Historiadora norte-americana, escreveu obras de vulgarização como "dez datas que todo católico deveria conhecer" entre outras.
Diane Moczar
A virada do século XX, abarcando por um lado a década de 1890 e o início dos anos 1900 por outro, foi sob alguns aspectos um período vertiginoso e otimista. A ciência e a tecnologia alimentavam sonhos de uma sempre crescente prosperidade; viagens de longa distância eram mais fáceis e comuns; uma nova forma de música popular tornava-se mais acessível às massas, juntamente com outros meios de entretenimento. Esperava-se uma feliz e pacífica era de progresso. No entanto, o que dizer da visão terrível de Satanás e sua investida de cem anos contra a Igreja, revelada ao Papa Leão XIII em 1884? E como é que, em 1903, São Pio X foi capaz de cogitar se “o Filho da Perdição, de quem falou o Apóstolo, já poderia estar vivendo sobre a Terra”?
Considerando tudo o que veio a acontecer, é claro que aquele otimismo sobre os novos tempos mostrou-se completamente equivocado, pois o século XX produziu, um após outro, pesadelos de horror e sofrimento jamais vistos. Mesmo antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, vários chefes de Estado, tanto na Europa quanto na América, tinham sido assassinados por anarquistas, e no subterrâneo de muitos países os movimentos revolucionários iam ganhando terreno. Haviam se deteriorado as relações entre a Igreja e o Estado francês, entregue a um secularismo militante; ordens religiosas eram perseguidas e suas escolas, fechadas; políticos anticlericais substituíam oficiais militares de atestada competência, porque católicos. Sucessivas crises começavam a absorver a atenção de alguns Estados europeus, mas foram poucos os que as enxergaram como presságios de um futuro cataclisma. Em 1904, o Japão lança um ataque-surpresa contra a Rússia, e em 1905 já a havia derrotado. Que fosse possível ao império dos czares sofrer tão rápido fiasco para tão minúsculo oponente, foi decerto um choque para os russos e para todo o mundo, e ocasião para que refletissem bastante os diplomatas da Europa. No imediato pós-guerra, as perturbações produzidas por esse breve conflito fizeram escassear a comida e abundar os tumultos agrários dentro da Rússia, culminando num surto de revolução ainda em 1905.
O barril de pólvora dos Bálcãs, como era de se esperar, espocou assustadoramente no início do século, à medida que as Guerras Balcânicas finalmente expeliam da Europa os turco-otomanos. A Sérvia tinha planos de um império próprio sobre as ruínas do Império Otomano, e os próprios turcos resvalavam para uma insurreição ou até revolução, enquanto desaparecia do mapa o remanescente de seu império — desde a Líbia, passando por Creta, até a Península Balcânica.
A Áustria-Hungria se defrontava com minorias cada vez mais insubmissas dentro de suas fronteiras, todas exigindo alguma forma de autonomia, seja lá qual fosse sua capacidade de existência independente. A Alemanha pós-Bismarck estava mais militante (e militarizada) do que nunca, montando uma frota que fizesse páreo à da Grã-Bretanha e tecendo alianças com a Itália e a Áustria-Hungria — e depois com a Turquia — para se contrapor ao “entendimento” diplomático (entente) de ingleses, franceses e russos. A maior parte dos Estados até aqui mencionados, e outros tais como a Bélgica e a Holanda, tinha também suas empresas coloniais, que os faziam cada qual adversário de todos os demais. Pacífico não era o melhor adjetivo para aquele sofisticado mundo da valsa, da opereta e da carruagem motorizada.
A Grande Guerra
Esse cataclisma, que passaria a ser chamado Primeira Guerra Mundial quando adveio a Segunda, parece ter sido, para o Ocidente, um choque que a todos pegou despreparados. Sua origem lembrava o início da última grande guerra européia, a dos Trinta Anos, começada 300 anos antes, em 1618, quando a Boêmia, na Europa Oriental, revoltou-se contra o domínio dos Habsburgos. A Grande Guerra teve início quando um membro de uma organização revolucionária sérvia, a Mão Negra, assassinou um arquiduque de Habsburgo na Bósnia, então controlada pela Áustria. Em ambos os casos, os austríacos tentavam lidar com o que parecia ser uma questão meramente regional, para então descobrir que outros países começavam a se somar à briga tão logo ela tinha começado.
Não cabe aqui entrarmos nos detalhes da Primeira Guerra Mundial, mas eles estão prontamente acessíveis em qualquer livro didático. A Áustria queria que a Sérvia entregasse ou punisse o grupo de assassinos e reivindicou o direito de entrar na Sérvia para supervisionar esse esforço. A Sérvia, entretanto, na esperança de formar seu próprio império balcânico e eliminar dali a presença austríaca, começou a se mobilizar, contando com o apoio de sua aliada, a Rússia. Quando os sérvios rejeitaram o ultimatum de Viena, navios austríacos bombardearam Belgrado, fazendo questão de dizer que não estavam invadindo território sérvio; certamente a Áustria não queria que o conflito escalasse e a Rússia fosse trazida para a questão, mas também sabia contar com o suporte de sua aliada Alemanha. A Rússia havia começado a mobilizar parcialmente suas tropas, uma vez que o Czar Nicolau II esperava que isso detivesse ulteriores agressões da Áustria. Seu Estado-maior o persuadiu a ordenar uma completa mobilização, à qual a Áustria respondeu com uma mobilização também completa. França, Inglaterra e outros países correram para organizar suas políticas. A Alemanha, aliada da Áustria, ordenou então à Rússia que interrompesse a mobilização de suas tropas dentro de 12 horas (o que era impossível, ainda que a Rússia o quisesse). Uma vez desatendida a exigência, a Alemanha declarou guerra em 1º de agosto e começou a executar um plano de batalha previamente elaborado, que envolvia atacar a França através da Bélgica e de Luxemburgo.
É espantoso, mas os poderes ocidentais estavam despreparados para esse desenrolar, não obstante os muitos sinais de alerta, diplomáticos e militares, que chegavam da Alemanha. Apesar disso, nas grandes capitais como Paris e Londres, a guerra despertou grande entusiasmo. Os franceses, em particular, estavam sedentos de vingar sua derrota na Guerra Franco-Prussiana e recuperar a Alsácia-Lorena. A Grande Guerra, entretanto, seria diferente de tudo o que a Europa tinha visto até então. Há relatos de jovens oficiais de cavalaria franceses, rindo e brandindo no ar suas espadas ao atacar as linhas alemãs, para em seguida encontrar a morte instantânea: ninguém lhes havia contado das novas armas, as metralhadoras. O gás tóxico foi outra novidade dos eficientes alemães, e seus tanques eram monstros mecanizados que nenhum outro país podia igualar. O longo embate de trincheiras foi um traço fundamental dessa guerra que, de início, todos pensaram resolver numas poucas semanas. Um só período dessa guerra de quatro anos fez um espantoso número de vítimas: de março a dezembro de 1916, o impasse entre alemães e franceses próximo a Verdun causou aproximadamente 400.000 mortes, e quase o dobro de homens feridos ou intoxicados pelos gases venenosos. Entre julho e dezembro daquele mesmo ano, na Batalha do Somme, Grã-Bretanha, França e Alemanha sofreram mais de um milhão de baixas, e ainda assim a linha de batalha moveu-se apenas sete milhas — o que totaliza duas mortes e meia por polegada.
Nações trocaram de lado ou retiraram-se de campo durante os quatro longos anos de guerra. A Itália deixou a Tríplice Aliança, na qual tinha sido parceira da Áustria-Hungria e da Alemanha, e passou a ladear com os Aliados em 1915. A Rússia, após a revolução que em breve abordaremos, retirou-se da guerra em 1917, enquanto os Estados Unidos nela entraram no princípio de 1918. Desde o começo, uma paz negociada deveria ter sido possível. Isso teria desmoralizado os militares alemães, mas o governo imperial permaneceria intacto, o que bem poderia ter evitado a futura ascensão de Hitler. A Alemanha, todavia, queria uma derrota definitiva da Grã-Bretanha e da França, e não estava aberta a negociações; por seu turno, em 1915 os Aliados tinham prometido terras à Itália caso ela abandonasse a antiga aliança, e precisavam de mais tempo para cumprir tal promessa. Também eles queriam uma vitória completa sobre a Alemanha e não estavam propensos a barganha. É certo que o Papa Bento XV insistia pela paz, mas era visto como pró-germânico e os franceses se ressentiam de sua recusa a admitir a culpa maior da Alemanha em invadir vizinhos pequenos e indefesos como a Bélgica e Luxemburgo. Suas exortações propendiam a vagas propostas idealistas de desarmamento geral, de todo irrealistas e inúteis naquelas circunstâncias.
Um Trágico Imperador
O único chefe de Estado que se esforçava ativamente a promover uma paz exeqüível era o jovem e recém-coroado imperador da Áustria-Hungria. Francisco José havia enfim morrido em 1916, após um longuíssimo reinado: tinha subido ao trono durante as revoluções de 1848. Sua família parecia perseguida pela violência. Em 1853, quase foi assassinado a faca por um revolucionário, mas salvou-o uma improvável comitiva formada por um conde irlandês e um açougueiro austríaco que passava na hora. (Ambos foram recompensados, o açougueiro elevado à nobreza.) Um a um, o imperador foi vendo seus herdeiros sofrerem mortes violentas. Seu único filho, Rodolfo, ou foi assassinado ou cometeu suicídio em Mayerling em 1889; um de seus irmãos, Maximiliano, havia sido executado no México algumas décadas antes, e outro morreu de intoxicação por água durante uma peregrinação à Terra Santa. Sua amada esposa, Isabel, morreu esfaqueada por um anarquista em 1898, e a morte de seu sobrinho, o Arquiduque Francisco Ferdinando, foi o estopim da Grande Guerra. Agora, enfim, era o próprio imperador veterano que partia, deixando como herdeiro seu sobrinho-neto Carlos (beatificado em 2004). Carlos estava disposto a negociar com os Aliados e até mesmo a abrir mão de algum território austríaco em prol da paz, mas não encontrou qualquer cooperação por parte das grandes potências. Suas mensagens ao governo francês ficaram sem resposta. O Presidente Wilson, um idealista antipático à monarquia, sequer chegou a ouvir suas propostas — com o fundamento, ao que parece, de Carlos não ter sido eleito. E assim a guerra seguiu seu curso mortífero até o armistício em 1918.
A Revolução Comunista na Rússia
Há mais de uma semelhança entre a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1918, e alguns dos participantes desta pareciam muito conscientes desse fato. Lênin perguntou, quando a revolução começou a ter sucesso: “Onde vamos conseguir nosso Fouquier-Tinville?” Aquela sinistra figura tinha sido promotor público durante o Terror, legendário por sua cruel dedicação à causa revolucionária.
