algum o defenderá perante os tribunais: “Não reconheço, nem de longe, nem implicitamente, a competência da jurisdição civil em matéria de religião”.
O EPISCOPADO PARLAMENTA
Somente outro bispo toma publicamente posição, nove meses depois, em favor da insurreição cristera. Sua carta pastoral é expedida “fora da porta Faminia”, isto é, sem a caução de Roma. “Jamais provocamos esse movimento armado. Mas, desde que todos os meios pacíficos foram esgotados, o movimento existe, devemos dizer aos nossos filhos católicos, que se levantaram pela defesa de seus direitos sociais e religiosos: estejam em paz com a sua consciência e recebam a nossa bênção” . Releva ainda precisar que o arcebispo de Durango, instruído por Roma e pelo núncio apostólico, não tardará a renunciar à sua dignidade. Entre a honra e a posição, ele não hesitou.
O episcopado mexicano de 1926 conta 38 bispos: um que resiste, um que cede e trinta e seis que se calam ou condenam o levantamento armado, única forma de resistência capaz de liquidar o despotismo anti-religioso. Em julho de 1926, uma medida, contudo, de que já falamos, aglutinou todo o episcopado: a suspensão do culto público. É medida de conseqüências graves, que não serão assumidas. Eis o decreto: “Na impossibilidade em que estamos de manter o exercício do ministério dos sacramentos segundo as regras impostas pelo direito canônico, tendo consultado o Santo Padre Pio XI, e obtido a sua aprovação, ordenamos que a partir de trinta e um de julho do corrente ano, e até que disponhamos em contrário, se suspenda, em todas as igrejas da República, o culto público que requer a intervenção do ministério sacerdotal” .
Poderia julgar-se que a Igreja mexicana tenta afundar-se a si mesma, em face da pretensão do governo. Na realidade, ela procura, mediante esse recurso extremo, provocar a explicação e um acordo com ele, o qual nisso verá uma ocasião suplementar de desencadear contra os cristãos a horda dos perseguidores agaloados.
A partir de agosto de 1926, o católico mexicano experimenta o sentimento, bem fundado, de ter todos os poderes públicos contra eles. Roma cala-se. A soldadesca viola e fuzila sem julgamento. Enforcam-se os líderes católicos, que são privados dos sacramentos. Enquanto isso, no México, os bispos parlamentam. Eles se entretêm na ilusão do compromisso histórico com o “socialismo de feição humana”. Já naquele tempo...
D. Pascual Díaz recebe os jornalistas estrangeiros (2 de agosto de 1926). Ele acaba de encontrar-se com o Presidente. Conversações reservadas. Ele sai dessas reuniões com a certeza de que uma solução está à vista, nas seguintes bases: “suspensão na prática das leis anticlericais, consulta ao país e revisão parcial da constituição” . Nesse sentido, a Junta Episcopal mexicana, em 16 de agosto, submeteu um memorando ao gen. Calles. Os bispos reclamam a liberdade de consciência, de pensamento, de culto, de ensino, de imprensa e de associação — nem mais, nem menos... Com alguma dose de humor, para defender a “suspensão do culto”, que já começa a provocar aqui e ali os primeiros levantamentos armados, eles fazem valer igualmente ao Presidente que “o fato de abster-se de um ato sancionado pela lei não poderia ser considerado uma rebelião”. A 17 de agosto, sem esperar a resposta de Calles, o episcopado dá nova prova de sua inocência política (ou de sua leviandade criminosa): ele declara a “boa-fé” do governo nas negociações. Três dias mais tarde, Calles recebe oficialmente os representantes do episcopado mexicano. Ele define a situação com toda a insolência que decorre do poder absoluto.
— Meu governo não dará um passo atrás. Não usarei de minha influência para que as Câmaras modifiquem as leis, que serão aplicadas com todo o rigor... As coisas são bem claras: não há solução para os senhores senão as Câmaras ou as armas!
E os bispos, incorrigíveis: “Regozijamo-nos com as explicações que o Sr. Presidente nos oferece. A Igreja não pretende defender seus direitos pela violência, cujos triunfos são efêmeros. Ela procura um acordo mais sólido e, por esse motivo, prefere as vias legais e pacíficas” .
