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O caminho para a ruína: surge o espírito laico

O CAMINHO PARA A RUÍNA

- Surge o espírito laico -

Pacheco Salles

  Ao findar o milênio do Reino de Cristo, que começara como Edito de Milão do ano 313, florescem, na primeira metade do séc. XIV, dois personagens de importância ímpar em todo o desenvolvimento ulterior da cultura cristã: o Mestre Eckhart de Hochheim e Guilherme de Ockham. É o momento em que a besta do Apocalipse, que estava encalhada nas areias do mar, e parecia ferida de morte, começa a dar novos sinais de vida. A terra, isto é, a Cristandade, havia aberto a sua boca para absorver as torrentes de perseguições que a serpente infernal vomitara contra a Igreja no vão intuito de afogá-la no nascedouro. Mas os mártires venceram, e a sexta cabeça da besta, o poder deste mundo, que foi o Império Romano, teve de reconhecer a sua derrota no Edito de Nicomédia, também chamado de tolerância, do ano 311, que preludiou de perto o triunfo de dois anos depois. Então o Império deixou de ser cabeça da besta para tornar-se Reino de Cristo aqui na terra. Não nos enganemos porém; não era ainda o Reino dos Céus, que só virá no século futuro, mas somente uma prefiguração. Nos mil anos que se seguiram, a Cristandade passou por muitas vicissitudes, por terríveis perigos, e teve de combater ou de suportar em seu próprio seio muitos defeitos, pecados, e escândalos. Uma coisa porém é inegável: tanto nos períodos de maior brilho como nos momentos de pior crise a soberania incontrastável de Jesus Cristo jamais foi seriamente contestada, pois os que procuraram faze-lo acabaram por ser esmagados, desde Juliano Apóstata até os Albigenses. Mesmo os que praticavam abusos procuravam respaldar sua conduta no Evangelho e pretextavam o proveito da religião. A Cristandade era assim como uma ilha, a terra dos santos, cercada pelas águas da gentilidade, na qual a besta exercia o seu domínio, ao serviço do deus deste mundo, sem ter contudo um centro de poder, uma cabeça imperial.

Mais eis que a cena se transforma. Daquela mesma terra, que outrora absorvera as perseguições, sobe agora uma segunda besta que tem chifres semelhantes aos do carneiro, mas fala como o dragão e faz que a terra e seus habitantes se submetam à primeira besta, cuja ferida fora curada. Terminam os mil anos do Reino incontrastável de Cristo, e nos princípios do séc. XIV aparece o espírito laico, que procura estabelecer uma legitimidade não mais proveniente de Cristo e na salvação dos homens em Cristo, mas alicerçada no interesse das coisas temporais consideradas em si mesmas. Esta concepção se consubstanciou numa obra de repercussão transcendental, o Defensor Pacis de Marsílio de Pádua, composta logo em 1324, onde a autonomia do bem comum temporal já era preconizada, devendo a Igreja subordinar-se ao poder secular. Daí por diante o espírito laico não fez senão ganhar terreno dentro da própria Cristandade, vindo a triunfar na Paz de Westfália que pôr termo à Guerra dos Trinta Anos, colocando os interesses políticos por cima dos princípios religiosos. E com o Império Napoleônico, a consolidar a Revolução Francesa, a besta produz a sua sétima cabeça, afinal consagrada por alguém que tinha o poder do Cordeiro e coonestou a Igreja juramentada, perseguindo ao mesmo tempo os clérigos e prelados refratários, que com risco e sacrifício da própria vida tinham enfrentado as forças infernais para manter a França católica. Contudo, como estava profetizado, esta última cabeça permaneceria por pouco tempo. Cai Napoleão definitivamente em 1815, e após uma fugaz e ilusória Restauração é a besta ela mesma que assume o comando. Ela é a oitava, e pertence às sete anteriores. Desvanecidos os sonhos da Santa Aliança, aparece o Manifesto Comunista que abre a era das revoluções de esquerda, culminando com a instauração do regime soviético na Rússia, que desde então vem estendendo sempre mais seu poderio e prestígio por todo o mundo. Mesmo entretanto nos lugares onde este regime não exerce a sua tirania, os espíritos estão conturbados e os valores subvertidos, de maneira que o mundo todo se acha submetido a uma força maligna que o subjuga progressivamente.