Reza a lenda da Revolução Russa que, de tão depauperado e miserável, o povo russo finalmente rompeu suas cadeias, derrubou o governo opressor e conquistou a própria liberdade. Nada mais distante da verdade. Em primeiro lugar, nunca é “o povo” quem faz revoluções; em segundo, a Rússia, na década anterior à Grande Guerra, e apesar dos problemas causados pela Guerra Russo-Japonesa de 1905, experimentara uma prosperidade sem precedentes. Isso se deveu principalmente a um ministro czarista chamado Pedro Stolípin, brilhante e realista, que conseguiu mudar o antiqüíssimo sistema agrícola, gerador de estagnação e ineficiência extrema, no qual as terras dos camponeses não lhes pertenciam, mas sim às inflexíveis comunas dos vilarejos. Foi tão exitoso o programa de privatização de terras arrendadas promovido por Stolípin, que em 1913 os camponeses já superavam a produção dos proprietários de terras mais extensas, empurrando-os para fora do mercado. Não apenas o consumo doméstico aumentou, mas também as exportações — a uma formidável taxa de 61% em relação aos primeiros anos do século. A poupança dos camponeses também cresceu vertiginosamente, e os investimentos estrangeiros afluíam para a Rússia. Tragicamente, antes de concluir suas grandes reformas da economia russa, Stolípin foi assassinado a bala por um revolucionário enquanto assistia a uma ópera em 1911. Fez o Sinal da Cruz, saudou o czar, que estava no camarote real, e desfaleceu dizendo: “Fico feliz de morrer pelo czar.”
Stolípin era praticamente insubstituível, e pari passu com a crescente agitação revolucionária e a deriva do país rumo à Grande Guerra, uma nova e demoníaca personagem conquistava a confiança da família real, e talvez tenha feito mais que Lênin ou Trotsky para destruir a Rússia dos czares. Parecia possuir poderes paranormais e havia, de fato, profetizado a morte de Stolípin; seu nome era Raspútin. O czar era um homem manso, avesso a contrariar, o mínimo que fosse, a vontade enérgica da esposa, de modo que, quando Raspútin, supostamente um santo, provou-se capaz de estancar o sangramento de seu filho hemofílico, a czarina Alexandra dispôs-se a fazer tudo o que ele dissesse — e a garantir que o fizesse também seu marido. Mesmo quando o czar estava com suas tropas no front e a guerra ia mal para a Rússia, habilidosos ministros do governo eram substituídos por inábeis camaradas de Raspútin. Foi, enfim, morto — por um grupo de fidalgos que não viam outra maneira de salvar a Rússia — no curso de uma noite longa e medonha, na qual várias vezes se pensou que ele já houvesse morrido, apenas para vê-lo soerguer-se de novo e de novo, obrigando a repetição daquela tarefa extenuante e desagradável.
Como é notório, a morte dessa que foi uma das mais bizarras personagens da história não bastou para salvar a Rússia. Era tarde demais, e a abdicação do czar e o estabelecimento de um governo provisório (de esquerda) tampouco trouxeram estabilidade. Os comunistas de Lênin tomaram o poder em outubro (novembro de nosso calendário) de 1917. Um dos primeiros movimentos de Lênin foi retirar a Rússia da guerra, ao preço de vastos territórios cedidos às potências centrais. O czar e sua família foram primeiro aprisionados em março de 1917, enquanto os revolucionários debatiam se e quando deviam assassiná-los. Foi só mais de um ano depois, em julho de 1918, que Lênin finalmente ordenou a execução da família inteira. A família real, seus filhos e criados foram mortos cruelmente; muitos pereceram lentamente das feridas a faca ou dos crivos de bala. Nascia a União Soviética.
Pensamento e Cultura no Século da Guerra Total
O maior dos males que afligiram a Igreja no início do século XX foi o modernismo, que já começara a emergir no fim do século anterior. A maior consolação da Igreja no século XX foi — ou deveria ter sido e ainda ser — Fátima. Examinaremos a história inicial de ambos os fenômenos, que continuarão relevantes na seqüência da história do século XX.
O Modernismo
Os primeiros estrondos do pensamento modernista remontam àqueles protestantes do século XIX que começaram a aplicar à religião os postulados do darwinismo. Se, como tudo o mais, também a religião evoluía, então não era mais necessário acreditar em doutrinas fixas. O modernismo era “a síntese de todas as heresias”, como viria a chamá-lo São Pio X.
Um de seus principais expoentes foi o Pe. Alfred Loisy, sacerdote francês que esteve entre os primeiros católicos (coisa que algum dia ele chegou a ser) a escrever livros que infundiriam o modernismo em seminários, escolas e almas católicas. O Pe. Loisy havia sofrido a influência de Adolf von Harnack, um protestante liberal e modernista, o que é um exemplo, entre muitos, da infiltração dessa insidiosa heresia, a partir de sua versão protestante original, no interior da Igreja Católica. Dizia esse rebento francês do modernismo que, em parte, Harnack estava correto em sua teoria de que Nosso Senhor não pretendia formar uma Igreja organizada — ao menos não da forma como, à época, para o desagrado do Pe. Loisy, ela estava organizada. Pensava que Cristo não podia saber como a Igreja evoluiria após Ele deixar a Terra; sustentava também que Ele não Se sabia consubstancial ao Pai, idéia esta que só teria surgido muito depois, no Concílio de Nicéia. (Ainda se encontra, entre católicos “liberais”, a idéia de que Nosso Senhor não tinha conhecimento de quem Ele era, ou do futuro, ou de quase coisa alguma.) Loisy escreveu também, em 1904, que considerava “o nascimento virginal e a ressurreição meros símbolos morais.”
Para os modernistas, tudo que pensávamos crer não passava, na realidade, de algo provisório, uma vez que o dogma “evolui” constantemente. Cada nova geração tem de descobrir e criar suas próprias noções teológicas, porque doutrinas solenemente definidas são tolas e ultrapassadas. Não é difícil notar que essa doutrina poderia destruir a fé de inumeráveis almas. A influência de Loisy espalhou-se não apenas na França, mas também na Inglaterra, onde seus mais famosos seguidores foram o barão Friedrich von Hügel e o jesuíta Pe. George Tyrrell.
A Ascensão de São Pio X ao Papado
O Papa São Pio X sucedeu a Leão XIII em 1903. Não nutria ilusões a respeito da crise que se avolumava na Igreja e no mundo, e em sua primeira encíclica, E supremi apostolatus (sobre a Restauração de todas as coisas em Cristo), referiu-se ao “terror” que experimentava em considerar a condição funesta da humanidade por causa de sua apostasia para com Deus. Caracterizou essa condição como “essa detestável e monstruosa iniqüidade, própria do tempo em que vivemos, pela qual o homem se substitui a Deus”. Temia também “que uma tal perversão dos espíritos seja o começo dos males anunciados para o fim dos tempos, e como que a sua tomada de contato com a terra, e que verdadeiramente o filho da perdição de que fala o Apóstolo (2 Tess 2, 3) já tenha feito o seu advento entre nós”.
Jamais podendo tolerar que as águas do poço católico fossem envenenadas pela heresia, pôs-se a incluir os escritos modernistas naquele utilíssimo — mas hoje abolido — índice de livros proibidos para católicos, o Index. Isso não destruiu o modernismo, embora limitasse a exposição do simples fiel aos seus erros; é possível que seus adeptos — que formavam uma panelinha de intelectuais, antes que um movimento popular — se consolassem de se ver como nobres vítimas do obscurantismo. Em todo caso, não desapareceram nem se arrependeram. Como os hereges do passado, queriam eliminar muitas devoções populares caras às massas não-esclarecidas e “democratizar” o governo da Igreja. Desejavam um clero mais pobre e mais simples, e o próprio Loisy parece ter sido a favor da mudança do requisito do celibato clerical. Em paralelo a isso, Paul Hallett escreveu que “o princípio modernista da Imanência Vital, que faz autônoma a consciência, é feito sob medida para um abrandamento no ensino sexual.” (Imanência Vital é a idéia de que o princípio divino está localizado dentro, não fora, do homem, e é a fonte de suas crenças religiosas e morais.)
Fontes das Teorias Modernistas
É possível encontrar a maioria dessas idéias em movimentos heréticos que datam desde a Idade Média e perpassam a Reforma, quando produziram e organizaram novas seitas. O que havia de novidadeiro — e aterrador — no modernismo, a meu ver, era precisamente sua adoção da nova teoria evolutiva no campo da doutrina. A idéia modernista é que a doutrina da Igreja está em constante evolução conforme as circunstâncias das sucessivas comunidades cristãs, e que esse processo é inevitável. Tal como na luta de classes marxista, a mudança está em marcha implacável, e não pode ser detida. O problema de Marx era pretender que a mudança estacionasse quando atingida a utópica sociedade sem classes; já os modernistas não parecem ter previsto qualquer ponto de chegada. O caráter inexorável da grande evolução de dogma e práxis reforçava nesses revolucionários da religião o fanatismo, a dedicação e o zelo já exaltados. Consideravam-se parte de um Zeitgeist maior do que eles mesmos, do qual eram a um só tempo os instrumentos e os missionários.
A Ofensiva Antimodernista de São Pio X
A campanha do Papa São Pio X, que vinha ganhando força desde o início de seu reinado, alcançou o ponto alto em 1907. Em julho daquele ano, o Santo Ofício emitiu o decreto Lamentabili, referido às vezes como “o novo Syllabus”, condenando 65 proposições modernistas. O mesmo ano testemunhou providências contra várias publicações modernistas, além da excomunhão de seus autores; o próprio Loisy seria excomungado no ano seguinte. Em setembro de 1907 publicou-se a histórica encíclica Pascendi. Vale a pena estudar essa brilhante e minuciosa análise da heresia modernista; a condenação das teorias ali discutidas é bem clara, e foi enfatizada e reforçada em documentos papais subseqüentes. Tanto o decreto Lamentabili quanto a encíclica Pascendi parecem atos do Magistério infalível. O juramento antimodernista foi decretado pela Pascendi, e todos os padres, bispos e professores eram obrigados a fazê-lo, até ser abolido por Paulo VI — seja porque achou que já não era necessário, seja porque todos já tinham se tornado modernistas apesar do juramento. Como sabemos, àquela altura os modernistas removeram as pedras sob as quais jaziam adormecidos desde o início do século, e vieram à tona. Seus escritos proliferaram desde o Vaticano II ― tive recentemente o pesar de ler muitos deles enquanto organizávamos a biblioteca da paróquia e eliminávamos a cizânia. É um sinal encorajador, entretanto, que aquele lixo comece a parecer ultrapassado, ao passo que o magistério tradicional segue persuasivo. Certamente os modernistas nem em sonho consideraram que sua sagrada evolução pudesse descambar num retorno à Tradição; teriam náuseas só de pensá-lo. Seria como se os revolucionários franceses contemplassem o seu idolatrado “povo” eleger um rei.
Fátima
O que é apresentado a seguir sobre esse importantíssimo evento, a maior aparição de Nossa Senhora nos tempos modernos e, de acordo com a Irmã Lúcia, a última, é um resumo muito breve, porque a história inteira dessas visitas de Nossa Senhora, suas mensagens, e as vidas das três crianças que a viram, exigiriam muitos volumes. O melhor registro, de fato, é a obra em vários volumes, Toute la vérité sur Fatima (Toda a verdade sobre Fátima), do Irmão Michel de la Sainte-Trinité e do Irmão François des Anges. Aqui vamos considerar alguns temas centrais das mensagens e, em particular, sua íntima conexão com eventos históricos — algo inédito na história das aparições marianas. Com efeito, segundo alguns teólogos, os fenômenos de Fátima não pertencem estritamente à categoria de “revelação privada”, devido à natureza das mensagens e ao milagre público e espetacular pelo qual foram validadas.