O recurso às Câmaras era unicamente para salvar as aparências, bem entendido, mas os bispos caíram na armadilha do tirano. O recurso apresentado em 6 de setembro de 1926 é julgado improcedente duas semanas mais tarde pelos deputados. “Os bispos não estão habilitados no México a exercer o direito de petição” — objeção juridicamente fundamentada, já que a Constituição de 1917 não reconhece estatuto civil ao clero. A Igreja só tem um direito, o de calar-se, o que parece bastante generoso ao despotismo maçônico.
Só restavam as armas, como previra Calles, sem risco de engano. Os católicos mexicanos não solicitaram a ninguém autorização para servir-se delas, mas o governo, que forçou a situação, acusa o episcopado. Os comunicados do boletim oficial do estado-maior presidencial anunciam com estridor que as bandeiras apreendidas com os cristeros, estampadas com o Sagrado Coração e a “Virgem de Guadalupe”, denunciam o clero como instigador direto da rebelião.
A resposta dos bispos — 1º de novembro de 1986 — é fulminante quanto à sua maravilhosa irresponsabilidade: “O episcopado sempre recomendou aos católicos observar as vias legais e pacíficas”. Em substância, ele dá provas de incrível leviandade: “Quanto às rebeliões, sedições e conspiração contra a autoridade legítima, temos sempre lembrado o que ensina a Igreja, a saber, que esses meios são reprovados pela moral católica, que repele o pretenso direito de rebelião” — doutrina indiscutível, mas muito pouco oportuna, e com bafo de hipocrisia, num país em que o poder multiplica, a cada instante, as provas de sua radical ilegitimidade.
O episcopado acrescenta, para tornar-se coerente com a teoria: “Há casos em que os teólogos católicos autorizam não a rebelião, mas a defesa armada contra a agressão injusta de um poder tirânico, desde que todas as vias pacíficas tenham fracassado” . Em novembro de 1926 todas as vias pacíficas, desde a ocupação de igrejas ao bloqueio, demonstraram sua inutilidade. Redobra a perseguição. As associações leigas pressionam os bispos mexicanos para que apliquem a doutrina à realidade mexicana, reconheçam a legitimidade da insurreição e abençoem os combatentes. Não se pedia aos bispos que montassem a cavalo e se alistassem na resistência. Somente se lhes pedia a bênção para os que, por crer em Jesus Cristo, eram assassinados pela tropa. Esse consolo, tão natural, tão poderoso para os soldados da honra cristã, jamais o tiveram os cristeros.
Calam-se os bispos, ciosos de sua obediência a Roma. Alguns exageram no zelo, como o Ordinário de Chihuahua, pulha miserável, que proíbe formalmente a insurreição no território de sua diocese e chega a brandir a ameaça da excomunhão. Calles conseguirá obter promoção para esse bom prelado, interlocutor privilegiado do regime; ele financiará até suas numerosas viagens ao Vaticano. O Patriarcado de Moscou, à mesma época, não procede de maneira diferente.
OS IANQUES DÃO ESMOLA
Em agosto de 1926, correu no México o boato de que o ger. Enrique Estrada, antigo ministro da Guerra do Gabinete Obregón, preparava um levantamento militar contra Calles em seu exílio americano. A Casa Branca dera-lhe garantia de que não interviria. Ao mesmo tempo, ela prevenia o governo mexicano: a paz em suas concessões petrolíferas contra o aniquilamento dos sublevados. Estrada e suas tropas foram cercados pela cavalaria americana na Califórnia, perto da fronteira mexicana, desarmados e conduzidos perante os tribunais.
Nessa época, os dirigentes da Liga pela Defesa da Liberdade Religiosa ainda alimentavam ilusões: seu jovem vice-presidente, René Capistrán Garza, atravessa a fronteira americana clandestinamente, em 16 de agosto de 1926. Tem por missão entabular conversações com o episcopado e os católicos americanos, com vistas a obter seu apoio moral e financeiro para a Liga. O arcebispo da capital mexicana, em nome do episcopado, acrescentava que Capistrán era, entre os leigos, o único representante nos EUA dos interesses da Hierarquia e dos católicos mexicanos. O primeiro bispo visitado é o de Corpus Christi, Texas, num território arrancado ao México pelos americanos. O prelado escuta silenciosamente a exposição de motivos e roga ao enviado que aguarde no hotel a sua resposta, que se resumiu num telegrama de nove palavras: “Nada feito. Nesta diocese não há simpatia pelos mexicanos”. As coisas começam bem.