O pior porém é que a própria mentalidade dos católicos foi infeccionada pelos maus princípios, tornando-se cada vez mais secularizada, o que tornou possível a aceitação da Renascença e do Humanismo com seu paganismo implícito. E vamos vê-los mais tarde também sensíveis às “luzes” racionalistas do séc. XVIII. Como depois da Revolução Francesa assistiremos à formação dentro da Igreja da forte corrente liberal que deságua naturalmente no modernismo e na democracia-cristã do Sillon, tudo isto não obstante a reação do movimento contra-reformista, do Syllabus de Pio IX, da Pascendi de S. Pio X, mas com muitas cumplicidades, desídias e traições a seu favor. A Igreja pós-renascentista já não era a Igreja dos mártires nem a Igreja das Cruzadas, nem mesmo a de João XXII. Era a Igreja dos espíritos esclarecidos e cultivados, a Igreja do barroco jesuítico, à qual foi mandado dizer: “Tens fama de viver mas estás morto. Sê vigilante e confirma os restos que estão para morrer; pois não encontro as tuas obras perfeitas diante do meu Deus. Lembra-te do que recebeste e ouviste, e conserva-os, e faz penitência. Pois se não tomares cuidado, virei a ti como um ladrão, e não sabes a que hora virei” 1. Certamente esta Igreja teve grandes santos, grandes mártires, grandes doutores e escritores eclesiásticos, pois sempre e ainda era a Igreja Santa, Católica e Apostólica. Contudo, tomada como um todo, era um corpo em decadência, que todos os dias perdia terreno para o mundo, e até mesmo se tornou sensível aos prestígios e prosperidades deste mundo, deixando-se ir a seu reboque como uma entidade animadora do progresso. Isto é um fato histórico inegável, insofismável, irrefutável, que só não será aceito pelos que pretendem escrever a história à maneira dos ideólogos. Vieram a Renascença e o Humanismo; veio a Revolução Mercantil; sobrevieram as Revoluções Industriais, o Estado moderno, o Imperialismo. Tudo isto perturbou profundamente a mentalidade dos católicos, corroendo os próprios fundamentos da Cristandade, que se voltava sempre mais para o Reino da Terra, deixando na distância e na penumbra o Reino do Céu. Contudo foi preciso aguardar a segunda metade do séc. XIX para que o Magistério reagisse num documento vigoroso como o Syllabus, que sem hesitar conclui condenando a seguinte proposição: “Romanus Pontifex potest ac debet cum progressu, cum liberalismo et cum recenti civilitate sese reconciliare et componere”. Era o que já devia ter sido dito ao tempo do Concílio de Trento, e antes ainda. E, no entanto, embora tardio, produziu uma renovação e um reflorescimento da vitalidade da Igreja que se estendeu por uns setenta anos. Infelizmente fatos adversos acarretaram o ofuscamento deste surto primaveril. E por fim a Constituição Gaudium et Spes, do pastoral Vaticano II, virou o Syllabus pelo avesso e pretendeu fazer a reconciliação e a composição cum progressu, cum liberalismo et cum recenti civilitate. Assim caímos na miséria da chamada Igreja pós-conciliar, da qual bem se pode dizer que non est species ei neque décor. Tudo quanto estava para morrer acabou morrendo e nada foi conservado, as mensagens de penitência da Sma. Virgem não foram atendidas e até foram obliteradas pela Hierarquia. O mais doloroso é que o simples povo católico queria permanecer fiel, mas foi abandonado e desorientado pela maior parte dos pastores. E aqueles humildes heróis que chegaram a dar a vida pela defesa da fé, como na Vendéia, como no Vietnam, foram indignamente esquecidos debaixo do altar, onde aguardam que Deus lhes faça justiça. Foram derrotados pois foi dado à besta fazer guerra aos santos e vence-los. É verdade que as imagens alegorias deste livro não podem ser tomadas univocamente, sendo prenhes de sentido; como aliás acontece às profecias em geral. O que não é motivo para deixar de estudá-las com atenção, porque foram escritas para nosso esclarecimento e utilidade. Com efeito, “bem-aventurado aquele que guardar as palavras da profecia deste livro”.

Voltemos assim ao que dizíamos, e vejamos como foi que as idéias daqueles dois personagens, Mestre Eckhart de Hochheim e Guilherme de Ockham, influíram para encerrar a era do Reino de Cristo, iniciada auspiciosamente com o Edito de Milão. Comecemos pelo segundo, cuja influência foi mais aparente e brilhante.

Aluno e depois professor na Universidade de Oxford, esteve preso em Avignon, justamente com o Geral de sua Ordem, a dos Franciscanos, por suspeitas de heresia, a partir de 1324. Em 1328 ambos conseguem fugir e correr para a corte de Luis de Baviera, que se achava em luta acirrada contra o Papa João XXII, sendo por isto excomungados. Ali Ockham conhece Marsílio de Pádua, e ambos dão apoio intelectual ao cesaropapismo do monarca, no que são acompanhados pelos franciscanos e espirituais. Após a morte de Luis da Baviera pensou em reconciliar-se com a Igreja, mas não é certo que o tenha feito. Morre por volta de 1350.

Com a filosofia de Ockham verificou-se a revivescência e afinal o predomínio da teoria nominalista que, instalando-se firmemente na Universidade de Paris, logo se estendeu pelas demais. O problema dos universais, em que se inscreve a solução nominalista, poderá parecer à primeira vista uma questão puramente acadêmica, a saber, se a universalidade inerente aos nossos conceitos corresponde a algo fora de nossa mente. É uma indagação de cunho epistemológico tendente a determinar o valor e o alcance daquilo que conhecemos intelectualmente. Sem entrar em pormenores, os nominalistas, também chamado terministas e conceptualistas, negavam, de maneira geral, uma correspondência mais profunda entre os conceitos universais e a realidade das coisas individuais; a universalidade em si mesma nada mais seria do que uma propriedade lógica dos conceitos. Tudo poderia parecer uma questão lógica para ser debatido no âmbito restrito dos especialistas. Mas o assunto não é tão inocente assim. Um dos mais famosos nominalistas ou terministas foi Lutero, que assim explicava a posição de sua escola:

“Terministas, nas escolas superiores, diziam-se os de uma seita a que eu pertencia. Sustentam opiniões contrárias aos tomistas, escotistas e albertistas, e se chamam também occamistas..., e é a mais moderna das seitas e também em Paris a mais poderosa. Disputam sobre se a palavra humanitas, por exemplo, significa a humanidade comum a todos os homens. Tomás e outros o afimam; mas os occamistas ou terministas negam que exista tal humanidade comum, asseverando que o terminus homo, ou humanidade, se diz de todos os homens em particular do mesmo modo que um homem pintado representa a todos os homens”

Eis a enorme conseqüência, já muito distante de qualquer sutileza: não existe algo assim como uma natureza humana. Humanidade designa apenas uma coleção de uns certos entes que apresentam algumas semelhanças de figura e comportamento. Porém já não se admite uma forma intrinsecamente determinante e comum, que dá aos indivíduos um conteúdo ontológico igual para todos, não obstante seja diversificado acidentalmente em cada um deles. Assim o homem, como todos os outros entes, são considerados desprovidos de qualquer natureza específica, e o mundo nada mais será do que um grande acervo de coisas individuais. Cairemos então no caos? Não propriamente. Mas depois trataremos disto. Por enquanto devemos fixar-nos na idéia de que homem seria um conceito sem compreensão real, pois real seria somente a sua extensão. A noção de “compreensão”, como conteúdo objetivo dos conceitos, é superada pela de “suposição”; e “supor”, na linguagem da Escola, significa designar ou fazer-as-vezes-de. Assim, homem “supõe” por todos e cada um dos indivíduos com certos traços externos perceptíveis aos sentidos, tal como “um homem pintado representa a todos os homens”. Em linguagem atual diríamos que o termo homem designa um conjunto de n elementos, que também poderia ser representado pela letra H. Da teoria da suposição seguiu-se um grande desenvolvimento da teoria da significação e dos símbolos, que, como já vimos, veio repercutir em João de Sto. Tomás com sua noção de conceito como sinal da coisa.

