Na França a História do agnosticismo é inseparável do nome de AUGUSTO COMTE (1789-1857). A sua atitude agnóstica radical ele a exprime um sem-número de vezes. O caráter fundamental da filosofia positiva é considerar “como absolutamente inacessível e sem sentido para nós a investigação das chamadas causas primeiras ou finais”.
A afirmação é categórica e dogmática, muito no estilo de COMTE. E a prova? A prova prende-se necessariamente à exposição de uma grande teoria sobre a evolução intelectual da humanidade, vulgarmente conhecida com o nome de lei dos três estados. “Espinha dorsal” do positivismo, chamou-a com razão STUART MILL. É de fato a estrutura interna que lhe percorre todo o sistema, a cadeia principal do arcabouço a que incessantemente se vêm articular todas as outras idéias, condicionando-lhe o método de investigação e, em grande parte, o valor de suas conclusões.
A evolução intelectual da humanidade atravessou na história três grandes fases ou estados sucessivos: o teológico, o metafísico e o positivo. O primeiro é o ponto de partida indispensável, o terceiro o seu estado definitivo; o segundo, intermediário, marca apenas uma fase de transição.
O modo de pensar teológico, que caracteriza a primeira fase, procura explicar “a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o impressionam, numa palavra, tende para um conhecimento absoluto” . Com a base racional e empírica é ainda muito insuficientemente a faculdade que entra em jogo; é principalmente a imaginação a apelar para seres preternaturais — mais ou menos numerosos deuses, espíritos ou demônios — cujas vontades arbitrárias e caprichosas explicam “todas as anomalias aparentes do Universo”. A necessidade de unificar leva progressivamente o homem à simplificação deste mundo de agentes superiores. Num primeiro momento aparece o fetichismo que atribui aos seres uma vida espiritual semelhante à nossa. Sucede-lhe o politeísmo e finalmente com o monoteísmo a unificação completa do mundo invisível. Nestas representações teológicas encontra a vida moral e social um sólido apoio. É a época da autoridade; em política corresponde-lhe a forma monárquica do governo. Cronologicamente estendeu-se dos tempos mais remotos ao fim da Idade Média.
Com o monoteísmo já se vai estabelecendo a transição para o estado metafísico, cuja função principal é destruir o pensar teológico e preparar o advento do positivo. Percebendo o homem que o recurso para um mundo invisível nada explicava, criando apenas uma duplicata inútil que por sua vez precisava ser explicada, procurou no próprio universo a razão dos fenômenos. Às múltiplas divindades da fase anterior substituiu entidades abstratas, distintas dos corpos mas neles inerentes. Nasceram assim as afinidades químicas, o princípio vital, as forças e faculdades e também o éter dos modernos físicos. A mesma tendência à unificação que no período anterior levou ao monoteísmo, reduziu, no período metafísico, a multiplicidade de forças a um princípio único — a natureza. Este período é essencialmente negativo e dissolvente. Abala, com a argumentação, a confiança na influência autoritária dos deuses mas nada lhe substitui de construtivo e duradouro. É o reino da dúvida e do egoísmo; o indivíduo é arrancado do seu meio social; a inteligência é cultivada com detrimento da vida afetiva. O povo substitui-se ao rei; a soberania popular e o pacto social passam a constituir o fundamento da vida política e os juristas entronizam-se no governo das nações. São os últimos séculos da Idade Média, o protestantismo, o renascimento e o deísmo.
Instituindo um paralelo entre este período e o anterior, observamos: 1o.) que o objeto das investigações é idêntico: o absoluto, as causas primeiras e finais, a natureza íntima das coisas; 2o.) que o método é caracterizado por um predomínio da imaginação sobre a razão: na idade teológica, mais fantasia; na metafísica, mais raciocínio e argumentação; 3o.) que as soluções apresentam diferenças mais profundas; de transcendentes passam a imanentes; já não é fora dos seres visíveis mas na sua própria natureza que se procura a explicação dos fenômenos.