Em Galveston, o bispo põe fim às conversações com uma nota de 10 dólares. O de Houston sobe para 20 dólares a esmola do escárnio; o de Dallas, 30 dólares; o de Little Rock: 50. O martírio mexicano não consegue sequer cobrir suas despesas! O mais generoso foi o arcebispo de St. Louis (Missouri), cuja reação é narrada por Antonio Rius Facius: “Quando René expusera, com mais ardor do que nunca, a situação legal de nossa Igreja e a situação prática dos católicos mexicanos, o prelado indignou-se e, esmurrando a mesa, exclamou que se uma coisa dessas ocorresse nos EUA o governo seria esmagado pelos católicos americanos, que saberiam impor os seus direitos... A esperança renascia. Logo veio a decepção: uma nota de 100 dólares, insuficiente para equipar um soldado, traduziu a explosão moral do prelado” . Houve coisa pior. Em Boston, o cardeal O'Connel, todo-poderoso na comunidade católica dos EUA, exorta René a suportar com paciência as provações que Deus envia. E acrescenta, ao levantar-se o mexicano, que se ele deseja um emprego poderá recomendá-lo pessoalmente aos Cavaleiros de Cristóvão Colombo.
René Capistrán desistiu de entrevistar-se com os bispos americanos. Sua sorte não foi melhor com o Departamento de Estado, que assinou um cheque em branco para os exércitos da Revolução e, em face dos representantes dos cristeros, fazia valer as convenções internacionais para manter severo embargo. Um só homem escutou o embaixador cristão. O próprio René no-lo apresenta: “Nicolas Brady, multimilionário americano, residente em Nova York, católico fervoroso, Cavaleiro de São Jorge, Duque da corte pontifical, muito ligado à Igreja e a Roma”. Brady considerava legítima a insurreição armada, cujas possibilidades de êxito ele avaliava, e fixou sua contribuição pessoal em 500 mil dólares para a compra de armas e munições. O negócio deveria concluir-se em Nova York no início do mês de março de 1927.
Infelizmente para os cristeros, desde 1º de fevereiro, um bispo mexicano perambulava pelos EUA: Pascual Díaz y Barreto, exilado pelo governo de Tabasco por “incitação à resistência armada”. Em matéria de resistência, D. Díaz proclamava, por toda a parte, que o clero não tomava parte na “agitação religiosa do México”, a despeito da desobediência individual de alguns padres isolados, agitação que ele mesmo, como cidadão e bispo, condenava, qualquer que fosse a sua causa! Nicolas Brady impressionou-se com o prelado, e o embaixador do levantamento não foi mais recebido pelos milionários católicos americanos. Em Nova York, o clericalismo sobrepunha-se ao instinto da fé. Inútil lembrar aqui os milhões de dólares que terão atravessado a fronteira mexicana, a cada nova fase da Revolução maçônica, de Benito Juárez (1867) a López Portillo, em nossos dias. Os inimigos da Igreja jamais foram prejudicados pela avareza, em suas guerras de religião.
NAS PRIMEIRAS LINHAS
A Liga pela Defesa da Liberdade Religiosa não tem o monopólio da insurreição cristera, que, em numerosas regiões, é um movimento espontâneo. Mas ela é a primeira a cerrar fileiras contra o despotismo anti-religioso e a abrir as comportas da resistência armada, pelo exemplo, sacrificando a sua gente. Exemplo terrivelmente contagioso. Em 25 de junho de 1925, sustentada ainda pelos sacerdotes e toda a Hierarquia, ela contava 36.393 membros de diversas origens. Em setembro de 1926, o episcopado retirou-se do movimento com as Damas Católicas e os Cavaleiros de Colombo: a Liga, porém, reúne nas cidades mexicanas 800.000 militantes, dos quais 500.000 são mulheres que respondem por seus filhos e pais: “El hombre reina, la mujer gobierna” (“assunto de domésticas” berrava Calles, que mandará violar e enforcar o maior número possível delas pelos esbirros de seus regimentos).