Uma primeira conseqüência do occamismo é que, se não existe natureza humana (como de qualquer outra coisa), não se pode mais falar de um direito natural nem de uma lei natural, isto é, que deriva da própria natureza das coisas mediante a reflexão da razão prática. E tampouco haverá lugar para um critério ontológico de distinção entre o bem e o mal. A via moderna substitui tudo isto pela vontade discricionária de Deus. É bom o que Deus quer que seja bom; é mau o que Deus quer que seja mau. Esta seria a razão última da distinção entre o bem e o mal e não haveria buscar outra. O occamista Pierre d’Ailly chegou a dizer que “nihil est de se peccatum, sed praecise quia lege prohibitum”. Mais ainda, afirmou que o próprio ódio a Deus seria meritório se Deus o mandasse. Neste voluntarismo que faz do bem e do mal meras determinações extrínsecas, e do mérito e do demérito uma simples questão de obediência a um regulamento arbitrário, vem ter seu fundamento a doutrina da justificação imputativa bem como o “pecca fortiter”. Também encontramos aí um forte incentivo ao princípio da obediência cega e incondicional às autoridades, uma vez que nada é intrinsecamente bom ou mau. João Gerson, o conhecido chanceler da Universidade de Paris, famoso por suas idéias conciliaristas e pelo papel que desempenhou no Concílio de Constança, que conseguiu pôr um termo ao Grande Cisma do Ocidente, afirmou em seu livro De vita spirituali animae:

“Nullum peccatum potest remitti nisi per hoc quod Deus liberaliter non imputat illud ad peccatum... Probabile est nullum actum creaturae de per se et intrinsece esse bonum bonitate moris aut meriti, aut similiter malum, nisi quia prohibitum… Deus non ideo actus nostros vult et approbat quia boni sunt, sed ideo boni sunt quia approbat; similiter ideo mali, quia prohibet"2

Em outras palavras, Deus, que determinou arbitrariamente uma certa ordem moral, pode mudar as regras do jogo a favor de seus eleitos. Para estes, o que era pecado deixa de o ser por um decreto soberano do monarca universal. É uma concepção puramente jurídica do pecado e da justificação, que exclui formalmente a idéia de uma regeneração interior pela graça santificante. Regenerar de que, se não há uma deformidade intrínseca no pecado? Assim toda a malícia do pecado como o mérito da virtude resultam apenas da imputação que Deus, em sua vontade absoluta, lhes quiser dar. A noção mesma da graça santificante se torna supérflua, e por graça tende-se cada vez mais a compreender os auxílios naturais ou sobrenaturais, externos ou internos, com que Deus impele os homens pela sua Providência. A célebre controvérsia sobre a predestinação, que vem a estalar no século XVI entre dominicanos e jesuítas, se chama mesmo a questão De Auxiliis. Ainda que daí não se pretenda extrair um maior significado, não deixa contudo de ser sintomático. O fato é que aquela concepção jurídica da justificação foi aceita integralmente por Lutero, que, como é sabido, sofreu uma forte influência de Gerson durante o tempo em que passava por suas piores anfechtungen, logo antes de seu engajamento heterodoxo; como também por todos os reformadores que se lhe seguiram. Mais do que isto, e possivelmente pela grande autoridade alcançada por Gerson, penetrou profundamente na mentalidade católica até os dias de hoje. O princípio não confessado que inspira a vida espiritual da maior parte dos católicos é o de um contrato de Deus com os homens, cuja cláusula principal assim se exprime: Cumpram o meu regulamento e eu lhes darei o Céu. A segunda cláusula acrescenta: Aos que demonstrarem boa vontade, socorrerei com meus auxílios, a fim de que possam cumprir o difícil regulamento; e, no que não puderem, fecharei os olhos na minha misericórdia.

A verdade é que o nominalismo e seu voluntarismo tinham de resultar no pelagianismo em suas mais variadas formas. Em geral, a noção que se tem do pelagianismo é a de uma doutrina que atribui algum valor formal e intrínseco aos atos humanos na ordem da salvação eterna e na consecução da divina bem-aventurança. E os diferentes graus de pelagianismo se medem pelos graus em que tal valor é admitido, desde o pelagianismo puro até o mais disfarçado semipelagianismo. Esta noção é exata em si mesma, e é coerente com o voluntarismo já referido. Porém, se é coerente e exata, não é completa, deixando na sombra o essencial que fica apenas suposto. Pois quando se admite que o homem, por sua pura natureza, pode fazer algo que o conduz formalmente à eterna bem-aventurança, que é a posse e a contemplação de Deus sicuti est, é porque já se negou, mesmo só implicitamente, a transcendência absoluta de Deus; é porque já se admitiu uma forma qualquer de continuidade natural entre o ser das criaturas e o Ser do Criador. Um Deus absolutamente transcendente só pode ser atingido através de meios que participem desta transcendência, isto é, meios formalmente sobrenaturais. Seria contraditório que assim não fosse. E portanto nem o próprio Deus poderia fazê-lo de potentia absoluta. E aqui aparece a coerência que liga o nominalismo ao semipelagianismo: desde que não há natureza humana, como distinguir o que é natural do que é sobrenatural? Apaga-se a linha divisória entre ambas as ordens, e os entes passam a ser considerados como dispostos linearmente, desde o mínimo até o máximo, de tal modo que, embora se verifiquem diferenças de grau e de qualidade, isto não obstaria a uma continuidade ininterrupta do Ser.

Não se pense entretanto que tudo isto era apenas a conseqüência do occamismo triunfante no ocaso da Idade Média. O nominalismo e o voluntarismo levavam logicamente ao semipelagianismo, que, por sua vez, obscurecia a noção da transcendência absoluta de Deus, que tinha sido o fundamento da cultura medieval. Mas esta era uma conseqüência indireta. Diretamente houve quem procuraria unir essencialmente Deus e o mundo, como se aquele fosse a medula deste, e tal foi o Mestre Eckhart de Hochheim. Após o tumultuoso processo de Colônia, 28 proposições extraídas de seus escritos e sermões foram condenadas pelo Papa João XXII, na Constituição In Agro Dominico, de 27 de março de 13293

. Consta que se retratou de seus erros antes de morrer em 1327. Que tenha salvo a sua alma é o pio desejo dos corações cristãos. Adão também foi salvo pela penitência in fide mediatoris, o que não impediu que a maldição de seu pecado caísse sobre todos nós. Igualmente a infecção doutrinária surgida em Colônia propagou-se através de Tauler, do anônimo francofortense (autor da Theologia Deutsch) e de outros menores até Lutero, impregnando de um modo mais ou menos profundo a mentalidade do Ocidente, não só a protestante como a católica, e determinando a gravíssima crise espiritual representada pelo renascimento do paganismo no seio e no centro da Cristandade. Quais foram porém as idéias excogitadas e propagadas pelo Mestre Eckhart e seus discípulos?