A Resposta de Nossa Senhora à Guerra e à Revolução
Enquanto os descontrolados eventos do século XX precipitavam a Europa, e deveras o mundo, à beira de um abismo de sofrimentos, a Bem-aventurada Virgem Maria entrava em combate na mais espetacular série de visitações celestiais da história. Como a Irmã Lúcia contaria ao Padre Agostinho Fuentes numa entrevista em 1957: “Nos planos da Divina Providência, sempre que Deus vai castigar o mundo, antes esgota todos os remédios. E quando vê que o mundo não faz caso de nenhum deles, então — como diríamos na nossa maneira imperfeita de falar — nos oferece, com 'certo receio', o último meio de salvação, a sua Mãe Santíssima.”
Desse modo, os terríveis castigos que acabamos de pincelar foram acompanhados de extraordinárias visitas de Nossa Senhora a um pequeno vilarejo português, portando uma mensagem para o mundo e para os papas. Em 1916, antes das aparições da Virgem, um anjo, que se chamou a si mesmo de Anjo da Paz e Anjo de Portugal — identificado com São Miguel — apareceu várias vezes a três pastorinhos portugueses: Lúcia, Jacinta e Francisco. Ensinou-lhes orações de reparação e exortou-os a fazer sacrifícios pela conversão dos pecadores, com particular ênfase pelos “ultrajes, sacrilégios e indiferenças” com que Nosso Senhor é ofendido. O anjo se referiu à Sagrada Eucaristia como “horrivelmente ultrajada pelos homens ingratos”. Então, em 13 de maio de 1917, a própria Maria Santíssima apareceu às crianças pela primeira vez, prometendo retornar no décimo terceiro dia dos próximos cinco meses.
As Mensagens e o Milagre
As crianças videntes de Fátima sabiam que uma guerra havia começado em 1914, mas não tinham conhecimento do desenvolvimento dos fatos na Rússia, a qual provavelmente ignoravam o que era e onde ficava. Suas vidas concentravam-se agora em seu encontro mensal com a Mãe Santíssima. Na primeira aparição, em 13 de maio de 1917, ela lhes ensinou uma oração e pediu que recitassem o Terço, fizessem sacrifícios pelos pecadores e rezassem pelo fim da guerra. Em junho, durante sua segunda visita, anunciou que Deus queria estabelecer sobre a Terra a devoção ao seu Imaculado Coração. A terceira aparição, em julho, trouxe a famosa visão do inferno e o misterioso “Terceiro Segredo”, que as crianças não deveriam revelar até muito mais tarde. Também encerrou a promessa de que a guerra iria acabar, mas que, se os homens não deixassem de ofender a Deus,
no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai a punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz.
Nossa Senhora prometeu ainda que em outubro contaria às crianças seu nome e o que queria, e realizaria um milagre que todos poderiam ver. Nos dois meses seguintes, Nossa Senhora repetiu algumas de suas instruções anteriores, continuou a insistir sobre a oração e a penitência, e mencionou novamente o que faria em 13 de outubro. Chegado esse dia, referiu-se a si mesma como a Senhora do Rosário e prometeu que a guerra acabaria e que os soldados logo voltariam para casa. Falou também uma vez mais do quanto que Nosso Senhor estava ofendido pelo pecado e da necessidade de as pessoas reformarem suas vidas e recitarem o Terço diariamente.
Em 13 de outubro de 1917, apenas as crianças viram Nossa Senhora. Além disso, entretanto, viram uma maravilhosa série de quadros no céu em que São José também apareceu. De repente, diante dos olhos de cinqüenta a setenta mil testemunhas que tinham vindo de Portugal e de toda a Europa, aconteceu o famoso Milagre do Sol. O sol parecia girar no céu, emitindo raios coloridos, e depois despencar em direção à Terra, aterrorizando os espectadores antes de retornar ao seu lugar e estado normais. Temos o relato de um repórter agnóstico, feito para um jornal socialista, que tinha ido lá preparado para narrar uma fraude e acabou tendo de admitir que havia visto um milagre. Com louvável honestidade, sua reportagem descreveu o fato em detalhes. O testemunho de observadores céticos, somado ao fato de que pessoas a milhas de distância do local também observaram o fenômeno, descarta a hipótese de alucinação coletiva. Nossa Senhora havia fornecido uma prova espetacular da autenticidade de sua mensagem.
Após as Aparições
O povo de Fátima levou a sério a mensagem de Nossa Senhora, ao menos por um tempo, e ela cumpriu sua promessa. Portugal havia permanecido neutro no estalar da Grande Guerra, mas em 1916 concordou com um pedido britânico de apreender navios alemães em portos portugueses e vendê-los à Inglaterra. Isso acarretou que a Alemanha e a Áustria-Hungria declarassem guerra a Portugal, de forma que o pequeno país estava assim obrigado a enviar seus soldados para lutar contra os alemães em dois fronts: em suas colônias na África Oriental e na França. A primeira baixa portuguesa na França ocorreu em abril de 1917, o mês anterior à primeira visita da Bem-aventurada Virgem às crianças. A guerra acabou no ano seguinte.
No decorrer do século XX, os pedidos de Nossa Senhora não seriam atendidos, e todas as suas profecias se cumpririam. O Império Comunista tomou conta da Rússia, ameaçado apenas por uma tímida tentativa de intervenção dos Aliados ao término da Guerra, em 1918. Naquele mesmo ano, o mundo foi atingido pela maior pandemia de influenza da história. Milhões pereceram da doença mundo afora, alguns em menos de 24 horas. Muitos, não se sabe quantos, morreram por infecções secundárias ou complicações causadas pela gripe. Entre as tropas americanas, foi a influenza, e não os combates, que causou a maioria das baixas de guerra.
Paz Atrai Guerra
O tratado de paz de 1919, assinado no ano seguinte à derrota das potências centrais, foi uma receita para conflitos futuros. Muito ao contrário das cláusulas do Congresso de Viena de 1815, lenientes que foram com a derrotada França (país que nos legara as guerras da Revolução e as napoleônicas, que juntas custaram à Europa milhões de vidas e farta destruição), os tratados da Primeira Guerra foram desnecessariamente vingativos e severos ― em grande parte graças a Woodrow Wilson, ideólogo liberal e calvinista, em seu ódio ao que chamava de “autocracia”. Depois de implementar, a seu ver, “um mundo seguro para a democracia”, Wilson queria certificar-se de que esse mundo de fato se tornaria democrático, e de que uma estrutura internacional surgiria para assegurar aquela nova ordem mundial. A Liga das Nações materializou esse sonho, mas bastaria pouco mais de década para tornar-se um irrelevante fracasso, enquanto o pobre Wilson gastava sua saúde tentando converter seus conterrâneos do isolacionismo e persuadi-los a apoiar aquele projeto. No fim das contas, morreu frustrado.
Foram derrubadas duas das grandes monarquias da Europa: os Hohenzollerns na Alemanha e os Habsburgos na Áustria-Hungria, tradicionais elementos de estabilidade dentro de seus territórios. Naturalmente, ninguém queria que o Kaiser Guilherme II seguisse no trono. Ele se retirou para a Holanda, de onde continuou a aborrecer sua família (por exemplo, ao casar-se inesperadamente com uma criada). Entretanto, havia outros membros da família que poderiam ter governado — e estabilizado — um país que até então jamais conhecera outra forma de governo. (O sábio Congresso de Viena havia permitido que os Bourbons continuassem a governar a França após sua derrota.)
A paz de 1919 resultou num catastrófico redesenho do mapa europeu, em parte pelo desejo de punir o perdedor como jamais fora punido nenhum outro inimigo (exceto talvez a Cartago dos tempos de Roma), e em parte pela fanática devoção de Wilson à “autodeterminação dos povos”, baseada na etnia ou — caso isso fosse muito difícil — ao menos numa língua comum. A Hungria, parceira da Áustria no Império Austro-Húngaro, embora gozasse de autogoverno no interior do império, não podia exercer uma política externa independente. Pouco importava: devia ser punida (por causa das políticas austríacas) com a perda de dois terços de seu antigo território — algo exorbitante para qualquer critério de compensação. O fator decisivo, é claro, foi a dedicação de Wilson à causa tribalista, uma vez que as áreas extirpadas da Hungria foram organizadas em estados nacionais segundo padrões étnicos ou lingüísticos.
Assim, entregou-se à Romênia o extenso território húngaro da Transilvânia, sob o pretexto de que estava repleta de romenos. Regiões onde viviam eslovacos, incluindo Pozsony, capital húngara na Idade Média, foram arrancadas da Hungria; mas Wilson não parou por aí: já que eslovacos e tchecos falavam línguas do mesmo ramo eslavo, Wilson resolveu amalgamá-los, apesar de suas muitas outras diferenças, incluindo a religião, e assim fez surgir uma nova criação: a Tchecoslováquia. Pela mesma razão, formou a Iugoslávia a partir de vários grupos étnicos e religiosos muito diferentes. Por toda a Europa Oriental, estabeleceram-se pequenos e instáveis nações-Estado, às quais se ordenava formarem democracias, querendo ou não. Wilson cogitou unir Alemanha e Áustria, relacionadas que são por etnia e língua, mas parece que recuou ante o vislumbre de que isso pudesse vir a criar, bem no meio da Europa, uma grande potência católica influenciada pelo papado. A Áustria, mutilada, tinha de se tornar uma república. A autodeterminação, por algum motivo, não se aplicava à Ucrânia, que almejava libertar-se do domínio soviético: para tanto, diziam-lhes, bastava que os ucranianos confiassem na nova Liga das Nações. Esta, contudo, tinha acabado de ceder a Alta Silésia e sua população alemã à Polônia, mostrando quão obscuros eram os princípios que orientavam sua atuação.
Que países novos e pequenos, com sistemas de governo pouco familiares, se tornariam presas fáceis da próxima grande potência que se constituísse nas redondezas, deveria ter sido óbvio; e assim aconteceu: caíram primeiro sob a Alemanha ressurgente, e depois sob a União Soviética. A injustiça das condições impostas em termos de território e sistema de governo gerou um amargo ressentimento, que produziu em alguns casos revoluções e, em outros, uma disposição para se aliar à primeira potência que prometesse um novo acordo. As áreas do continente europeu onde se travara o conflito armado (o que ironicamente não incluía a Alemanha, cujo solo não fora palco de nenhuma grande batalha) haviam sofrido intensa destruição, e todos os países envolvidos na guerra amargaram baixas sem precedentes: metade dos jovens franceses — dois milhões deles — pereceram ou foram mutilados. Logo após as últimas batalhas da guerra, veio a epidemia de influenza em 1918, trazida inadvertidamente por tropas americanas vindas do Kansas, onde começou como gripe aviária, sofreu mutação para gripe suína, e depois, já na Europa, evoluiu de novo para sua forma mais letal. No mundo inteiro, a gripe afetou quase um bilhão de pessoas, das quais 20 a 40 milhões morreram; 85% dos mortos de guerra americanos (43 mil) sucumbiram para a influenza.