Enfim, MALHERBE vint... Surgiu por fim o estado positivo. O homem convenceu-se da inanidade absoluta de suas explicações metafísicas que não faziam senão personificar os próprios fenômenos, substituindo um nome abstrato ao fato concreto que se devia explicar: vis dormitiva. Renunciou, portanto, de vez à investigação das causas — eficientes e finais dos seres para entrincheirar-se num domínio positivo, concreto, útil e real — a investigação das leis dos fenômenos, isto é, das relações constantes de semelhança ou de sucessão, que lhes condicionam o aparecimento no espaço e no tempo. Nada de entidades sobrenaturais, nada de princípios abstratos; simples relações de analogias ou de antecedente e conseqüente, entre os fatos. A observação assume aqui, como método, a preponderância absoluta a que se devem subordinar, nas suas respectivas atividades, a fantasia e a razão. Como nos estados anteriores, por força da tendência unificadora se chegou à unidade do Princípio Absoluto — Deus ou Natureza, por analogia a perfeição do estado positivo seria reduzir a universalidade dos fenômenos à simplicidade de uma só lei universal. A própria natureza do estado positivo, porém, exclui a possibilidade desta conclusão objetiva. Os fenômenos apresentam-se em grupos irredutíveis e as leis que os regem não podem fundir-se numa única lei. Na falta insanável de uma unidade objetiva, resta a possibilidade da unificação subjetiva do conhecimento, assegurada pela aplicação do mesmo método positivo ao domínio inteiro do cognoscível. A homogeneidade e convergência das teorias serão o seu fruto natural. Por esta via, a nova filosofia porá um termo definitivo à anarquia mental do Ocidente, lançando na ordem científica os fundamentos estáveis da harmonia e do convívio social. O que o catolicismo “obra-prima da sabedoria humana” realizou de modo completo e imensamente estável conseguirá o positivismo no porvir do seu apogeu final. A renúncia definitiva a qualquer explicação, transcendente ou imanente, da natureza ou essência das coisas, da sua origem ou dos seus destinos; a fidelidade inviolável em observar os fatos, registrando-lhes as estações constantes, como caracterizam a essência do espírito positivo, constituem outrossim a condição imperiosa da vida e do progresso da humanidade.
Eis nas suas grandes linhas a concepção positivista do desenvolvimento da inteligência humana através dos séculos; a grande lei sociológica que constitui o fundamento de sua atitude radicalmente agnóstica em face do problema religioso.
Qual o seu valor? Estamos em face de uma síntese científica que se impôs ou se impõe pela solidez de seus fundamentos ou de um poema de idéias que poderá quando muito fascinar, como uma obra de arte, pela majestade e simetria de suas proporções?
Antes de julgar a famosa lei importa conhecer os fundamentos em que a baseou COMTE. Por duas vias — indutiva e dedutiva — pensa o fundador do positivismo haver justificado esta que ele julgava a mais importante descoberta da sua vida. A lei sociológica é uma visão histórica e é uma conseqüência da constituição e natureza da inteligência.
A posteriori, a lei resulta da análise do nosso desenvolvimento individual. “Cada um de nós, diz COMTE, contemplando a própria história, não se lembra de haver sido sucessivamente, quanto às suas noções mais importantes, teólogo na sua infância, metafísico na sua juventude, físico na sua virilidade?” Que a humanidade tenha percorrido na vasta trajetória de seu desenvolvimento as mesmas fases por que passa, num pequeno ciclo de anos, cada indivíduo, vêem-no, diz COMTE, “quantos possuem um conhecimento profundo da história geral das ciências. Todas as que já chegaram hoje ao estado positivo estiveram, no passado, saturadas de abstrações metafísicas e, em eras mais remotas, dominadas pelas concepções teológicas” .
A priori, a análise da constituição da inteligência subministra-nos uma contraprova da experiência individual e específica, dando à observação meramente histórica um caráter de lei, com a demonstração de que o que foi devia ter sido.