Para dizer tudo em uma palavra, o que fez Eckhart foi reeditar a filosofia de Plotino em termos de cristianismo. E aqui será oportuno lembrar a judiciosa observação de E. Gilson, em sua excelente obra L’Etre e l’Essence (Paris, J. Vrin, 1972), a respeito do verdadeiro sentido dessa filosofia:

“Lê néoplatonisme n’est pás né du platonisme par voie de déduction logique. Si, en un certain sens, Plotin prolonge Platon, c’est au contraire pour avoir usé de certaines conclusions, que Platon posait comme ultimes, en vue de résoudre des problèmes essentiellement étrangers au platonisme. Parmi ces problèmes, l’un des principaux était précisément d’unifier l’ordre philosophique et l’ordre religieux, ou, plus exactement peut-être, le monde intelligible des principes et le monde sacré des dieux. On ne pouvait entreprendre pareille tâche sans faire subir au platonisme authentique un remaniement qui en affectât profondément la structure, et l’esprit même. Ériger les dieux en principles, ou les principes en dieux, c’était transformer la dialectique en cosmogonie et demander à la science de résoudre des problèmes qui, dans la pensée de Platon lui-même, relevaient exclusivement du mythe » 4.

Assim Plotino teria sido mais um teólogo do que um filósofo, o teólogo que procurava dar consistência doutrinária ao paganismo, ao tempo em que a teologia cristã se formava com Irineu, Hipólito, Tertuliano, Clemente, Orígenes. A escola que Plotino fundou em Roma, e onde lecionou durante 25 anos, constituiu-se mesmo num centro de oposição ao cristianismo. Não será sem interesse recordar que Juliano Apóstata, o malogrado restaurador do paganismo, era um neoplatônico, ainda que diretamente não se filiasse a Plotino mas a Jamblico. Aliás os neoplatônicos em geral foram os últimos defensores do paganismo em retirada, e só após o início do séc. IV passam a aderir ao cristianismo. Mas a filosofia antiga estava prestes a extinguir-se, sendo substituída pela Patrística, onde avulta a figura de Sto. Agostinho, um dos maiores pensadores da Humanidade, profundamente original, embora tenha aproveitado sagazmente os subsídios do platonismo e do neoplatonismo. Esse o sistema filosófico que reaparece na Renânia no início do séc. XIV. Contudo, já no séc. IX houvera uma tentativa de estabelecer o neoplatonismo no pensamento católico, ainda que seu autor, João Scot Erígena, não tivesse tido conhecimento direto das obras de Plotino e de Proclo. O seu neoplatonismo é de segunda mão e devido em grande parte à influência do pseudo-Dionísio. Sobre as relações entre Deus e o mundo no sistema de Erígena, De Wulf diz o seguinte:

“Qu’ils soient corporels ou incorporels, les êtres réalisés dans le temps en conformité avec leurs exemplaires éternels, sont présentés comme des participations de l’essence divina (assumptio), des distributions de dons divins. Ce sont aussi des théophanies du divin : la divinité court dans les entrailles du monde. Scot fait dériver théos de théo, courir. Ou encore il compare les multiformes apparences de Dieu aux reflets indéfiniment variés de la lumière sur les plumes du paon. Dieu est dans les choses particulières, sans rien perdre de son immutabilité ; il se saisit dans les êtres déterminés et émerge ainsi des profondeurs de son infinitude. Si bien qu’au fond de tout est l’unique substance, Dieu. »

E pouco depois o A. faz a seguinte observação :

« D’une part, tout être particulier n’est réel que par la vertu de son Logos ou de la causa primordialis, dont il est pénétré. Et comme celui-ci est d’ordre spirituel, il en résulte que les êtres sensibles sont suspendus au suprasensible. Ils tiennent de l’esprit, et en fin de compte du divin ; leur état corporel n’est pas leur véritable réalité, mais une ilusion, un non être, un reflet – ce qui donne à la conception de Scot une saveur platonicienne et néoplatonicienne très accentuée, sur laquelle nous reviendrons» 5.

É de se notar no primeiro dos textos transcritos a comparação entre as coisas singulares e os reflexos variegados da luz na plumagem do pavão, o que aproxima bastante a concepção de Erígena às mônadas de Leibniz. O sistema do filósofo da corte de Carlos o Calvo, apesar de suas expressões menos ousadas, não foi objeto de qualquer condenação. Apenas o papa Nicolau I queixou-se das audácias de Scot Erígena em seu livro principal, De divisione naturae. O mesmo não aconteceu a outros, influenciados por suas idéias, e que acabaram por ser condenados pela Igreja, como Beregário de Tours, Abelardo, Amaury de Bènes. De qualquer forma, no entanto, o neoplatonismo não conseguiu desta vez radicar-se na cultura cristã, que prosseguiu sendo fiel a Sto. Agostinho, e mais tarde se inclinaria para o sadio realismo de Aristóteles. Com o Mestre Eckhart contudo foi o contrário que aconteceu, não obstante a sua condenação cabal pelo Magistério. Mas os Papas em Avinhão perdiam sempre mais prestígio e autoridade, preludiando o futuro Grande Cisma. Os alemães não davam grande importância aos papas franceses, e haviam mesmo apoiado a efêmera república romana de Cola di Rienzo. Já vimos que a Ordem Franciscana estava ao lado de Luis da Baviera contra João XXII. Além disso o occamismo, com seu contínuo progresso, havia por assim dizer destruído as bases da filosofia e da teologia autênticas. Por tudo isto, o plotinismo de Eckhart encontrou o caminho aberto e se estabeleceu firmemente na Cristandade, corroendo-a por dentro, de maneira que até hoje faz valer a sua influência, sob a forma de uma profunda crise do senso da transcendência divina, que afeta indiscriminadamente a mentalidade de católicos e protestantes, mesmo que o ignorem, viciando a fé nos corações. Assim se verifica o que foi dito por S. Lucas (18:8): “Verumtamen Filius hominis veniens, putas, inveniet, fidem in terra?”. O postulado básico e implícito desta perversão espiritual consiste em crer que há uma religiosidade intrínseca e natural ao homem, que o liga ontologicamente a Deus, a qual as religiões positivas nada mais fazem do que completar, e às vezes deformar. E assim todas as “confissões” seriam ao mesmo tempo boas e passíveis de aperfeiçoamento, “de acordo com as necessidades dos tempos”.