O Sofrimento da Alemanha
Na maioria dos países europeus do pós-guerra, a inflação esteve nas alturas. De todos, o mais atingido foi a Alemanha. Sobrecarregada com as esmagadoras reparações que lhe foram impostas, sua economia era incapaz de lidar com os custos da derrota. Em 1923, um obscuro e fracassado pintor tentou [A1] arrebatar o poder com um discurso delirante numa cervejaria da Bavária. Preso, gastou seu tempo na cadeia escrevendo um livro chamado Mein Kampf, em que descrevia um detalhado programa de governo, seguido ao pé da letra quando, mais tarde, subiu ao poder. É uma pena que, aparentemente, nenhuma liderança política, dentro ou fora da Alemanha, tenha se preocupado em lê-lo. Pelos meados da década de 1920, o país se recuperava, parcialmente estimulado por investimentos e ajuda econômica dos Estados Unidos, e em 1926 foi admitido na Liga das Nações. Veio então a Grande Depressão de 1929 e o investimento americano cessou. Todos os países, exceto a União Soviética, sofreram com aquele colapso capitalista, que espalhava desemprego em massa e desordem econômica generalizada. Na Alemanha, a situação instável catapultou o pintor frustrado (e agora ex-presidiário) a uma posição no governo, e depois à presidência — com 88% dos votos. Seu nome, é claro, era Adolf Hitler.
Hitler conseguiu dar uma guinada na economia alemã dentro de algumas semanas; construiu o grande sistema de rodovias, incentivou o desenvolvimento de um “carro do povo” (a Volkswagen) e fortaleceu as forças armadas dentro dos estritos limites impostos pelo Tratado de Versalhes. Por meio de um acordo secreto com os soviéticos, ainda desenvolveu tanques, a força aérea (que os Aliados haviam proibido) e pesquisas clandestinas com gás tóxico em solo russo. Anexou a Áustria, lançando mão de uma série de ações coordenadas, que incluíram a organização de grupos nazistas dentro do país vizinho e o envio de tropas para além da fronteira pouco antes de um plebiscito sobre a independência austríaca ― e isso ele fez apelando ao princípio wilsoniano de que povos com idêntica origem étnica e lingüística deveriam pertencer ao mesmo Estado. Encampou também a zona alemã da Tchecoslováquia (a Região dos Sudetos), e depois o país inteiro. Quando invadiu a Polônia em 1939, dividindo seu território com o aliado Stálin, que atacava pelo leste, os Aliados — a princípio, naquele momento, Grã-Bretanha e França — decidiram contê-lo, mas já era tarde; constatava-se, afinal de contas, que a Primeira Guerra Mundial não tinha sido “a guerra para pôr fim a todas as guerras”.
A Segunda Grande Guerra
Nada de mais aconteceu no primeiro ano do conflito, que o povo já alcunhava de “guerra de araque”. A França estava completamente despreparada para o confronto, apesar dos repetidos apelos do Marechal Pétain, herói da Primeira Guerra, para que se modernizassem as forças armadas. Um governo pacifista, dominado por socialistas, comandara o país durante os anos 30, e quando, em 1940, Hitler desencadeou sua “guerra-relâmpago” em todas as direções (a Blitzkrieg), aqueles governantes indecisos e amedrontados quiseram se livrar da responsabilidade pelo iminente fiasco. É que, para proteger a França de uma invasão, aqueles homens haviam confiado em nada mais que uma série de fortificações na fronteira oriental, conhecida como Linha Maginot; os alemães só tiveram de contorná-la. Após uma peregrinação a Notre Dame ― tão solene quanto burlesca, considerando as suas convicções ateístas e maçônicas ― os membros do governo, como que para mostrar que tentavam de tudo, decidiram entregar o poder ao Marechal Pétain, já então com mais de 80 anos.[A2] Um terço da França, Paris inclusive, estava em pleno processo de ocupação pelo inimigo. Centenas de milhares de soldados franceses terminariam em campos de concentração alemães. Esses militares capturados e a população civil das regiões ocupadas formariam uma multidão de reféns, cujas vidas dependiam do que Pétain viesse a fazer.
O marechal se deu conta de que a França não conseguiria continuar lutando; entretanto, um oficial esquentado e insubordinado chamado Charles de Gaulle dizia ser possível manter a resistência com o exército francês na África. Pétain, com sua experiência militar vastamente superior, sabia que aquela parte do exército precisava ser grandemente reforçada antes de qualquer confronto com os alemães; para ganhar tempo, assinou um armistício com Hitler. O sul da França, que ainda estava livre da ocupação inimiga, assim permaneceria ― incluindo a costa mediterrânea, que Hitler desejava mas jamais viria a conseguir, razão pela qual alguns historiadores consideram o armistício um erro muito custoso para o führer. O novo governo francês instalou sua sede em Vichy, no sul, com suporte de quase toda a população francesa. O Marechal Pétain era de origem camponesa, católico, e estava determinado a dar ao povo francês um governo conservador e ordeiro. Reduziu o poder dos grandes capitalistas e favoreceu uma organização corporativa da economia; pela primeira vez, nomeou ministro da agricultura um camponês; apoiou a Igreja Católica e suas instituições. Tudo isso foi uma lufada de ar fresco num país há muito submetido a um regime anticatólico e freqüentemente opressor. Havia um preço a pagar, é claro: neutralidade na guerra e cooperação com a Alemanha. As fábricas francesas tinham de produzir cotas para os alemães, mas o faziam tão lentamente quanto podiam; e mesmo assim algumas demandas eram negadas. Era uma estreita margem de manobra. Certa vez, questionado sobre a possibilidade de ignorar determinada exigência alemã, o Marechal Pétain fez recordar ao interlocutor que os alemães seriam capazes de executar toda a população da província da Alsácia. Hitler jamais conseguiria o controle da costa mediterrânea ou da esquadra francesa; quando, no decorrer da guerra, os alemães finalmente invadiram o país inteiro, o governo de Vichy ordenou que, se necessário, toda a esquadra deveria ser afundada para não cair em mãos alemãs. E já antes disso, Pétain também havia preparado o exército francês na África, que vinha sendo secretamente fortalecido, para se unir aos Aliados nas ofensivas finais da guerra.
O embaixador americano em Vichy ficou extremamente impressionado com o marechal e passou a nutrir grande admiração por ele. Pétain também mantinha comunicação verbal com Churchill; suas mensagens eram transmitidas por meio de agentes secretos que as memorizavam e repetiam, sem registro escrito. Na Inglaterra, todavia, estava De Gaulle, o desertor francês, anunciando-se ao mundo inteiro, pelas ondas do rádio, como representante da “França livre” e incitando a resistência aos alemães no país ocupado. Aqui nos falta espaço para a demorada tarefa de demolir o mito da Resistência. Diga-se apenas que, embora decerto houvesse homens e mulheres de boa-fé nesse movimento subterrâneo dedicado a sabotar as operações alemãs na França, também eram muitos os que se moviam pelo desejo de colher dividendos para sua agenda política no pós-guerra. Durante a guerra, o movimento causou muita devastação aos conterrâneos franceses devido às represálias que suas ações provocavam. A retaliação alemã recaía sobre civis inocentes, como no caso de uma vila inteira que foi fuzilada por causa dos danos causados pelas ações da Resistência.
Enquanto isso, a maior parte da Europa seguia ocupada pelos alemães, que foram até bem recebidos em certas regiões do Leste Europeu, porque Hitler prometera a devolução do território roubado desses povos após a Primeira Guerra Mundial. Até então, o führer lembrava um Napoleão; e a semelhança ficou ainda mais forte ao invadir sua antiga aliada, a União Soviética, com resultados previsivelmente desastrosos. No final de 1941, o ataque japonês a Pearl Harbor trouxe os Estados Unidos para a guerra, e o ano de 1942 veria a maré se voltar contra o líder do Terceiro Reich.
Os três grandes momentos de guinada da guerra naquele ano foram a derrota imposta aos alemães pelos soviéticos em Stalingrado, a vitória britânica sobre as tropas alemãs em El Alamein no Egito, e a destruição da frota japonesa pelos americanos em Midway. O movimento de retirada dos exércitos alemães prosseguiu até Berlim ser tomada em 1945; numa decisão fatal, as tropas americanas retiveram sua ofensiva sobre aquela cidade para que as forças soviéticas pudessem ocupá-la. Os russos já estavam presentes em toda a Europa Oriental com o propósito de implantar ali regimes soviéticos. Tragicamente, o ano que viu a vitória sobre a Alemanha nazista viu também o início do estado de tensão e hostilidade entre a União Soviética e o Ocidente, conhecido como Guerra Fria.
Crimes de Guerra
Pelo menos um livro inteiro seria necessário para uma discussão sobre os crimes de guerra — e os houve dos dois lados. A obsessão de Hitler em destruir “raças inferiores”, tais como ciganos, judeus e eslavos, levou a uma espantosa mortalidade civil. Polacos, judeus e outros “indesejáveis” pereceram aos milhões; teríamos de retornar às campanhas dos mongóis na Idade Média para encontrar semelhante número de vítimas. Os horrores dos campos de concentração são bem conhecidos, incluindo torturas, experimentos médicos e uso de restos humanos.
Mas os Aliados, por sua vez, também não podem ser inocentados. A política de bombardeio “estratégico” ou “de terror” fez com que aviões britânicos e americanos sobrevoassem cidades alemãs com ordens de atingir, não alvos militares, mas casas comuns, hospitais e escolas. O intuito era desencorajar a população, possivelmente baseado no princípio democrático de que “o povo” é responsável pelas ações do governo. O bombardeio de Dresden, com a extinção de cerca de 50.000 vidas inocentes (as estimativas variam), foi uma das piores atrocidades dos Aliados, mas nem de longe a única. É difícil enxergar, em tão indiscriminado e deliberado massacre de civis, algum vestígio de respeito ao princípio enunciado por Santo Tomás de Aquino de que “nunca é lícito matar o inocente”.
Quando a guerra acabou, a Operação Keelhaul, em obediência a uma das deliberações da Conferência de Yalta, fez repatriar os cidadãos de qualquer país Aliado que, ao fim da guerra, se encontrassem fora de sua terra natal. Essa decisão, que pode soar inofensiva, também se aplicava àqueles que não queriam voltar; especificamente, a dezenas de milhares de não-comunistas (ucranianos, russos e de outras nacionalidades) que, forçados a retornar para o controle soviético, foram sumariamente executados ou enviados para o Gulag.
O bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, com sua expressiva população católica, quando os japoneses já haviam tentado várias vezes iniciar negociações de paz, é um dilema moral de difícil resolução. Na primeira vez em que abordei esse assunto por escrito, inclinei-me a rejeitar as justificativas geralmente dadas para o uso da bomba atômica, baseando-me no princípio expresso por Santo Tomás de que “nunca é lícito matar o inocente”. Um leitor sério e bem informado me escreveu uma carta apresentando pontos excelentes que me conduziram a pesquisas mais profundas. O raciocínio era que, uma vez que os japoneses haviam rejeitado uma rendição incondicional, qualquer outra forma de acabar com a guerra, incluindo a invasão das ilhas, teria custado muito mais vidas americanas.