a) De fato, o homem sente uma tendência instintiva a explicar os fatos, ligando-os por uma teoria. Só a lei científica poderá satisfazer plenamente a esta aspiração da inteligência. Antes, porém, de atingir a perfeição do estado positivo, a fim de tornar possível a própria observação dos fatos era-lhe necessário um princípio qualquer, uma teoria provisória que lhe permitisse sair do círculo vicioso inicial: só há teoria positiva baseada em fatos observados, não se podem observar os fatos sem uma teoria qualquer. A imaginação precedeu a observação e criou todo um mundo de seres sobrenaturais, cujas vontades arbitrárias explicassem o aparecimento e a orientação dos fenômenos. Passar logo daí para a idéia positiva de lei era dar um passo muito largo, impunha-se uma ponte de transição, um estado intermediário que atenuasse os contrastes muito violentos entre o pensar teológico e o positivo. Foi a função do estado metafísico que “à ação sobrenatural diretiva substituiu uma entidade correspondente inseparável”. Assim, a necessidade inicial do estado teológico impôs-se à inteligência para sair do círculo vicioso em que a envolvia a sua própria natureza, a do metafísico como transição indispensável para o terceiro estado, definitivo.
b) Outra razão em apoio de sua lei vai COMTE pedi-la à tendência antropomórfica. A nossa atividade é a que primeiro e melhor conhecemos. Explicar a dos outros seres à imagem e semelhança da nossa é uma inclinação primitiva da inteligência. Os fenômenos, portanto, por meio dos quais os corpos reagem à nossa ação ou agem entre si, explica-os o homem, a princípio, por outras tantas vontades, naturais ou extranaturais, mas sempre arbitrárias como a sua. Também aqui com o tempo a primeira e espontânea explicação teológica foi revelando as suas insuficiências e uma metafísica intermediária preparou, atenuou e facilitou as inevitáveis transições.
Observações históricas, de caráter individual ou geral, e considerações teóricas sobre a evolução progressiva da inteligência, sugeridas “pelo conhecimento da nossa organização”, são os esteios em que descansa “a grande lei fundamental” .
Não é mister deter-nos muito tempo sobre a inconsistência destas últimas considerações. Como análise da natureza profunda da nossa inteligência, como demonstração necessária, interna e a priori, da sua evolução pelos três estados, todas estas simples conjeturas, uns talvez plausíveis, outras de todo inaceitáveis, são de uma pobreza lamentável.
Suponhamos, com efeito, que diante dos fatos, a inteligência para explicá-los precise de uma teoria e a imaginação entre em atividade formulando uma hipótese provisória de trabalho. Por que há de ser ela necessariamente de ordem teológica? Por que não seria imanente às coisas? E se o primeiro exercício de inteligência foi universalmente teológico não teria sido este primeiro passo o maior obstáculo aos seguintes? A hipótese da intervenção arbitrária e invisível dos deuses sendo, por sua natureza, inverificável pela observação, o homem ficaria dispensado de qualquer esforço interior e imobilizar-se-ia no pensamento teológico.
O princípio da necessidade de um estado intermediário, aduzido em nome da exigência de uma transição metafísica, levaria bem longe. Por que não também outro estado intermediário entre o teológico e o metafísico, outro entre o metafísico e o positivo? O pior, porém, é que COMTE não nos apresenta nenhuma noção nítida e constante da metafísica. Aqui ela nos aparece como a personificação ingênua de abstrações vazias, ali como qualquer espécie de doutrina dissolvente de outra (no período teológico COMTE interpõe um estado metafísico ou crítico entre o fetichismo e o politeísmo, outro entre este e o monoteísmo); mais adiante como a fase aguda do duelo entre o estado teológico quando toma consciência de sua decadência irremediável e o estado positivo, forte no progresso de suas vitórias crescentes. Ora, estas variadas acepções não são equivalentes nem se incluem necessariamente. Uma doutrina pode dissolver outra sem, por isso, constar necessariamente de abstrações vazias e hipostasiadas. Há, portanto, várias espécies de metafísica e infelizmente nenhuma delas coincide com a verdadeira. COMTE sentia uma aversão instintiva pela metafísica que lhe perturbava a visão serena das coisas. “Tem-se freqüentemente a impressão, observa HÖFFDING, de que COMTE reconduza ao estado metafísico todos os resultados do pensamento e da vida, contra os quais nutre alguma antipatia” . “Combatendo a metafísica, adverte por sua vez o nosso FARIA BRITO, A. COMTE criou um fantasma para ter em seguida o prazer de trucidá-lo” .