  1. 1. Tischreden, 6419 V653. Apud. R. Garcia Villoslada, Martin Lutero, B.A.C., Madrid, 1973, vol. I, pg. 71.
  2. 2. Apud R. Garcia-Villoslada, o.c., I, pg. 211, nota 30.
  3. 3. Denz.- Schön., pgs. 291-295.
  4. 4. O.c., pg. 41.
  5. 5. De Wulf, Histoire de la Philosophie Médievale, J. Vrin, 1934, pgs. 132-133.

Origem e sentido do neoplatonismo

O CAMINHO PARA A RUÍNA

- Origem e sentido do neoplatonismo -

Pacheco Salles  

Mas que disse Eckhart? Para bem compreendê-lo será mister recordar a grande crise de pensamento que marcou a instauração da metafísica. Os primeiros filósofos, chamados físicos, procuravam explicar as coisas dizendo que tudo era, em última análise, feito de água, ou de ar, ou de algo ilimitado. Depois Pitágoras, o matemático, dizia que tudo vinha do número. Até que apareceu Parmênides de Eléia que fez uma descoberta sensacional: nem água, nem ar, nem matéria ilimitada, nem número; a realidade das coisas é o Ente, e de Ente é que tudo é feito. Descoberta sensacional e luminosa, mas também perigosa, pois como já dissemos não há conceito mais difícil de ser elaborado e determinado que o de Ente. E aí naufragou Parmênides, o descobridor da metafísica. Para ele o Ente é, e o não-Ente não é, e entre ambos não há meio termo, mas uma oposição absoluta, uma contrariedade radical. Além disso, ser e conhecer são o mesmo. Se fora do Ente não há nada, então tudo é Ente, ou seja, tudo o que é, é plenitude de Ente, sem qualquer negação que seria não-Ente. Seguem-se daí duas conseqüências descomunais: 1) a mudança e o movimento tornam-se impossíveis, pois toda mudança é o vir a ser do que não era, e o deixar de ser do que era; em outros termos, um Ente sai do não-Ente e outro Ente cai no não-Ente escandaloso conúbio, como se vê, do Ente com o não-Ente. Assim, tudo o que muda e se move não passa de ilusão dos sentidos, e Aquiles jamais alcançará a tartaruga. 2) Toda pluralidade também se torna impossível, porque o ente de cada coisa particular importa na negação de todos os entes que ela não é. Com efeito, para que haja verdadeira pluralidade, é preciso que cada indivíduo singular não seja nenhum dos outros, estabelecendo-se assim uma mistura de Ente com o não-Ente. A conclusão é que o Ente é perfeitamente homogêneo, único, imutável, imóvel e eterno. O Ente não pode surgir, pois proviria do nada, e "ex nihilo nihil fit". E também não pode ser destruído, pois não há nele nenhuma aptidão para o nada, sendo o contrário absoluto do nada; e fora dele nada poderia destruí-lo, pois nada há fora dele. Parmênides, ao descobrir o Ente, sofreu o seu curto-circuito, dando-se o bloqueio do pensamento.

 No fundo Parmênides tinha razão. O que aconteceu é que, queimando etapas, ele radicalizou a sua tese, chegando a um conceito de Ente que, na realidade era o conceito de Deus. Ora, com o conceito de Deus não é possível pensar o mundo. Este é o risco de quem lida com o Ente e o Ser: de repente o tema dá de crescer desmesuradamente, escapa a todo controle e se transforma num estafêrmo solene e sagrado, plantado nos caminhos da razão. Como reduzir o Ente a proporções mais manipuláveis, mais plásticas e adaptadas às condições da realidade em que vivemos? Como desobstruir as vias do conhecimento? A resposta a este problema marcou o desenvolvimento ulterior da filosofia grega. Heráclito substituiu o Ente pelo movimento: todas as coisas estariam num contínuo fluxo e numa contínua luta, uma vez que os contrários coexistiriam. O princípio fundamental seria o fogo, concebido como vivo, inteligente e divino, o logos que tudo pervade e governa. Já Empédocles divide o Ente nos quatro elementos, a água, o ar, o fogo e a terra, e das diversas combinações deles, meramente extrínsecas, surgiriam todas as coisas; mas no fundo tudo seria sempre o mesmo, como num caleidoscópio em que todas as combinações já estão dadas de antemão. Mas para Anaxágoras, o que os eleatas atribuíam ao Ente é transferido ao nous, à mente, princípio puramente espiritual e intelectual, que organiza o mundo, o cosmos, dando ordem, movimento e sentido aos infinitos elementos, que jaziam inertes e confundidos no caos primevo. Foi Platão, porém, quem percebeu a insuficiência destas soluções, uma vez que o conceito de Ente é insubstituível; tudo o que pensamos refere-se a algo que é, pois o não-Ente não é pensável em si mesmo. O mais que conseguimos ao querer substituir o conceito de Ente é retirá-lo da consideração explícita, tornando-o implícito: procedimento muito pouco filosófico uma vez que a finalidade da Filosofia é explicitar o nosso discurso, esclarecendo as suposições e postulados sobre que se constrói o pensamento quotidiano. Portanto Platão admitiu o Ente como princípio fundamental. Entretanto, como torná-lo viável? Pareceu-lhe que era a sua unidade que o tornava inteiriço e atravancador. Que faz então? Retira-lhe esta unidade, e dela faz um princípio ainda mais alto, mais nobre e mais poderoso: o Um. Sem a unidade, que lhe impunha uma absoluta identidade consigo mesmo, podia o Ente multiplicar-se neste mundo sub-lunar, e também podia mudar e mover-se, pois se havia atenuado a sua oposição ao não-Ente. Com efeito, entre os dois Platão introduziu a matéria, como privação capaz de vir a receber uma forma e participar de uma essência. Pela primeira vez o não-Ente, a privação obteve um estatuto na Filosofia.