Vale ainda mencionar que ambos os Presidentes Roosevelt e Truman, em geral contrários ao emprego de armas químicas ou biológicas, parecem ter considerado que as bombas atômicas fossem simplesmente versões mais poderosas dos explosivos tradicionais. Poucos especialistas (se é que algum deles) parecem ter tido conhecimento dos verdadeiros efeitos que a bomba atômica teria sobre suas vítimas.
Sabe-se agora que muitos no governo e no corpo diplomático japonês eram favoráveis à rendição, tendo submetido propostas a esse respeito aos representantes soviéticos em Potsdam. Os próprios Estados Unidos davam a entender que a porta estava aberta a algum tipo de discussão de paz, apesar de insistirem na rendição incondicional.
Um dos obstáculos era a determinação japonesa em manter o imperador no cargo, assim como sua forma de governo tradicional. Os americanos estavam dispostos a permitir que um Japão pós-guerra escolhesse seu próprio sistema político, mas os termos eram vagos. A ênfase americana estava na rendição. Os mais intransigentes dos oficiais japoneses mostravam-se indecisos, alguns dos quais se inclinavam a um acordo de paz que seria uma quase-rendição, apesar das urgentes mensagens vindas de seus próprios embaixadores no exterior, ou de seus especialistas internos, que veementemente aconselhavam a rendição incondicional. (O extenso livro de Gerhard L. Weinberg, A World at Arms, A Global History of World War II, documenta os passos do doloroso processo que levou os mais perspicazes entre os japoneses a se posicionarem a favor da rendição.)
Antes que as facções opostas no governo japonês pudessem chegar a um acordo, esgotou-se a paciência americana, tanto com a indecisão japonesa quanto com o aumento de baixas no Pacífico, e a bomba foi lançada sobre Hiroshima. Como a rendição não foi imediata, o mesmo destino atingiu Nagasaki, com sua grande população católica. Mesmo que se considere que havia ali uma fábrica de armamentos, isso não tornava cúmplices os numerosos civis, crianças inclusive, incinerados ou seqüelados para o resto da vida pelos efeitos da radiação, do mesmo modo que a brutalidade dos soldados japoneses com seus prisioneiros não justificava a aniquilação de dezenas de milhares de civis que nada tinham a ver com aquilo. A justificativa para as bombas precisa se apoiar em outros fundamentos.
Quando as notícias sobre Nagasaki chegaram ao governo, ainda reunido em sessão para discutir os prós e contras da rendição, o imperador interveio pessoalmente para que se aceitassem os termos americanos. Assim acabava aquela que tinha sido, pelo menos até então, a maior guerra da história.
Pensamento e Cultura: Pré-Guerra e Pós-Guerra
Vários conjuntos de fatos ocorridos nos anos 1920 e 1930 merecem nossa atenção se quisermos entender a mentalidade das diversas nações envolvidas na Segunda Guerra e no mundo que dali surgiu. O primeiro é o crescimento dos movimentos de eugenia; o segundo, a propagação do comunismo; e o terceiro, o papel da Igreja Católica no período que precedeu a Segunda Grande Guerra e durante o seu desenrolar. Ao longo de todo esse período, a Irmã Lúcia de Fátima continuou a transmitir fielmente as mensagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, que receberam respostas variadas dos fiéis e dos papas.
Eutanásia e Câmaras de Gás
Nos anos 1920, a eugenia era moda em todo o mundo ocidental, incluindo os Estados Unidos, onde cerca de 60.000 pessoas foram esterilizadas à força. Uma infame decisão da Suprema Corte em 1924, no caso Buck versus Bell, legitimou o processo de esterilização para prevenir a transmissão de condições supostamente hereditárias. O famoso gracejo do juiz-presidente do tribunal, Oliver Wendell Holmes, ― “Três gerações de imbecis são o bastante” ― resumia a mentalidade dos engenheiros genéticos da época. O geneticista americano Hermann Mueller sonhava com a reprodução selecionada e com bebês de proveta, não hesitando em vaticinar: “Quantas mulheres... não ficariam ávidas e orgulhosas de criar um filho de Lênin ou de Darwin!” O famoso cientista, como se nota, tinha gostos duvidosos quando se tratava de seres humanos, mas ainda assim era bastante admirado por nomes como Bernard Shaw, C. P. Snow e Julian Huxley.
Até que surgiu o controle de natalidade, cuja meta Margaret Sanger descreveu como “mais homens aptos, menos inaptos”, e com o propósito de “criar uma raça de puros-sangues” e eliminar o “joio humano”, isto é, aquela “classe da humanidade que jamais devia ter nascido”. Entre as “raças inferiores” que julgava deviam ser esterilizadas, Sanger incluía “latinos, eslavos e hebreus”. Quanto a bebês em demasia, afirmava: “A maior caridade que uma família numerosa pode fazer a um de seus infantes, é matá-lo.” Uma dama não muito gentil, como se vê. Expressões como “seres humanos absolutamente desprezíveis”, “corpo estranho na sociedade humana” e “vida destituída de valor” eram comuns nos escritos da vanguarda eugenista nos anos 1920 — quando ainda ninguém ouvira falar de Hitler.
Enquanto isso, na Alemanha dos anos 1930, antes de Hitler subir ao poder, psiquiatras já haviam começado a matar pacientes mentais com gás venenoso — estimam-se cerca de 275.000 deles. Para difundir o argumento da economia que isso gerava, os livros escolares da época incluíam problemas de matemática que pediam que os alunos calculassem quantas casas populares podiam ser construídas com o dinheiro gasto na manutenção de um manicômio. Aos poucos, essa eliminação de pacientes por decisão médica foi se estendendo a epilépticos, pessoas com arteriosclerose, surdos-mudos e até mutilados da Primeira Guerra. Idosos eram alvos discretos: entrevistados em suas casas, eram depois levados para “avaliação”; quando suas famílias perguntavam por eles, ouviam dizer que tinham sido internados por um tempo. Na verdade, tinham sido mandados para câmaras de gás. Ironicamente, até o final de 1940, pacientes psiquiátricos judeus foram excluídos do programa, aparentemente por não merecerem tratamento tão compassivo. (Mais tarde viriam a receber atenção especial.) Os relatos de assassinatos de bebês e crianças — primeiro os mentalmente incapazes e os deficientes físicos, depois os que tinham dificuldade de aprendizado e os que molhavam a cama — são os mais angustiantes; muitos eram mortos de fome no decorrer de várias semanas por meio de uma gradual redução de alimentos. O processo economizava dinheiro com comida e com produtos químicos letais. Note-se que a lei alemã de esterilização compulsória de 1933 baseou-se amplamente na “Lei-Modelo de Esterilização Eugênica” composta por Harry Laughlin, um associado americano de Margaret Sanger. Outro associado, após visitar a Alemanha em 1940, falava admirado da “eliminação das piores cepas da raça alemã de forma científica e verdadeiramente humanitária”.
Os Erros da Rússia
Enquanto isso, os Papas continuavam a ignorar o pedido de Nossa Senhora de consagrarem a Rússia, ao passo que o poder e a influência da União Soviética seguiam em expansão. Criaram-se partidos comunistas por todo o mundo ocidental, e mesmo um regime comunista chegou a se estabelecer na Bavária, logo após a Primeira Guerra Mundial. Mesmo antes de Stálin tomar o poder em 1928, muitos milhares de russos “inimigos do povo” já haviam sido exterminados e os primeiros campos de concentração, organizados. Durante os anos 1930, Stálin mirou sistematicamente os kulaks, camponeses bem-sucedidos que naturalmente se opunham à coletivização de suas terras. Cerca de sete milhões deles foram fuzilados ou morreram em campos de trabalho forçado. Até que chegou a vez da Ucrânia, onde se fez uso de confiscos draconianos de alimento com a finalidade deliberada de produzir uma fome que ceifaria outras cinco milhões de vidas. Curiosamente, grande parte do Ocidente ignorou esta última atrocidade, graças às reportagens do correspondente do New York Times em Moscou, Walter Duranty, contumaz em negar que semelhante coisa estivesse em curso, apesar dos persistentes rumores que vinham das fronteiras russas. Notícias sobre fome em massa, escrevia Duranty, eram “um disparate”. Graças a suas conexões e a uma amistosa visita à Casa Branca, Duranty foi capaz de convencer o Presidente Roosevelt a reconhecer a União Soviética como nação.
Foi só em 1942, vinte e cinco anos após as aparições de Fátima, que o Papa Pio XII consagrou o mundo a Nossa Senhora, em 31 de outubro, com uma referência velada à Rússia. No início do ano seguinte, a Irmã Lúcia declarava: “O bom Deus já me mostrou seu contentamento com o ato realizado pelo Santo Padre e vários bispos, apesar de incompleto segundo seu desejo. Ele prometeu, por sua vez, acabar logo com a guerra. A conversão da Rússia não é para agora.” E ainda não aconteceu.
Nos anos 1930, os erros da Rússia espalharam-se agressivamente pela Espanha católica. A Guerra Civil Espanhola de 1936 a 1939 foi um dos passos em direção à Segunda Guerra Mundial, na medida em que alguns dos principais antagonistas europeus desempenharam certo papel nesse conflito espanhol, que de outro modo poderia ter permanecido meramente interno. A república estabelecida em 1931, após séculos de monarquia católica, não era nem eficiente nem católica; de fato, fechou escolas dirigidas pela Igreja e falhou em implantar reformas agrárias extremamente necessárias. Comunistas de dentro do país, com o habitual apoio estrangeiro, começaram a fomentar revoltas, assim como socialistas e anarquistas (que, de tão violentos, atraíam criminosos profissionais). O General Franco, tentando restaurar a ordem e sanear o governo, pediu que 600 homens se voluntariassem para auxiliá-lo; acabou conseguindo o apoio de 40.000. Camponeses uniram-se a ele, portando emblemas onde se lia “Viva Cristo Rey”.
Em 1936, a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini viram na Espanha a chance de influenciar um possível aliado estratégico e ao mesmo tempo testar armas desenvolvidas recentemente. Decidiram fornecer apoio aos nacionalistas de Franco. Stálin viu ali uma oportunidade de ouro para estabelecer um país comunista e enviou reforços em auxílio da república já influenciada pelo comunismo. (O governo republicano, agradecido, pagou-lhe com dois terços das reservas de ouro espanholas, antes de ser derrotado por Franco.) Simpatizantes estrangeiros, liberais idealistas e sonhadores como Ernest Hemingway, George Orwell e o comunista escocês Hamish Fraser, afluíram para a Espanha para engrossar as fileiras comunistas. Hemingway fez nascer de sua experiência um romance: Por Quem os Sinos Dobram. Orwell conseguiu ver o que realmente estava acontecendo e escreveu Homenagem à Catalunha; tornou-se um anti-stalinista convicto, ainda que com inclinações socialistas. Fraser, membro da polícia secreta soviética na Espanha, voltou para casa ainda comunista; alguns anos mais tarde tornou-se católico e fundou a excelente revista tradicionalista Approaches[A3] . Seu conhecimento das tramas internas da mentalidade e do sistema comunistas fez com que se tornasse um valoroso oponente da subversão em todas as suas formas.