Latente sob todas estas reflexões de COMTE oculta-se ainda uma petição de princípio que lhe vicia fundamentalmente o valor lógico. Por toda parte COMTE supõe que os três estados se sucedem na evolução histórica da inteligência e que o terceiro, o positivo, representa, isolado, a sua perfeição definitiva e absoluta, e tenta, em seguida, explicar as causas desta sucessão. Supõe-se, precisamente, a tese [que] importava demonstrar. O que deveria resultar como conclusão das provas inspira-lhes de antemão o arranjo sistemático e tendencioso.
E se o pensar teológico, metafísico e positivo, em vez de três fases que se sucedem e se excluem, constituíssem três exigências fundamentais da razão humana que coexistiram sempre e tendem a harmonizar-se, distintas mas unidas, numa síntese perfeita? Ora é esta precisamente a realidade. O saber positivo é apenas uma das exigências da nossa vida intelectual; ao lado das leis constantes de sucessão e coexistência dos fenômenos desejamos conhecer a natureza e a finalidade das coisas que nos envolvem, do Universo de que somos parte. A razão é por essência a faculdade dos porquês. E os porquês da ciência positiva não exaurem a sua curiosidade total. Ao lado dos fenômenos cujas leis a ciência investiga e formula, há o fundo da realidade que a ciência não suprime nem explica, há o mistério das origens e dos destinos, inacessível aos métodos experimentais, mas inevitável à razão filosófica e necessário à atividade moral e religiosa. As próprias idéias de causa e de realidade que constituem o ponto de partida da investigação científica, os princípios racionais que lhe orientam os processos lógicos prendem-se necessariamente a questões ontológicas que a ciência, tal qual COMTE a concebeu, não resolve nem pode resolver. Notou-o profundamente um dos mais notáveis epistemólogos contemporâneos, MEYERSON: “É o esboço de uma metafísica [realista] por mais defeituosa que seja, que constitui a verdadeira mola motora da investigação científica” . A ciência “é e permanece (ou ao menos até aqui permaneceu) rigorosamente realista, criadora de ontologias”
. “Assim ciência e filosofia não podem mutuamente desconhecer-se... são, uma e outra, emanação da razão e de uma razão que permanece fundamentalmente a mesma nestas duas manifestações” .
Era necessária uma inteligência hipnotizada por um simples aspecto da realidade para não enxergar a integralidade do real que nos domina. Enquanto houver razão humana feita para a totalidade do ser, enquanto o universo da experiência se apresentar insuficiente e implicável por si, enquanto a vida humana, ante a caducidade do tempo, a luta do bem e do mal, o sofrimento e a morte alimentar idéias de verdade e aspirações de salvação e de vida melhor, o homem será metafísico e religioso. Como ciência, a filosofia e a religião correspondem a exigências perenes da nossa natureza. É pena que não o visse COMTE, e ao examinar a nossa “organização intelectual” se deixasse levar mais pela influência latente de uma suposta lei preconcebida do que pela docilidade completa às lições da realidade integral. Bem lhe poderíamos aplicar a frase célebre de Hamlet:
There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy.
Com estas ligeiras observações não quisemos ainda indicar como se passou a evolução do pensamento. Estamos ainda no plano teórico, não no terreno da história. Nossa intuição foi apenas mostrar que as considerações de COMTE não demonstram de modo algum a necessidade do desenvolvimento humano pelo itinerário dos três estados e a conseqüente impossibilidade de qualquer outra forma de evolução. É o suficiente para tirar à célebre lei sociológica o seu caráter de lei, para reduzi-la, quando muito, à contingência de um fato, que não poderá, portanto, servir de princípio a nenhuma conclusão nem de fundamento necessário a nenhuma superestrutura definitiva. toda lei é de fato necessária; exprime um nexo de causalidade entre dois fatos. Ora, o estado positivo não foi causado pelo metafísico, nem este pelo teológico. O conceito de entidade abstrata não evolve necessariamente o de divindade mitológica; nem uma abstração personificada evolve forçosamente numa simples relação observada de seqüência ou de semelhança. Morfeu não se transforma, por evolução dialética, numa vis dormitiva, nem esta numa lei constante de sucessão entre a aplicação do ópio e sono. Entre os três estados teríamos, se quiserem, uma seqüência cronológica, não uma conexão interna, uma contingência de fato, não uma necessidade de direito; uma averiguação histórica, não uma premissa lógica, princípio de qualquer conclusão necessária; uma visão indicativa, não uma orientação normativa.