Parecia-lhe tudo resolvido. Na verdade as dificuldades apenas começavam. Se o Um não é ente, que é então? Não-Ente? Por seu lado, o Ente precisa do Um como seu fundamento, sob pena de perder a identidade e não ser mais nada. Então será mister combinar o Um com o Ente, para termos o Um que é, e o Ente que é Um, mas em lugar da unidade teremos um conjunto com dois elementos, cada um dos quais deverá ser sub-dividido ao infinito pela mesma razão. Já na República, Platão havia apelado para um outro princípio, superior ao Ente e mais dinâmico do que o Um, o Bem. No começo do livro VII (517-BC), após referir a conhecida alegoria da caverna, assim o Bem é apresentado:

"Pois não é assim que se nos manifestam as coisas acessíveis ao nosso conhecimento, isto é, que no mundo intelectual o limite supremo é a idéia do Bem, cuja percepção é penosa, mas que, uma vez percebida, devemos todos considerá-la como a causa de tudo quanto é bom e belo? E no mundo visível não é ela que produz a luz da qual é a senhora? E no mundo inteligível ela mesma não é a senhora que produz a verdade e a inteligência? E que é necessário contemplá-la àquele que quer proceder com sabedoria quer particular, quer publicamente?"

O Bem transcende o Ente e o não-Ente, o movimento e o repouso, o mesmo e o outro. Todos estes supremos arquétipos participam do Bem; e assim o Bem é mais universal do que eles e a todos engloba. Deste modo, sem sacrificar o Ente com suas exigências, Platão encontrou um lugar para a realidade empírica com sua pluralidade e suas constantes mudanças. O Bem se encarregava de harmonizar e unificar as duas faces do real, o Ser e o vir-a-ser, o um e o múltiplo. Baseado nas profundas investigações de Platão, Aristóteles veio a dar a solução correta ao problema eleático, ao introduzir a distinção entre o ato e a potência, que será tão importante quanto a descoberta do próprio Ente, pois permitirá pensá-lo de acordo com seus requisitos metafísicos. Só assim pôde o Ente ser recolocado em sua situação dominante, sem os inconvenientes de Parmênides. Mas a solução de Platão deixava em aberto a possibilidade de um outro caminho. E foi este o caminho trilhado por Plotino. E não nos iludamos com o fato de Plotino também falar em ato e potência. Porque para ele estas noções tinham uma conotação diferente e não ocupavam o lugar central que as caracterizam no sistema aristotélico, como fica bem claro na Enneada II, 5, onde o assunto é tratado ex professo, exatamente com o fito de criticar a escola peripatética, e voltar ao Platão do Timeu.

Vimos que Platão apelara vez por vez para dois princípios mais altos que do que o Ente: o Um e o Bem. Plotino reúne os dois num só: o Bem é uma propriedade ou aspecto do Um, enquanto este engendra todas as coisas, o Ente é o seu primogênito fórmula que se tornou clássica no neoplatonismo, e passou para a Escola através do livro De Causis, com a significação agora de que só Deus é a causa do ser dos entes. Mas se o Um transcende o Ente, então é um não-Ente, o nada. Plotino aceita sem receio a conseqüência: o primeiro princípio, o Um, é não-Ente. Mas é não-Ente não por deficiência ou privação, mas porque é muito mais do que o Ente, e assim, não sendo nada, é o poderoso produtor de tudo. Que é então? É o inefável, o inexprimível, o que está além de todo conhecimento. Aqui aparece um dos aspectos mais notáveis do plotinismo: "É porque nada há no Um que tudo vem dele, e, para que o Ente seja, é preciso que o próprio Um não seja Ente, mas aquilo que o engendra. O Ente é portanto como seu primogênito."1 Assim, a produção das coisas, a partir do Um até os limites da mais baixa materialidade, tem a índole de uma decadência progressiva, em que as sucessivas causas produzem o que elas não são, mas é inferior a elas. E esta decadência, que leva a marca do mal, é contudo necessária à plena manifestação de toda a realidade. Ainda voltaremos ao assunto. Agora, porém, é mister salientar a diferença radical entre a Metafísica do Ente e da verdade, e a Metafísica do Um e do Bem.

Aristóteles reconhecia certamente que o Ente era dotado de unidade. Tratava-se porém da unidade dos entes individuais, que são indivisos em si mesmos e divididos de todos os outros. mas o Um de Plotino é uma unidade total e ideal, uma verdadeira unicidade que paira acima e além do Ente, em face da qual a individualidade dos entes concretos representa uma antinomia e uma degradação uma vez que estabelece a pluralidade, e esta resulta da influência negativa e maléfica da matéria, o lado sombrio das emanações. mas tal proliferação de indivíduos singulares será detida e reabsorvida de novo na perfeita unidade do Um. este é o supremo objetivo que transcende o Ente e a verdade, os quais deverão ficar para trás a fim de que todas as distinções, desigualdades e particularismos sejam reassumidos na mesma vontade geral de tornar ao Um. Em política esta idéia do Um (que já vimos ter origem em Platão) fez surgir a primeira utopia no diálogo A República, onde se defende a posse comum dos bens e das mulheres, e a criação e a educação dos filhos pelo poder público. Assim se extinguiria todos os particularismos e seria obtida a perfeita homogeneidade social, considerada como o maior bem. No livro II de sua Política (1263b 30 ss.) Aristóteles faz a crítica adequada desta ideologia, restabelecendo os direitos dos indivíduos e das diferenças sociais contra o totalitarismo idealista. Tudo, diz o Estagirita, tem a unidade que lhe compete. Assim a sociedade deve ter uma certa unidade, mas não total; porque se se quiser aumentar o grau desta unidade, de modo que todos tenham a mesma profissão ou habitem na mesma casa, e assim por diante, já não haverá mais sociedade. Deste modo, se a unidade aumentar muito, poderá chegar próxima da destruição da sociedade, que assim se tornará pior, pois quanto mais uma coisa se aproxima de seu aniquilamento pior fica. Como se alguém quisesse que, num coro, todos cantassem com uma só voz, ou que, num poema, todos os versos constassem de um só pé. A unidade e a igualdade sem contrastes não são portanto o ideal da sociedade, mas a sua deturpação; pois tal unidade deve ser procurada no bem comum e no equilíbrio da justiça, que não excluem, antes supõem, a pluralidade e a diversidade. Estas verdadeiramente enriquecem a vida social, ao invés de prejudicá-la. Infelizmente vemos triunfar a primeira tendência hoje em dia, com a estatização progressiva das atividades humanas, sob a influência das idéias socialistas, que são sabidamente inspiradas nos princípios do idealismo platônico e neoplatônico.