Essa formidável rede explica o sucesso (temporário) do bloqueio econômico-social decretado pela Liga a 31 de julho de 1926, dia da suspensão do culto público em todo o território mexicano. Os jovens “acejotaemeros” denunciam, nas cidades, o genocídio programado por Calles e colocam cada cristão em face de suas responsabilidades. Às portas das igrejas, tomadas de assalto nos últimos dias de julho por multidões transtornadas, eles justificam a posição dos bispos, que os amaldiçoam às ocultas por essa publicidade, odiosa aos déspotas do governo. Diante dos teatros e das lojas, eles pedem um gesto de penitência e recomendam a abstenção. Em alguns dias, na capital, 15 cinemas e 3 teatros vêem-se obrigados a fechar as portas. Sete milhões de pesos são retirados do Banco do México, criação governamental, e de agosto a setembro de 1926, sob o efeito conjugado do bloqueio e das desordens econômicas da Revolução, o movimento comercial do país acusa uma baixa de 75%!
Quando a polícia começa a prender seus estudantes na rua, a ACJM difunde uma circular que deve estar registrada lá em cima, no grande livro, para a glória de Cristo Rei: “Contra o artigo 18 sobre os delitos em matéria de culto religioso, que pune com multa de 500 pesos, ou 15 dias de prisão, o uso de vestimentas ou insígnias religiosas fora dos lugares de culto, decidimos que o porte de nossa insígnia será obrigatório para todos os membros da ACJM a partir de 31 de julho” . - A “honra do combate a peito aberto” diz Madiran... A ACJM contrapõe a virtude do sacrifício à força brutal do governo: a continuação de nossa história dar-lhe-á razão, quando o país inteiro aderir.
O êxito do “bloqueio econômico-social” será de curta duração, pois os pobres investem pouco nele e os ricos não participam dele: “Católicos ou não, os ricos tinham horror ao bloqueio e conseguiram que o Vaticano se juntasse ao seu ponto de vista... a companhia de tabaco El Buen Tono, à beira da falência, obteve a intervenção do Pe. Araiza... A loja francesa La Ciudad de México, em Guadalajara, utilizava os bons ofícios do Cavaleiro de Colombo Efraim González Luna... Os interesses dos católicos ricos tornavam-nos solidários do governo” . O dinheiro, mais uma vez, corria em socorro da revolução. Aos “liguistas” cabia apenas pagar com a sua própria pessoa: o preço mais alto, o da honra cristã.
Um dos primeiros a oferecer-se, segundo os arquivos da ACJM, chama-se José García Farfán. Tem 66 anos. Sua loja, em Puebla, difunde as publicações católicas. Desde que as coisas começaram a ir mal, ele esparramou os cartazes da Liga em sua vitrina: Viva Cristo Rei! Viva a Virgem de Guadalupe! Só Deus não morre! etc. Em 28 de junho de 1926, quando voltava da missa, um carro do Estado-Maior pára diante da loja. Fazem-lhe sinal para que se aproxime e fale com o general Amaya.
— Onde está ele, pergunta o lojista?
— No carro, estacionado diante de sua porta.
— Diga ao seu general que a distância de seu carro à minha loja é a mesma que a de minha loja a seu carro. Se ele quer falar-me, daqui não arredo pé.
José García Farfán foi fuzilado no quartel de San Francisco, na madrugada de 29 de junho. O próprio gen. Amaya encarregou-se de destruir a loja do pacífico resistente. Sua fúria poupou um cartaz que dizia: “Deus não morre”.
“O PLEBISCITO DOS MÁRTIRES”
Encontram-se facilmente os responsáveis da Associação Católica da Juventude Mexicana. No vilarejo de Chalchituites, Zacatecas, zona controlada pelo gen. Eugelio Ortiz, de sinistra memória: o Pe. Luis Batiz, assistente eclesiástico da ACJM local, Manuel Morales (28 anos), David Roldán (24 anos) e Salvador Lara (21 anos). Detidos no dia 14 de agosto de 1926, serão fuzilados no dia 15 sem ter sequer a paródia de um julgamento. — Viva Cristo Rei, fogo!
Nesse mesmo dia, os cristeros empunhavam as armas no estado de Zacatecas. Sobre os corpos furados de balas dos três fuzilados, os camponeses de Zacatecas juraram vencer ou morrer por Cristo Rei.