Com estas observações já se lhes tira quase toda a importância intelectual, mas não recusemos descer ao campo dos fatos a fim de verificar se, na realidade, nos achamos diante de uma visão esquemática objetiva da história. Aqui a crítica pode ser material e formal.
Quanto ao seu conteúdo material, na lei de COMTE pululam as inexatidões de toda ordem, e quanto mais descermos a particularidades, isto é, quanto mais nos encontramos com os fatos, tanto mais ressaltam os seus erros.
É inexato que o estado primitivo do homem seja representado pelo fetichismo. Em matéria de etnologia os conhecimentos de COMTE, reduzidos quase ao livro do Presidente DE BROSSES, Du culte des dieux fétiches, eram muito rudimentares. Um dos seus discípulos mais modernos, LÉVY-BRÜHL, influenciado pelas idéias do mestre, pretendeu ver no homem primitivo uma mentalidade essencialmente diversa, refratária à causalidade natural, e irredutível às exigências da nossa lógica. Os primeiros homens eram pré-lógicos. Mas nem a etnologia nem a psicologia lhe foram favoráveis. Idéias e fatos condenaram o pré-logismo; depois de muitos outros BERGSON, na sua última obra, deu-lhes o golpe de misericórdia.
É inexato que o monoteísmo represente uma fase tardia na evolução religiosa da humanidade, A. LANG já de há muitos anos, estudando cuidadosamente as primeiras civilizações, chamou a atenção sobre a existência de um Deus Supremo, o All-Father, adorado pelas tribos mais primitivas. Não obstante a resistência tenaz oposta pelos esquemas apriorísticos do evolucionismo, a tese de LANG, confirmada pelas observações cada vez mais numerosas e convergentes, foi-se impondo no mundo científico com o peso de uma evidência irrefragável. Chamem-no Urheber com SÖDERBLOM, Essere supremo com PETAZZONI, Hochsten Wesen com W. SCHMIDT, Supreme Deity com RADIN, a existência entre os povos primitivos de um Deus, criador do mundo, Legislador e Juiz da ordem moral, é hoje um fato que já não é lícito ignorar. Citemos apenas uma ou outra autoridade: RADIN: “Há 25 anos que LANG publicou o seu livro e sua penetrante intuição está hoje confirmada. Foram os etnólogos que se enganaram. Fatos precisos, reunidos por especialistas autênticos, vieram substituir os seus exemplos demasiado vagos. Já ninguém hoje contesta seriamente que muitos dos povos primitivos crêem num Criados Supremo” . PREUSS: “A descoberta destes seres caía como uma bomba nos esquemas evolutivos ascendentes tão bem dispostos pela Etnologia. Compreende-se que durante 10 anos ela se tenha obstinado a ignorá-la e só recentemente se tenha resignado a tomá-la em consideração... Todos os sábios que estudaram de perto esta divindade suprema concordam hoje em reconhecer que ela não se apresenta como o termo de uma evolução ou como a sua chave de abóbada ideal, mas bem pode ser uma criação religiosa precoce. Com efeito, casos há em que não descobrimos coisa alguns fora desta única divindade” . O dr. J. SCHIESER, utilizando os últimos trabalhos da etnologia, chega a estas duas conclusões: “1o. ) Entre os nossos atuais primitivos encontra-se o monoteísmo; e o seu monoteísmo é tanto mais puro quanto mais próximo eles se acham do estado primitivo; 2o.) as amostras mais antigas da humanidade primitiva, que, ao presente, representam o primeiro estádio da evolução cultural e a infância da humanidade, professam o monoteísmo relativamente mais puro, como também ocupam o lugar relativamente mais elevado no ponto de vista religioso, moral e social entre as raças humanas primitivas mais jovens e os outros pagãos não civilizados”. W. SCHMIDT incontestavelmente a mais alta autoridade no assunto assim concluía um estudo recente: “A longa lista dos sábios que acabamos de citar atesta que a questão do Ser supremo dos primitivos venceu o desfiladeiro das contradições radicais e das pretensões desdenhosas para penetrar na zona pacífica de uma consideração séria e de um exame objetivo. A presença efetiva deste ser supremo e sua originalidade já não são negadas por nenhum especialista qualificado. Seu arcaísmo etnológico é muitas vezes reconhecido e já se não encontra quem se atreva a rejeitá-lo absolutamente. Cresce, sem cessar, o número dos que admitem a impossibilidade de o derivar do animismo, do magismo do Totemismo ou do Naturismo e lhe conhecem uma origem independente. Muitos, se não chegam a proclamar sua anterioridade, relativamente a estes diferentes fatores, confessam que não há razões para o julgar mais recente” .