Além desta conseqüência política, importa considerar um reflexo eclesiástico de não menor peso. A metafísica do Um leva a ver na unidade da Igreja o bem supremo. Não há dúvida de que a unidade é um dos atributos da verdadeira Igreja. Mas, segundo Sto. Tomás, tal unidade "causatur ex tribus", a saber, a unidade da fé, da esperança e da caridade. Sendo efeito destas, está naturalmente abaixo das mesmas [2]. 

(...)

Mas isto porque, para Sto. Tomás, o Ente e a verdade estão acima de todas as coisas. Porém esta posição estaria errada em face da metafísica do Um, e assim a unidade é que seria o supremo valor ao qual tudo o mais se sacrifica. E é o que também acontece nos regimes totalitários, de direita como de esquerda, em que toda a ênfase é dada à unidade e ao centralismo social e político. Resta notar ainda que a Revolução, que de um modo mais ou menos profundo modelou a mentalidade do homem atual, outra coisa não é senão a inconformidade com o real. O slogan das barricadas de 1968, "l'imagination au pouvoir", bem exprime este repúdio da realidade. O homem contemporâneo vive em busca de uma quimera, insatisfeito com os entes com que se defronta na vida quotidiana. Ele se revolta contra todas as diferenças objetivas, as de idade e sexo, aprova o homossexualismo, supervaloriza a juventude, degrada a inteligência e a linguagem. Ele quer fabricar a sua realidade ao sabor de ideais confusos. Na verdade ele tudo está destruindo, e caminha para o nihilismo. Mas é o que está na lógica do retorno plotiniano ao Um, que é o não-Ente. Para lá chegar é preciso de algum modo destruir o Ente, ou os entes. Eis o objetivo da Revolução.

Uma dúvida poderia surgir ainda. Vimos que Platão oscilou entre o Um e o Bem, e Plotino anexou o Bem ao Um. Assim a metafísica do Um é igualmente a metafísica do Bem, como já dissemos. Isto por ventura não seria o seu corretivo? A procura do Bem não seria o que mais devesse chamar a atenção nesta metafísica e torná-la digna de apreço? Entretanto devemos considerar que, neste sistema, o Bem, tanto quanto o Um, transcende o Ente, está além dele. De maneira que o Ente, por si mesmo, não seria bom, mas apenas participaria do Bem que lhe fica mais alto. E para Plotino o Ente já seria uma primeira degradação. para Aristóteles e Sto. Tomás é inteiramente o contrário: o Bem nada mais é do que o Ente perfeito, a plenitudo essendi, o ens secundum quid, isto é, segundo a sua enteléquia. Assim o Bem não transcende o Ente, que é bom enquanto mesmo que Ente, mas apenas exprime e acrescenta a razão de perfeição ou perfectibilidade. E o Bem assim considerado é a perfeição de indivíduos singulares, pois neste sistema o indivíduo é que é, é que tem o ser. É verdade que o Bem é diffusivum sui, tende a comunicar-se. Quanto mais alta é a perfeição, mais ela é universal e participável. A bondade de um indivíduo, seja qual for, sempre se espalha em torno dele, e tanto mais, quanto mais nobre for a bondade. Mas daí não se conclua que esta propriedade do Bem seja a sua razão formal, de maneira que a comunidade seja a causa da bondade, ou mesmo a própria bondade. Esta identificação do comum com o bem, e, a contrario sensu, do individual com o mal, é precisamente a tese do plotinismo solidamente estabelecido na mentalidade do Ocidente após a obra de Mestre Eckhart. Nessa concepção do Bem, com efeito, já predomina a idéia do Um totalizante. No entanto, até na própria Imitação de Cristo podemos encontrar alguns reflexos desta idéia, pois tudo o que é louvável é logo qualificado de comum, e tudo o que é criticável é taxado de privado. Naturalmente isto é verdade dentro de uma comunidade religiosa, mas não pode ser extrapolado sem riscos para outras esferas. Em Pascal esta idéia toma um grande vigor — e é inteiramente gratuito afirmar que ele visava apenas o individualismo moral, o egoísmo. Pois se o moi est haissable é por causa da fratura ontológica que ele torna efetiva e na qual vive. O fundo da doutrina jansenista consiste precisamente em afirmar que a natureza humana exige estar ligada a Deus para se achar completa em sua realidade. O pecado, que é o destaque de Deus pela manifestação do indivíduo, transformou a natureza humana, que já não é aquela criada por Deus, mas uma segunda natureza corrompida, que sequer é dotada de liberdade, estando à mercê do atrativo dominante. Deixemos falar o próprio Pascal:

"N'attendez pas, dit-elle (la Sagesse de Dieu), ni vérité, ni consolation des hommes. Je suis celle qui vous a formés, et qui puis seule vous apprendre qui vou êtes. Mais vous n'êtes plus maintenant en l'état òu je vous ai formés. J'ai créé l'homme saint, innocent, parfait; je l'ai rempli de lumière et d'intelligence; je lui ai communiqué ma gloire et mes merveilles. L'oeil de l'homme voyait alors la majesté de Dieu. Il n'était pas alors dans les ténèbres qui l'aveuglent, ni dans la mortalité et dans les misères qui l'affligent. Mais il n'a pu soutenir tant de gloire sans tomber dans la présomption. Il a voulu se rendre centre de lui-même, et indépendant de mon sécours. Il s'est soustrait de ma domination; et, s'égalant à moi par le désir de trouver sa félicité en lui-même, je l'ai abandonné a lui; et, révoltant les créatures, qui lui étaient soumises, je les lui ai rendues ennemies: en sorte qu'aujourd'hui l'homme est devenu semblable aux bêtes, et dans un tel éloignement de moi, qu'à peine lui reste-t-il une lumière confuse de son auteur: tant toutes ses connaissances ont été étenites ou troublées...