Os militantes da ACJM saem em cruzada sem nenhuma noção de clandestinidade, nem de combate. Na capital, a 6 de setembro de 1926, Joaquín de Silva, 28 anos, tendo nos bolsos, como bagagem, uma pistola 38, 50 cartuchos, nove cartas e o precioso rosário, que recita todas as noites, apresenta-se ao seu confessor, diz-lhe que vai juntar-se ao exército de Cristo Rei e pede ao confessor a sua bênção. À pergunta deste sobre o abandono em que ficariam seus pais, replica que o Senhor os protegerá e que são os seus próprios pais que o enviam à luta. Joaquín de Silva, com mais dois companheiros da ACJM, parte para sublevar Michoacán! No trem, os três cristeros entram a conversar com um general aposentado, Francisco Zepeda, que exibe, no peito, uma impressionante bateria de medalhas e escapulários. Após um curto diálogo, ficam sabendo que o general é católico e que não aprova a política religiosa de Calles. Joaquín de Silva convida o general a examinar o seu plano de combate, e para isso marcam encontro, no dia seguinte, no rancho de Zepeda. Imediatamente um dos cristeros (Armando Ayala, 21 anos) é enviado à capital a fim de dar a boa nova aos companheiros. Joaquín de Silva e seu companheiro (Manuel Melgarejo,17 anos) são entregues no dia 11 de setembro à municipalidade de Tinguidín pelo gen. Zepeda. São fuzilados sem julgamento, a 12 de setembro, por ordem direta de Calles.
O Papa pensava nos mártires de Tinguidín, dois meses mais tarde, quando exclamou: “Alguns desses adolescentes, desses jovens — como conter as lágrimas quando se pensa neles — caminharam deliberadamente para a morte, com o Rosário nas mãos, ao grito de Viva Cristo Rei! Espetáculo indizível dado ao mundo, aos anjos e aos homens!”
A emoção de Pio XI é bastante compreensível: ele proclamara a realeza social de Jesus Cristo (Quars primas, 1925); os cristeros confirmavam-na com o próprio sangue... Por que seus cardeais, suas finanças e sua política não os apoiaram?
A resposta está no México, na arena das perseguições. Abandonados pelo mundo inteiro, os cristeros tinham consciência de viver um tempo de apocalipse. Seu abandono prepara o nosso, e eles sabiam que sua morte era necessária para o triunfo da fé... “Não veremos a vitória, mas o México tem sede desse sangue para a sua purificação — Cristo receberá a homenagem que lhe é devida. Tão certo quanto me vêem hoje vivo diante dos senhores, como estarei morto amanhã” (Salvador Vargas, fuzilado no dia 3 de janeiro de 1927, com mais três companheiros, todos os quais terão a língua cortada, para que se lhes proíba a última homenagem a Cristo Rei).
AS COLUNAS DO DEMÔNIO
Os federais assassinam ao acaso, na esperança (sempre malograda) de separar os grupos cristeros do resto da população. Durante os primeiros meses de 1927, a relação de forças só permite aos cristãos operações de escaramuças. No entanto, sob céus latino-americanos, jamais houve guerrilha tão popular. Os cristeros não sacrificavam senão a si mesmos e não roubavam. Três jovens (05.04.27) surgem no vilarejo de Coquimaltlán, desarmam o posto policial, sem topar resistência, e retiram-se para os vulcões de Colima com as munições tomadas ao inimigo. No dia seguinte, pela madrugada, tropas federais bloqueiam solidamente todas as saídas do vilarejo.
Quatro camponeses que voltavam dos campos, sem nada saber, são presos. A polícia tortura-os por nada. Intercedem os familiares. Debalde. O pai de um dos reféns, Jesús Zarate, insiste em falar com o general. Consegue juntar-se ao filho na masmorra. À noite, os cinco prisioneiros são enforcados para a edificação de seus parentes e amigos, que virão retirar os corpos no dia seguinte... Por uma atenção especial dos democráticos executores, o pai e filho Zarate foram enforcados na mesma árvore à beira da estrada.
Em todo o estado de Colima, a intensidade da insurreição cristera recrudesce: “O entusiasmo dos soldados de Cristo Rei é indiscutível. Eles ignoram o medo. Quando os cristeros ouviam dizer que o inimigo se aproximava, literalmente pulavam de alegria, pegavam nos facões, ou no que pudessem pôr as mãos, desciam das colinas caindo sobre os perseguidores, sem considerar se eram um contra cem” .