Não há espaço aqui para detalhar alguns dos heróicos incidentes da guerra e os martírios de numerosos padres, freiras e fiéis. Franco venceu de maneira categórica, levando a Espanha a 36 anos de paz, e preparando o terreno para a prosperidade espanhola do pós-guerra. Não apenas Hitler não conseguiu o apoio espanhol em retribuição das armas enviadas pela Alemanha, já que a Espanha permaneceu neutra na Segunda Guerra, mas não pôde sequer obter acesso ao Mediterrâneo ou conseguir de Franco outras concessões que lhe seriam úteis. Após uma tentativa frustrada de extrair algum benefício do governante espanhol, assessores ouviram-no comentar: “Prefiro que me arranquem todos os dentes da boca a falar com aquele homem novamente.”
Perseguição Anticristã na Segunda Guerra
Seriam necessários vários volumes para acompanhar as vicissitudes da Igreja em todos os grandes países antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Aqui mencionaremos apenas as perseguições sofridas na União Soviética e na Alemanha durante a guerra. Já em 1922, uma carta de Lênin ao politburo exigia que a polícia secreta explorasse um surto de fome na região do Volga para destruir a Igreja Ortodoxa. “O período de fome”, escrevia Lênin, “é o único tempo em que podemos acertar o inimigo na cabeça. Ora, quando há canibalismo em áreas atingidas pela forme, podemos realizar a expropriação dos bens eclesiásticos com a mais furiosa e implacável energia... Precisamos esmagar sua resistência com tal crueldade, que se lembrem disso por décadas.”
A Igreja Ortodoxa entendeu a mensagem. No ano seguinte, o Patriarca Tikhon declarava: “Adotei completamente a plataforma soviética e considero que a Igreja deve ser apolítica.” Dali em diante, a Igreja Ortodoxa Russa foi de maneira geral dócil a seus mestres, às vezes indo a ponto de agir como ferramenta da política soviética. Não se pode necessariamente dizer o mesmo, entretanto, quanto aos fiéis individuais ou à minoria católica na Rússia. Uma leitura essencial para conhecer a vida cristã sob Stálin é o relato clássico do Padre Walter Ciszek, With God in Russia.
A Igreja Católica na Alemanha
Quando o regime de Hitler começou a mostrar a que veio e a desenvolver sua ideologia neo-pagã, ficou claro que o nazismo era incompatível com o cristianismo. Muitos protestantes, incluindo Dietrich Bonhoeffer e Karl Barth, perceberam isso e se opuseram ao regime, exceto um pequeno grupo formado pela “Igreja do Povo” — um movimento de tipo fundamentalista, sem doutrina, que por um lado ecoava algumas das idéias mais radicais de Lutero sobre os judeus e a nação alemã, e por outro apoiava os programas de eugenia do regime, além de seu anti-semitismo. Com cerca de 600 mil membros, representavam uma pequena fração (talvez dois porcento) dos protestantes alemães, mas foram sem dúvida muito úteis ao regime.
Quanto aos católicos, também estava claro que os princípios nazistas eram incompatíveis com o ensinamento da Igreja; os fiéis católicos estavam entre os que criticavam mais abertamente o regime e sofreram cerrada perseguição, extensamente documentada, já desde os primeiros anos do governo de Hitler. O movimento de resistência Rosa Branca, grupo heróico de estudantes católicos e outros cristãos, liderado por um jovem casal de irmãos católicos, organizou a única manifestação pública de desafio ao sistema na Alemanha nazista. O grupo foi logo detectado e seus jovens membros, executados; os líderes foram guilhotinados.
Sabe-se agora que o Papa Pio XII estava ciente da mais relevante das muitas tentativas de assassinar Hitler, liderada pelo oficial católico Claus von Stauffenberg, e facilitou o contato entre as partes organizadoras da trama — que falhou, como todas as outras. Parece que Hitler tinha um estranho e misterioso senso de perigo, mudando abruptamente sua programação ou seus movimentos sem nenhuma razão aparente, sempre que um atentando contra sua vida estava para acontecer. O papa, entretanto, faria muito mais na luta contra Hitler, inclusive providenciando reuniões entre agentes secretos estrangeiros e alemães antinazistas para assassiná-lo, até que o próprio papa se tornou um alvo dos nazistas. Nos últimos meses da guerra, organizaram-se vários planos para seqüestrar o papa (ou mesmo assassiná-lo) e saquear os tesouros do Vaticano.
Salvando os Judeus
É interessante notar que a palavra holocausto não aparece nos livros de história mais antigos do pós-guerra; mesmo quando começou a ser utilizada, referia-se simplesmente ao total de perdas de vidas causadas pelas potências do Eixo — as cerca de 50 milhões de vítimas da Segunda Guerra. Só mais tarde a palavra passou a ser utilizada com letra maiúscula e exclusivamente para os judeus mortos por Hitler.
De mais interesse para os católicos é a constante repetição de acusações contra a Igreja e o papado por supostamente não ter parado Hitler de alguma forma ou impedido toda a matança de judeus (os poloneses não nos culpam por não termos impedido a matança de 5 ou 6 milhões de poloneses). Essa investida propagandística começou apenas nos anos 1960. Imediatamente após a guerra, tanto a Igreja quanto o papado foram louvados pelos judeus por seu esforço em salvá-los. O historiador e diplomata israelita Pinchas Lapide declarou que a Igreja Católica salvou cerca de 860 mil judeus — mais que todas as outras igrejas, países e organizações de ajuda somados. O principal rabino de Roma, Rabino Zolli, foi batizado após a guerra e tomou no batismo o nome do papa, Eugênio; não é possível imaginar um homem tão dedicado ao seu povo fazendo tal coisa se o Papa Pio XII tivesse realmente se mantido apático a respeito da ajuda aos judeus. A história de Roma durante a ocupação alemã é bem documentada, assim como o papel da Igreja ao salvar não apenas pilotos e soldados Aliados encurralados atrás das linhas inimigas, mas também a comunidade judaica romana. (Não se pode esquecer, a respeito disso, o filme de Gregory Peck, O Escarlate e o Negro.)
Apesar disso, o aparecimento da infame peça teatral de 1963, O Vigário, conseguiu dar início ao mito da indiferença católica diante do destino dos judeus ou mesmo de sua colaboração direta no Holocausto, alvejando especialmente o Papa Pio XII. Em 1963, muitas testemunhas que poderiam ter combatido o novo mito já estavam mortas, e os inimigos da Igreja se viram livres para despejar ataque após ataque sobre a suposta dívida de guerra do papado. Em anos recentes, a maré de livros baseados no mito parece ter atingido seu limite; é gratificante ver que há agora um sólido número de refutações dessas mentiras, algumas escritas por judeus respeitáveis que prestam o devido respeito aos fatos históricos. Ainda há muito a ser feito, é verdade, e mesmo quando o mito estiver completamente demolido, sabemos que é provável que continue a viver subterraneamente, como os mitos sobre as Cruzadas, a Inquisição, o Priorado de Sião, os Illuminati, e todas as outras loucuras que alguns de meus alunos simplesmente pensam “saber” ser verdade.
Este talvez seja um desfecho bastante pesaroso para nosso estudo. Ainda mais melancólico seria, no entanto, se seguíssemos adiante pelo período pós-guerra. Mas isso seria matéria para outro artigo.
[A1]Alterei só para evitar a repetição de fonemas /t/ muito próximos.
[A2]Meu original diz: “then in his late seventies”.
[A3]Meu original em pdf diz Apropos
“Mesmo se derramássemos todo o Rio Elba em lágrimas, não seria o suficiente para lamentar os desastres da Reforma: é um mal sem solução”. Por mais estranho que pareça, essas palavras não foram ditas por um católico, mas por Filipe Melâncton, amigo de Lutero e um dos principais realizadores da Reforma. O próprio Lutero, pouco antes de morrer, escreveu sobre a mágoa que sentia a respeito do caos e da proliferação das seitas propagadas por seus ensinamentos:
“Devo confessar que minhas doutrinas produziram muitos escândalos. Não posso negá-los, e isso me assusta, especialmente quando minha consciência traz-me a lembrança de que destruí a situação na qual a Igreja se encontrava, calma e tranquila, sob o papado”.
Se até mesmo alguns líderes protestantes chegaram a ter essa percepção sobre a Reforma, não espanta que os católicos a vejam como uma verdadeira catástrofe. O historiador Paul Johnson chamou-a de “uma das maiores tragédias da história, e a tragédia central do cristianismo”. Ela foi uma catástrofe e um castigo para a Cristandade; um desastre levado até as últimas conseqüências, pois foi o apogeu de uma série de castigos sem precedentes, desatrelados no curso dos dois séculos anteriores.
Duzentos anos antes de Lutero pregar suas famosas teses em 1517, o primeiro dos castigos que demoliriam a civilização medieval já havia sido lançado: a grande fome de 1315 a 1322, que causou muitas mortes no norte da Europa, onde algumas áreas tiveram uma taxa de mortalidade de 10%. No mesmo século, houve sete outras grandes fomes no sul da França.
Desastres ainda piores vieram em seguida. Menos de trinta anos depois, a Peste Negra, a maior pandemia que o mundo já viu, tirou a vida de milhões. Iniciou-se a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra, e o papado enfrentava uma série de adversidades, entre elas o Papado de Avignon, o Grande Cisma do Ocidente e a heresia do conciliarismo (que reivindicava para os concílios uma autoridade maior que a do papa). Como se já não bastasse, um novo grupo muçulmano, os turcos otomanos, invadiu o sudeste da Europa em 1354.
Por que Deus parecia estar punindo a Europa de Santo Tomás de Aquino e São Luís, de São Gregório VII, São Francisco de Assis e tantos outros grandes santos católicos? É claro que historiadores seculares negam que os desastres dos séculos XIV, XV e XVI tenham sido castigos divinos. Para eles, as coisas na história simplesmente acontecem, sem qualquer plano ou desígnio superior. Mudanças climáticas ocorrem periodicamente, guerras simplesmente estouram, epidemias podem se espalhar a qualquer momento. Para eles, o trabalho do historiador consiste apenas em analisar e registrar os acontecimentos e não buscar neles algum significado transcendente. O historiador católico, porém, vê a história como a ação de Deus no mundo em que Ele se encarnou. Para isso, Deus utiliza-se de instrumentos humanos, e nem sempre é fácil notar de que modo e em que lugar opera a Sua mão.
Mas podemos examinar as pistas. Com efeito, desastres e catástrofes aparentam ser respostas de Deus a ações imorais. Por isso, enquanto o historiador secular considera a catastrófica dissolução da civilização medieval como um mero fenômeno interessante, eu me inclino a considerá-la um castigo. Mas um castigo contra o quê, visto que a era precedente parecia tão dedicada às coisas de Deus e à Sua Igreja?
A frieza
São Francisco de Assis já havia notado algo errado em sua época, o começo do século XIII. Apesar da impressão que se tem do século XIII como uma época fervorosamente devota, Francisco a via como uma nova “era do gelo” para a espiritualidade. “A caridade”, dizia ele, “congelou”.
Como é possível, no século em que o Papa Inocêncio III ordenara a internação gratuita dos pobres nos hospitais de todas as grandes cidades, no período em que até mesmo reis e duquesas se dispunham a cuidar dos doentes, em que se fundaram novas ordens para pregar, ensinar, curar e redimir prisioneiros?