Voilá l'état où les hommes sont aujourd'hui. Il leur reste quelque instinct impuissant du bonheur de leur première nature, et ils sont plongés dans les misères de leur aveuglement et de leur concupiscence, qui est devenue leur seconde nature” 2.

Compare-se este pensamento com o início da Enneada V, cap. 1:

"De onde vem pois que as almas esqueceram Deus seu pai, e que, fragmentos vindos dele e completamente dele, elas se ignoram e o ignoram? O princípio do mal para elas é a audácia, a geração, a diferença primeira, e a vontade de existir para si mesmas. Alegres de sua independência, elas usam da espontaneidade de seu movimento para correr em direção oposta a Deus: chegadas ao ponto mais afastado, chegam a ignorar que veem dele, tais como crianças que, arrancadas a seu pai, e criadas muito tempo longe dele, ignoram-se a si mesmas e ignoram seus pais 3.

De fato o homem foi criado criado em graça, o que lhe dava possibilidades que iam infinitamente além de sua natureza. Mas de direito o homem poderia ter sido criado sem a colação da graça, só com a perfeição devida à sua natureza. Para Pascal, porém, sem o condicionamento da graça, a natureza humana como que se desagrega perdendo seus caracteres específicos e tornando-a semelhante aos outros animais. Com efeito, "la vraie nature étant perdue, tout devient sa nature; comme le véritable bien étant perdu, tout devient son véritable bien"4. Em conseqüência "la vraie nature de l'homme, son vrai bien, et la vraie vertu, et la vraie religion, sont choses dont la connaissance est inséparable” 5. Mas, e a razão? Não será sempre um traço distintivo?

Toute notre raisonnement se réduit à céder au sentiment.

Mais la fantasie est semblable et contraire au sentiment, de sorte qu'on ne peut distinguer entre ces contraires. L'un dit que mon sentiment est fantasie, l'autre que sa fantasie est sentiment. Il faudrait avoir une règle. La raison s'offre, mais elle est ployable à tous sens; et ainsi il n'y en a point 6.

Nem poderia deixar de dizer isto quem acha que "les choses sont vraies ou fausses, selon la face par où on les regarde"7. Assim a razão sempre encontrará meios para justificar a adesão a partidos contrários. Compreendem-se deste modo com facilidade os seguintes dois pensamentos:

422. Nature corrompue. — L'homme n'agit point par la raison, qui fait son être.

423. La corruption de la raison parait par tant de différentes et extravagantes moeurs. Il a fallu que la vérité soit venue, afin que l'homme ne véquit plus en soi-même.

Nesta última frase se manifesta o eleatismo de Pascal. Viver em si mesmo é a falsidade fundamental; ou, em termos plotinianos, a decadência ontológica. A individualidade é marcada pela chaga da amputação do todo, em cuja integração se encontra a verdadeira realidade da natureza humana. Daí a célebre apóstrofe pascaliana: "Humiliez-vous, raison impuissante; taissez-vous, nature imbécile: apprenez que l'homme passe infiniment l'homme, et entendez de votre maitre votre condition véritable que vous ignorez."8 Erro dos erros. Não é o homem que ultrapassa infinitamente o homem, mas a sua vocação divina e inteiramente gratuita, fruto da liberalidade incondicionada de Deus. Pois o homem cabe perfeitamente nas medidas de sua condição, cujas coordenadas não foram alteradas pelo pecado. E ainda que condenado, será a mesma natureza humana, e não outra, que ele levará para o inferno.

Esta mesma rejeição do indivíduo, que deve ser reabsorvido no todo, vamos encontrar nas teorias contratualistas da sociedade. Tanto em Hobbes como em Rousseau aparece a exigência de que, para a formação do corpo social, é mister a inteira abdicação dos indivíduos singulares. Para Rousseau especialmente, para quem o homem só se torna verdadeiramente homem no convívio social, todo e qualquer interesse privado se revela imediatamente como algo a ser extirpado. Aqui surge a famosa idéia da vontade geral, da qual se deve ter a correta caracterização: 

A vontade geral, insiste Rousseau em mais de uma passagem, é sempre reta; ela não se confunde, ademais, com a vontade da maioria ou mesmo com a vontade de todos. O que é, então, a vontade geral, termo emprestado por Rousseau à Enciclopédia, em particular a Diderot? Na verdade já a conhecemos: a vontade geral é o produto da conformação da vontade individual com a lei racional, ou, melhor ainda, é a própria vontade individual, quando organiza o particular em função do todo. Quando o homem sensível que somos se submete ao homem inteligível que também somos, triunfa em nós uma vontade genérica e a particularidade do impulso é dominada pela universalidade da razão. Por esse motivo (de outra forma tratar-se-ia de algo inexplicável) a vontade geral pode opor-se à vontade da maioria e até à vontade de todos: se, por hipótese, um povo inteiro, sem qualquer discrepância, decidisse, sem coação, propor um "pacto de submissão" a um monarca, como queria Hobbes, por acaso essa unanimidade exprimiria a vontade geral? É evidente que não, pois, na hipótese, livremente se decidiria pela extinção da liberdade — condição mesma do exercício da vontade geral. E é por não ser senão a expressão da moralidade que a vontade geral é sempre reta, que não pode errar (Livro II, cap. III), que é indestrutível (Livro IV, cap. I). Ela vive em cada um de nós, pois somos seres morais; mas pode emudecer, porque estamos sujeitos à "queda". "As leis eternas da natureza e da ordem existem" já o vimos no Emílio. A vontade geral é a sua expressão 9.

  1. 1. Enn. V, 2, 1. Ed. Bréhier, Paris, 1931, pg. 33.
  2. 2. Pensamento no. 483, ed. J. Chevalier.
  3. 3. Trad. Bréhier, "Les Belles Lettres", Paris, 1931, pg. 15.
  4. 4. N. 368.
  5. 5. N. 428.
  6. 6. N. 474.
  7. 7. N. 472.
  8. 8. N. 438.
  9. 9. R. S. Maciel de Barros, Meditação sobre Rousseau, in Ensaios sobre Educação, Ed. U.S.P., S. Paulo, 1971, pgs. 90-91.
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