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Category: Charles PeguyConteúdo sindicalizado

Poeta francês (1873-1914), morreu na batalha do Marne.

A esperança

A ESPERANÇA

Charles Péguy

 

A crença de que eu gosto mais, diz Deus, é a esperança.

 

A fé, isso não me espanta.

Isso não é espantoso.

Eu resplandeço de tal maneira na minha criação.

No sol e na lua e nas estrelas.

Em todas as minhas criaturas.

Nos astros do firmamento e nos peixes do mar.

No universo das minhas criaturas.

Sobre a face da terra e sobre a face das águas.

No movimento dos astros que estão no céu.

No vento que sopra sobre o mar e no vento que sopra

no vale.

No calmo vale.

No tão quieto vale.

Nas plantas e nos animais e nos animais das florestas.

E no homem.

Minha criatura.

Nos povos e nos homens e nos reis e nos povos.

No homem e na mulher sua companheira.

E principalmente nas crianças.

Minhas criaturas.

No olhar e na voz das crianças.

Porque as crianças são mais minhas criaturas.

Do que os homens.

Elas não foram ainda desfeitas pela vida.

Da terra.

E entre todos elas são meus servidores.

Antes de todos.

E a voz das crianças é mais pura do que a vos dos

ventos na calma do vale.

No vale tão quieto.

E o olhar das crianças é mais puro do que o azul do

céu, do que o leitoso do céu, e do que um raio

de estrela na calma noite.

Ora eu resplandeço de tal maneira na minha criação.

Na face da montanha e na face da planície.

No pão e no vinho e no homem que lavra e no homem

que semeia e na messe e na vindima.

Na luz e nas trevas.

E no coração do homem que é o que há de mais

profundo no mundo

Criado.

Tão profundo que é impenetrável a todo olhar.

Exceto ao meu olhar.

Na tempestade que faz cabriolar as ondas e na

tempestade que faz cabriolar as folhas.

Das árvores da floresta.

E ao contrário na calma de uma bela tarde.

Na areia do mar e nas estrelas que são uma areia

no céu.

Na pedra do limiar e na pedra da lareira e na pedra

do altar.

Na oração e nos sacramentos.

Nas casas dos homens e na igreja que é a minha casa

sobre a terra.

Na águia minha criatura que voa sobre os píncaros.

A águia real que tem pelo menos dois metros de

envergadura e talvez três metros.

E na formiga minha criatura que rasteja e que armazena

um pouquinho.

Na terra.

Na formiga meu servidor.

E até na serpente.

Na formiga minha serva, minha ínfima serva, que

armazena a custo, a parcimoniosa.

Que trabalha como uma desgraçada e que não tem

mesmo folga e que não tem mesmo descanso.

A não ser a morte e o longo sono de inverno.

 

Eu resplandeço de tal maneira em toda a minha criação.

 

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A caridade, diz Deus, isso não me espanta.

Isso não é espantoso.

Essas pobres criaturas são tão infelizes que a não ser

que tivessem um coração de pedra, como não

haveriam de ter caridade umas para com as outras.

Como não haveriam de ter caridade para com seus irmãos.

Como é que eles não haviam de tirar o pão da boca,

o pão de cada dia, para dá-lo a desgraçadas

crianças que passam.

E meu filho teve para com eles uma tal caridade.

Meu filho irmão deles.

Uma tão grande caridade.

 

Mas a esperança, diz Deus, eis o que me espanta.

A mim mesmo.

Isso é espantoso.

Que essas pobres crianças vejam como tudo isso acontece

e acreditem que amanhã vai ser melhor.

Que vejam como isso acontece hoje e acreditem que vai

ser melhor amanhã cedo.

Isso é espantoso e é mesmo a maior maravilha da nossa

graça.

E eu mesmo me espanto com isso.

E é preciso que de fato minha graça seja de uma força

incrível.

E que ela escorra de uma fonte e como um rio

inesgotável.

Desde aquela primeira vez que ela escorreu e escorre

sempre desde então.

Na minha criação natural e sobrenatural.

Na minha criação espiritual e carnal e ainda espiritual.

Na minha criação eterna e temporal e ainda eterna.

Mortal e imortal.

E aquela vez, ó aquela vez, desde aquela vez que

ela escorreu. Como um rio de sangue, do flanco

trespassado de meu filho.

Qual não deve ser a minha graça e a força da minha

graça para que essa pequena esperança, vacilante

ao sopro do pecado, trêmula a todos os ventos,

ansiosa ao menos sopro.

seja tão invariável, mantenha-se tão fiel, tão reta,

tão pura; e invencível, e imortal , e impossível

de apagar-se; que essa pequena flama do

santuário.

Que queima eternamente na lâmpada fiel.

Uma chama tiritante atravessou a espessura dos mundos.

Uma chama vacilante atravessou a espessura dos tempos.

Uma chama ansiosa atravessou a espessura das noites.

Desde aquela primeira vez que a minha graça escorreu

para a criação do mundo.

Desde então que a minha graça escorre sempre para a

conservação do mundo.

Uma chama impossível de se alcançar, impossível de se

apagar ao sopro da morte.

 

O que me espanta, diz Deus, é a esperança.

E fico pasmo.

Essa pequena esperança que parece uma cousa de nada.

Essa pequena esperança.

Imortal.

Porque as minhas três virtude, diz Deus.

As três virtudes minhas criaturas.

Minhas filhas minhas crianças.

Elas próprias são como as minhas outras criaturas.

Da raça dos homens.

A Fé é uma Esposa fiel.

A Caridade é uma Mãe.

Uma mão ardente, cheia de coração.

Ou uma irmã mais velha que é como uma mãe.

A Esperança é uma meninazinha de nada.

Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado.

Que brinca ainda com o boneco de neve.

Com seus pinheirinhos de madeira da Alemanha.

Pintados.

E com seu presépio cheio de palha que os animais não

comem.

Porque elas são de madeira.

Entretanto é essa meninazinha que atravessará os

mundos.

Essa meninazinha de nada.

Ela só, levando os outros, que atravessará os mundos

volvidos.

 

 

Tradução: Guilherme de Almeida

Fonte: ALMEIDA, Guilherme de (org.). Poetas de França, 3ª ed.

Companhia Editora Nacional – São Paulo. 1958

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