É evidente que São Francisco, ao utilizar a palavra “caridade”, não se referia somente aos trabalhos de misericórdia corporal — embora estivesse profundamente empenhado neles — mas pensava antes de tudo naquele terno amor por Deus, ordenado pelo que Nosso Senhor chama de “o primeiro e maior” dos mandamentos. Era o amor a Deus que havia esfriado. (Vale a pena observar que Dante, ao escrever na entrada do século XIV, representou as punições dos recantos mais profundos do inferno não com o tradicional fogo, mas com gelo).
A coleta da Festa dos Estigmas de São Francisco de Assis, em 17 de setembro (Missal Tridentino), se refere a esse crescente esfriamento:
Senhor Jesus Cristo, que no meio da indiferença do século Vos dignastes, para reacender os nossos corações no fogo da Vossa caridade, gravar na carne do bem-aventurado Francisco os estigmas da Vossa paixão, concedei-nos, por seus merecimentos e intercessão, a graça de sempre levar a cruz e produzir frutos dignos de penitência.
Outro sinal desse esfriamento espiritual é o fato de que o Quarto Concílio de Latrão, em 1215, viu-se obrigado a exigir o recebimento da Sagrada Comunhão ao menos uma vez por ano, sob pena de pecado mortal. O fato de que a expressão central da devoção católica — sem mencionar o inefável privilégio — precisasse ser transformada em obrigação em vez de ser naturalmente considerada uma alegria, mostra-nos uma vez mais como o fervor religioso havia diminuído. É claro que Deus não responde ao pecado somente com castigos, ele também envia graças especiais. Aqui, encontramos Deus se revelando de maneira extraordinária a duas almas santas desse mesmo século: Ele deu à bem-aventurada Juliana de Liège a missão de promover a Festa de Corpus Christi, para reviver a devoção ao Santíssimo Sacramento; e a Santa Gertrudes, no final do século, Ele revelou o Seu Sagrado Coração.
A sociedade medieval e o desenvolvimento do comércio
A questão permanece: o que causou essa diminuição do fervor e o crescimento da frieza, mesmo no século que parece ser o mais católico de todos? Alguns culpam as heresias que colocavam em dúvida a verdadeira presença de Cristo na Eucaristia. Todavia, a maioria delas havia fracassado e não trouxe muitos danos, embora tenha sido necessário o uso de grande força militar para reprimir a bizarra seita dos cátaros, que florescia no sul da França e em partes da Áustria e Itália. O ensinamento cátaro de que toda matéria era produzida por um espírito maligno atacava implicitamente o culto ao Corpo de Cristo no Santíssimo Sacramento. No século XIII, contudo, as heresias ainda não tinham a grande influência que viriam a ter mais tarde dentro da Cristandade; ainda não chegara o seu momento. As heresias medievais, portanto, não foram a causa principal do crescimento da frieza, tampouco a corrupção que existia em certas áreas do clero.
Logo, deve haver outro elemento envolvido no enfraquecimento da fé e do amor na Idade Média Plena, e o ambiente no qual São Francisco cresceu nos dá uma pista dele. Seu pai era um próspero comerciante de tecidos e residia numa movimentada cidade-Estado, num tempo em que a atividade comercial crescia por toda a Europa. Por si só, isso não foi algo ruim. Comerciantes e associações de artífices operavam sob princípios cristãos, prestando serviços sociais aos seus membros, regulando a qualidade do trabalho, pagando salários dignos e cobrando preços justos. Gradualmente, porém, aumentava a complexidade dos negócios e o individualismo dos comerciantes; no século XIII, ganhar dinheiro tornou-se uma preocupação muito maior do que nos séculos anteriores.
Um medievalista francês observou que embora o povo do começo da Idade Média pudesse ser ganancioso, ao cobiçar terras, prestígio, poder, entre outras coisas, o que ele vê no período final da Idade Média é diferente. É o crescimento da avareza: o amor pelo dinheiro. Enquanto a cultura dos negócios crescia rumo ao que por vezes se chama protocapitalismo, os corações católicos se mostravam cada vez mais divididos entre Deus e o mundo. Um mercador do século XV escreve no topo do seu livro de contabilidade: “Em nome de Deus e do lucro”. Como observa outro historiador da Idade Média Tardia: “Começou-se a manter dois tipos de condutas: uma voltada para o lucro e a outra voltada para Deus”.
Nosso Senhor afirma claramente: “Não podeis servir a Deus e a Mamom”. Daí a pobreza radical esposada por São Francisco: Deus enviara um santo que dizia aos católicos o que estava errado e o inspirara a lhes ensinar o remédio. Ao que parece, os ensinamentos de São Francisco não foram suficientemente praticados. A ordem franciscana cresceu rapidamente, e as massas ouviam os frades pregarem. Governantes santos como Isabel da Hungria e Luís de França entraram para a Ordem Terceira franciscana. Porém, tudo indica que esse grau de conversão não satisfez os pedidos de Nosso Senhor.
É difícil acreditar que essa crescente preocupação com lucro não teve efeitos sobre a vida espiritual dos habitantes cada vez mais ocupados das cidades do século XIV. O amor pelo dinheiro talvez não impeça que uma alma ame a Deus, mas pode facilmente destruir o ardor espiritual, o gosto pela contemplação, pelas devoções e o zelo pelos trabalhos de caridade. As crônicas nos contam que mesmo depois da Peste Negra, as pessoas não se tornaram menos avarentas, muito pelo contrário. As heresias que brotaram naquele momento, de algum modo, causaram mais danos e fincaram raízes mais fortes nas mentes do que as heresias anteriores; as ideias heterodoxas de John Wycliffe na Inglaterra e Jan Hus na Boêmia duraram bastante nos seus países de origem. Tudo isso, além dos problemas que prejudicaram o papado e neutralizaram sua resistência aos males da época, havia debilitado as almas dos católicos comuns, tornando-os mais vulneráveis aos heresiarcas do século XVI.
Subversão do pensamento
Quanto aos intelectuais, muitos haviam sido influenciados ao longo dos séculos XIV e XV pelas novas ideias de Guilherme de Ockham, cuja filosofia do nominalismo subverteu a grande síntese escolástica entre fé e razão, ao destruir sua fundação filosófica no realismo aristotélico. Ockham defendia que a mente humana é capaz de conhecer coisas individuais, mas não conceitos universais (defendidos pelos realistas), ou seja, não se pode conhecer Deus pela natureza; algo que é verdadeiro pela fé não o deve ser pela razão, e vice-versa. Esses são apenas alguns pontos de um amplo e complexo pensamento, mas eles já indicam uma mudança radical na mentalidade: da confiança dos medievais e clássicos no uso da mente, para o pessimismo teológico e filosófico.
A perda de confiança na possibilidade de que a razão pudesse demonstrar a existência de Deus, e a ideia das “duas verdades” (uma de fé e outra da razão) geraram incerteza teológica e até mesmo futilidade. O nominalismo tornou-se popular entre círculos reformistas; é até possível que tenha sido o motivo de Lutero se voltar inteiramente contra a razão: “A razão é a prostituta, sustentáculo do Diabo”, escreve ele. “O Batismo deve eliminá-la”.
O Renascimento do final do século XV e do século XVI desferiu o derradeiro golpe na estrutura cambaleante da civilização medieval. O individualismo, já alimentado pela nova cultura dos negócios, tornou-se um verdadeiro culto para escritores como Pico della Mirandola, que glorificava o homem de uma maneira nunca antes vista em cultura alguma, incluída aí a dos gregos e romanos. Outros exaltavam o “indivíduo heroico”, enquanto Maquiavel, com o seu infame mote “os fins justificam os meios”, conseguiu ser o mais imoral de todos os que estavam determinados a manter sua posição e poder. As ideias desses homens representavam a antítese do pensamento medieval, que valorizava a coletividade em vez do individualismo, a humildade em vez do orgulho e a moral católica em todas as áreas.
A revolta seguinte
Esses elementos não representam as causas inevitáveis do desastre conhecido como Reforma Protestante, mas contribuíram para favorecer sua emergência. A frieza espiritual, a preocupação excessiva com os afazeres mundanos, o individualismo, a exposição a diversas noções heréticas e a corrupção generalizada do pensamento (o que prejudicou a relação entre fé e razão): todos esses elementos contribuíram para deixar as mentes confusas e as almas indefesas perante o tsunami que estava prestes a atingi-las.
Aqui já podemos notar a diferença entre essa análise e a versão convencional sobre as origens da Reforma. O mito da Reforma é descrito da seguinte maneira: No século XVI, a Igreja Católica havia se tornado mundana e corrupta. O clero era imoral, os mosteiros eram fossas de iniquidade e se praticava a compra e venda de coisas santas. A situação era intolerável por toda parte, todos sentiam que alguma medida precisava ser tomada. Havia uma insatisfação generalizada contra a Igreja Católica, e um grande anseio por uma religião mais simples, fiel aos Evangelhos e que colocasse as pessoas em contato direto com Deus. Por fim, um corajoso padre alemão, Martinho Lutero, revoltado com a venda de indulgências, indignou-se e protestou publicamente. Esse foi o começo de uma grande renovação do cristianismo, inevitável e historicamente necessária.
A maioria dos protestantes, evidentemente, tem aceitado esse enredo, e até mesmo historiadores católicos aceitaram partes dele, talvez intimidados com a difusão universal do mito nos livros didáticos e nas universidades. A verdade, porém, é muito diferente.
Em 1991, a Oxford University Press publicou uma revisão do assunto feita por Euan Cameron intitulada The European Reformation. É um resumo excelente e erudito sobre a Reforma, e inclui uma investigação das pequenas seitas e das práticas religiosas do povo comum. Contribuiu muito para desmantelar os elementos do mito reformista. A respeito da afirmação de que a corrupção no clero inflamou entre o povo um clamor generalizado por reforma, Cameron diz o seguinte:
Antes do ano 1500, padres extravagantes ou libertinos vinham sendo reprimidos em sermões havia pelo menos 150 anos. São Bernardo de Claraval, já no ano 1150, escrevia severamente contra a avareza no clero. A respeito de vícios e ambições políticas, João XII (955-964) ultrapassou facilmente o Papa Alexandre VI. Se os problemas eram antigos, também eram as críticas. Mas, os agitadores “reformistas” do ano 1500 pensavam que sua época era um tempo de declínio catastrófico, precedida por séculos de primordial piedade. É preciso que esse mito seja visto somente como mais um clichê.
Uma abordagem como essa traz novos ares para os estudos sobre a Reforma. Males existiam e sempre existiram. Os católicos comuns não esperavam que o homem — com sua natureza corrompida — fosse perfeito, e não mudariam da indignação com as “maçãs podres” dentro do clero para a ideia de que a própria Igreja devia ser fragmentada. Não há evidências de que a maioria dos católicos sequer quisesse que a Igreja ensinasse algo que já não fizesse antes. Muitos estavam conscientes da necessidade de reformas institucionais, para garantir, por exemplo, que os bispos fizessem seu trabalho adequadamente e que os padres fossem corretamente educados. Com efeito, o Quinto Concílio Geral de Latrão, realizado de 1512 a 1517, incluiu entre os diversos temas a serem discutidos a necessidade de reformas. O seu foco principal, porém, foram as questões políticas urgentes, e o seu trabalho foi dificultado pelas rivalidades entre alguns participantes. Talvez tenha sido uma última chance dada à Igreja para que respondesse com vigor à apatia e ao materialismo dentro do clero; pouco depois, naquele mesmo ano de 1517, era tarde demais, pois Lutero havia entrado em cena.