Modelo da honra cristã, o estado de Colima foi um dos mais selvagemente dizimados pelos Federais. Em julho de 1926, quando o governo já não controla senão as capitais, é-lhe necessário abater-se sobre os citadinos. Chacina-se. Por exemplo: três jovens, torturados uma noite inteira pelos soldados, são fuzilados, encostados ao muro da catedral de Colima, aos pés da Virgem de Guadalupe. Fato significativo, os oficiais callistas filmavam, por toda a parte, as suas próprias atrocidades.
QUANDO OS HERÓIS SÃO CRIANÇAS
A presença jovem é uma das características notáveis da insurreição cristera. E também sua alegria na morte. Essa juventude escreveu, entre as duas guerras mundiais, as mais belas páginas da Cristandade. Eis dois heróis que os tribunais da Igreja, longe das fumaças de Satanás e do compromisso histórico com a Revolução, já teriam canonizado. Tomasino de la Mora tem exatamente 17 anos, ainda que em suas fotografias aparente os 15. Ele pertence, no entanto, ao grupo diretor da ACJM de Colima. Sua piedade valeu-lhe o grau de prefeito na Congregação de Maria. Sua coragem habilita-o a ser o correspondente privilegiado do estado-maior cristero para a capital do estado. Em 27 de agosto de 1927, os soldados invadem a casa de seus pais.
— Mamãe, eles vão matar-me!
O gen. Flores reservou-se o cuidado de interrogá-lo.
— Se me disseres o que sabes sobre os cristeros, deixo-te viver.
— O Sr. engana-se: livre continuarei a lutar por Cristo Rei com os meus companheiros. O combate pela liberdade religiosa não é, para nós, matéria opcional.
— Tu não sabes o que é a morte, fedelho!
— Com efeito, coisa semelhante ainda não me aconteceu. E ao senhor general?
Tomasino foi enforcado nessa mesma tarde, sem julgamento. Rius Facius conta que seu carrasco queria que ele mesmo passasse a corda em seu pescoço.
— Perdão, senhor, não entendo disso. É a primeira vez que me enforcam.
Os filhos de Cristo Rei enfrentam o sacrifício com alegria e valentia. Foi o caso igualmente de José Sánchez del Río, ACJM, de Sahnayo, Michoacán, 13 anos. Cercado, em 5 de fevereiro de 1928, com o seu chefe de grupo, que acaba de ser ferido pelos Federais, cede-lhe seu cavalo, cobre-lhe a retirada, depois se entrega por falta de munição.
O menino é apunhalado cinco dias mais tarde à beira de uma cova aberta no cemitério de Sanhayo e liquidado a tiros. As lavadeiras do lugarejo descobrirão nos bolsos de um uniforme militar este simples bilhete: “Minha mamãezinha. Fui apanhado e vão matar-me. Estou contente. A única coisa que me inquieta é que vais chorar. Não chores, nós nos encontraremos. José, morto por Cristo Rei” .
ELES VOTARAM!
Sim, no México de Calles, esse México humanitário e generoso que causa admiração aos Miterrands, são os mártires os que votaram. Sem limite de idade, com sorrisos angelicais. “Nosso referendo permaneceu aberto”, escreve Anacleto Gonzáles Flores, fuzilado pelos Federais, “desde o dia em que os perseguidores puxaram da espada para degolar a consciência dos cristãos: Ainda ontem, o país inteiro era como uma imensa urna eleitoral abandonada pelo povo, onde o governo salmodiava seus responsos pelo enterro do catolicismo. Hoje todo o México abala-se diante desse plebiscito inesperado e gigantesco em que Cristo será proclamado, como o ar que respiramos, como o sol que nos ilumina, como a água que nos refresca, princípio e fim da totalidade de nossa vida e da vida nacional. Não há outra solução. A democracia lançou e lança ainda sobre os seus ombros os despojos ensangüentados dos mártires de Cristo Rei” .
A Cristiada triunfará um dia das mentiras da Sorbonne e das traições do clero, e terá um lugar especial no martirológio da Cristandade. Ela considera a “democracia” como guerra de religião.
(Traduzido por Afonso dos Santos a partir de Itineraires nos 268 e 269. Revisado por nós)