Ao analisar as origens da Reforma, é preciso lembrar também que grande parte da Europa não cedeu às suas ideias. Onde a Reforma de fato ocorreu, observa Cameron, o seu êxito estava ligado à prática de submeter o dogma ao debate público. Em lugar da verdade revelada por Deus, convidavam-se as pessoas a escolher aquilo em que desejavam acreditar. Nessas áreas, contudo, a religião misturou-se com a política. O historiador Carlton Hayes diz: “O protestantismo foi o aspecto religioso do nacionalismo”. Segundo Cameron: “A Reforma deu a muitos grupos da Europa as primeiras lições sobre o comprometimento político com uma ideologia universal. No século XVI, a religião se tornou política de massa”.
Três “reformistas”: Lutero, Calvino e Henrique VIII
Não discutirei aqui em detalhes as posições teológicas dos fundadores das três novas religiões criadas na Reforma. Além da falta de espaço, seria inútil falar sobre a “posição teológica” de um homem como Henrique VIII. As principais novidades ensinadas pelos heresiarcas se encontram em diversas obras católicas conceituadas. Em todo caso, minha preocupação é menos com as complexidades teológicas do movimento herético do que com a questão de por que ele obteve sucesso. Irei simplesmente apontar algumas características do novo ensinamento protestante que parecem ter agravado o enfraquecido estado espiritual em que grande parte da Cristandade já se encontrava: esfriamento da devoção a Deus, a Nossa Senhora e à Santa Eucaristia, preocupação excessiva com dinheiro e aumento do individualismo. Até mesmo o abuso que levou Lutero a apregoar publicamente suas novas ideias religiosas — que ele já havia desenvolvido — era o tipo que interessava à sua época: a venda de indulgências.
A questão das indulgências
Essa afronta causou escândalo na época, e embora o Papa Leão X (Giovanni di Lorenzo de Médici) a tivesse ordenado, algumas autoridades da Igreja não a permitiam em suas dioceses. Leão — que queria dinheiro para a construção da nova basílica de São Pedro — e um arcebispo alemão endividado com jogos reuniram forças para implantar a venda de indulgências (reduções das punições temporais decorrentes do pecado, inclusive os pecados dos indivíduos que estão no purgatório). O famoso verso citado por Tetzel, “Assim que soa a moeda no fundo do cofre, sai do purgatório a alma que sofre”, talvez seja um pouco exagerado, mas sintetiza o objetivo da campanha: venda por atacado de benefícios espirituais em troca de dinheiro.
Esse tipo de comércio imoral não era algo novo; há um vendedor de indulgências trabalhando de modo semelhante nos Contos de Cantuária, obra de Geoffrey Chaucher, do final do século XIV. O mais interessante é a razão de esse comércio estar ativo naquele momento. Não se pode imaginar a venda de indulgências sendo tão lucrativa sem que houvesse uma economia florescente e uma mentalidade receptiva da parte das classes endinheiradas. É certo que o comerciante, não propenso a adquirir as indulgências mediante orações e boas obras, e sem tempo para rezar por seus parentes falecidos, viu o mercado de indulgências como uma bênção. Dinheiro, tinha-o; tempo livre, não. Mais tarde, quando Lutero dizer-lhe que não existe a necessidade de indulgências e que, portanto, ele poderia guardar seu dinheiro, o comerciante ficará ainda mais feliz.
As ideias de Lutero se adaptam a uma era comercial e individualista
Podemos agora examinar as ideias de Lutero no contexto de sua época. A sua afirmação de que “somente a fé” é necessária para a salvação, por exemplo, casou bem com a época, ao livrar-se da necessidade daquelas penosas boas obras. (Lutero não disse que não se devia fazer boas obras; na verdade, ele disse que se devia fazê-las; mas é natural ao homem concluir que, se algo não é estritamente necessário para a salvação, pode ser deixado de lado). Lutero também disse que “o cumprimento dos deveres temporais é a única maneira de agradar a Deus”. Essa perda na ênfase da contemplação e da vida espiritual provavelmente contribuiu para o fechamento dos mosteiros e conventos na Alemanha e para a concentração em objetivos seculares, entre eles o comércio. Isso soou bem aos ouvidos dos burgueses do Sacro Império Romano-Germânico, e se adaptou bem ao espírito da época. Devemos relembrar que desde a Idade Média reis e autoridades se esforçavam incansavelmente para controlar as terras da Igreja dentro do império. Não é de admirar que seus descendentes tenham se encantado ao ver esses valiosos territórios, que seus ancestrais tanto haviam cobiçado, desprotegidos e sem poder de reação.
Outro ponto que casou bem com a época e que seduziu mentes cada vez mais individualistas foi o princípio de que somente a Bíblia era a regra de fé e que cada indivíduo podia interpretá-la sozinho.
Como observa um autor moderno, “o mandato divino de decidir o que era verdade e o que era heresia passou da Igreja — a quem pertencia — para o indivíduo”.
A teologia de Calvino prepara o terreno para os negócios
O pregador francês João Calvino concordava com Lutero em muitos pontos, mas enfatizou a doutrina que se tornaria seu cartão de visitas: a Predestinação Absoluta. Calvino acreditava que, desde a eternidade, Deus havia determinado algumas almas ao Céu e outras ao Inferno, e nada que um indivíduo fizesse poderia mudar sua sentença eterna. Era horrível ter de conviver com uma ideia como essa, e os primeiros calvinistas freqüentemente se angustiavam com a noção de que talvez estivessem condenados e que não podiam fazer nada a respeito.
A teoria, porém, fora de algum modo abrandada pela ideia de que se o indivíduo fosse um dos “eleitos”, sabê-lo-ia mediante alguns sinais de Deus. Acreditar nos ensinamentos calvinistas seria um desses sinais, assim como se comportar bem; mas o sinal mais seguro, porque mais objetivo, seria o de que os negócios mundanos da pessoa estavam melhorando. Isso se inspira no modo como Deus lidava com os hebreus no Antigo Testamento, recompensando-os com prosperidade material quando eles O agradavam.
Henrique VIII promove o cisma da Inglaterra
Diferentemente de Lutero e Calvino, Henrique VIII não pretendia criar uma nova teologia; ele queria apenas um divórcio, mas o papa não queria concedê-lo.
Quando fez de si mesmo o chefe da Igreja na Inglaterra, rompendo com Roma, ele primeiramente criou um cisma, e não uma nova igreja. Contudo, mesmo antes de morrer, depois de ter passado por mais dois divórcios e ter executado duas esposas, seus colegas de ideologia protestante haviam começado a introduzir mudanças na liturgia católica.
Durante o reinado do sucessor de Henrique, surgiu a Igreja da Inglaterra. Era uma nova seita protestante que costurara remendos católicos com diversas ideias heréticas e uma forte associação à coroa e aos deveres patrióticos. Mais tarde, alguns calvinistas — sempre radicais e militantes — se tornaram muito influentes no país, a ponto de, no século XVII, conseguirem implantar uma revolução e executar o rei legítimo (Carlos I). Essa influência calvinista afetaria a sociedade e a economia tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, onde rebeldes puritanos fundaram as primeiras colônias da Nova Inglaterra em 1620 e 1630. As ideias calvinistas inglesas contribuiriam para moldar a perspectiva americana sobre a vida política, social e econômica.
Os resultados
Conhecemos bem os resultados da Reforma. Criaram-se novas religiões hostis a Roma e, geralmente, submissas às novas monarquias sob as quais haviam emergido. A Cristandade foi fragmentada de modo irreversível, e a Igreja perdeu grande parte da Europa, a qual conseguira unificar a duras penas durante a Alta Idade Média. Os santos da Contrarreforma conseguiram recuperar alguns desses territórios e reformar os abusos na administração eclesiástica, mas grande dano já havia sido causado e grande parte da Civilização Ocidental permaneceria infestada com ideias protestantes. O Padre Frederick Faber, um convertido do anglicanismo, analisou diversos efeitos da mentalidade protestante nos católicos da Inglaterra do século XIX. “É difícil”, observa ele, “viver entre icebergs e não sentir frio”.
Em um de seus livros, ele aponta um dos resultados mais prejudiciais da convivência dos católicos com os descrentes:
As Sagradas Escrituras comparam a vida a uma terra cansada (...) Assim é com a religião. Não podemos viver entre descrentes e, ao mesmo tempo, gozar da brilhante vida espiritual dos que vivem nos tempos e regiões de fé. Os que passam a vida numa espécie de Éden doméstico, que deixariam senão com pesar, e convivem em demasia com os que não são filhos da Igreja, logo são prejudicados por estas relações, desde que vivam em paz com aqueles a quem nunca deveriam cessar de tentar converter. A fé, bem como a santidade, debilita-se e fenece no convívio de tal sociedade, cuja atmosfera não lhes é conveniente. Daí originam-se tantas opiniões estranhas sobre a facilidade da salvação para os hereges, indo até a baixeza de considerar a bondade de qualquer doutrina como medida de verdade. E bondade, entenda-se, não para com Nosso Senhor e a Sua Igreja, mas para com os que não estão ligados a Ele ou a Ela.
Quem, hoje em dia, não tem na família ao menos um descrente, com o qual ninguém quer discutir, para não ter que perturbá-lo com incômodas questões religiosas?
O processo de mudança da civilização católica da Idade Média até a fragmentação do mundo cristão no século XVI pode se resumir da seguinte maneira: a cobiça e a mundanidade primeiro produziram indiferença às coisas de Deus, e o amor por Nosso Senhor esfriou. Quando nem sequer os numerosos santos que Deus enviou no século XIII puderam tocar os corações dos cristãos na medida que Ele desejava, a Europa sofreu os castigos da fome, da peste e da guerra. Conseqüentemente, os homens cresceram piores e não melhores. Até mesmo os papas foram punidos com cismas e heresias. O castigo seguinte, muito pior, foi a difusão de erros filosóficos e teológicos em toda a Cristandade por heresiarcas carismáticos e obstinados, pregadores de falsas doutrinas e ódio à Igreja.
Esse processo continua até hoje. Com efeito, o julgamento privado alcançou sua conclusão lógica no culto do homem moderno: a partir do conceito “todo homem é um papa” durante a Reforma, para a ideia de que “todo homem é seu próprio rei” no período revolucionário seguinte, chegando ao atual “todo homem é seu próprio deus”. É verdade que a Igreja da Contrarreforma, cuja ponta de lança foi o Concílio de Trento, reformaria abusos e conseguiria grandes vitórias. Papas exemplares a lideraram, e ela recebeu a graça de ser auxiliada por vários santos. O número total das legiões de almas que ela não pôde recuperar na Europa talvez tenha sido compensado pela conversão de milhões no Novo Mundo.
Entretanto, muito do que se perdeu nunca mais foi recuperado. A Igreja, no mundo moderno, tem permanecido na defensiva, e todos nós fomos afetados pela mudança do clima intelectual originariamente introduzido pela mentalidade protestante.
Fonte: Dez datas que todo católico deveria conhecer, Castela Editorial, 2013.
Tradução de Gabriel Galeffi Barreiro