Se dos povos primitivos passarmos às civilizações clássicas da antiguidade oriental e ocidental encontramos também nos documentos antigos o monoteísmo a preceder de muito o politeísmo dos panteões posteriores. Assim, para citarmos o só exemplo da China, 15 ou 20 séculos antes da era cristã, aparece-nos entre os chineses a crença num “Ser Superior que eles chama Céu sublime, Céu, Soberano Sublime, Soberano, quatro nomes perfeitamente sinônimos. O Céu dá, conserva ou tira a existência; é o autor de todas as relações e de todas as leis; considera os homens e os julga; recompensa ou pune segundo os méritos ou deméritos” .
É inexato que o monoteísmo, na nossa civilização ocidental, possa considerar-se como uma evolução espontânea do politeísmo greco-romano. A religião de Roma imperial apresenta pelo contrário uma tendência a multiplicar os deuses do seu Panteão. A origem do nosso monoteísmo não é o resultado de uma evolução natural mosaica; como mais tarde nos livros sagrados judeu-cristãos vai prender as suas raízes o monoteísmo muçulmano. A história não conhece um só povo ou uma só civilização que espontaneamente, por “uma necessidade invariável” da nossa “organização” se tenha elevado do culto politeísta à adoração de um Deus único. A esta concepção só se elevaram por via do raciocínio alguma inteligências do escol do paganismo.
Mas ainda aqui é inexato que a história do pensamento estritamente filosófico se possa reduzir aos três momentos do evolucionismo comtista. toda a história da filosofia é um grande desmentido à famosa lei que deveria reger o “desenvolvimento de todas as concepções teóricas” . Tomai, por exemplo, a evolução do pensamento grego. O primeiro período é caracterizado por investigações cosmológicas da realidade sensível; DEMÓCRITO e LEUCIPO, que o rematam, desterrando os deuses do cosmos e explicando todo o universo como matéria e movimento (atomismo mecânico) bem podiam figurar, sem desdouro, ao lado de muito positivista moderno. O período seguinte assinala o apogeu da filosofia ática que elabora, com PLATÃO e ARISTÓTELES, as suas grandes sínteses metafísicas coroadas por uma magnífica demonstração da existência de Deus. O terceiro período toma a princípio, com a escola estóica e o epicurismo, um feito acentuadamente moral para orientar-se mais tarde, com a escola neoplatônica, no sentido do misticismo e da teurgia. PORFÍRIO JÂMBLICO e JULIANO APÓSTATA, seus últimos representantes, reaviventam o politeísmo com as suas práticas de magia e necromancia. Se, com uma visão simplificadora da complexidade das coisas no gênero da lei dos três estados, quiséramos resumir este ciclo magnífico de 10 séculos do pensamento humano diríamos que a filosofia grega passou do estado positivo através do metafísico para o teológico, monoteísta a princípio, politeísta no seu termo final, evolvendo assim numa ordem precisamente inversa à suposta lei de COMTE.
Passai agora à filosofia moderna. O século XVII e o XVIII, assinalados pelo maravilhoso surto das ciências positivas, são ao mesmo tempo a época das grandes construções filosóficas de DESCARTES, ESPINOSA e LEIBNIZ, metafísicos e teólogos como os que mais o foram. A primeira metade do século XIX, era de notáveis descobertas no domínio das ciências experimentais, é contemporânea das sistematizações metafísicas de FICHTE, SCHELLING, HEGEL, SCHOPENHAUER e HARTMANN. Os nossos dias assistem em todos os países a um renascimento metafísico que costuma preludiar todas as épocas de pensamento robusto. “O mundo todo, escreveu E. VON HARTMANN, está cansado do agnosticismo estéril, e todas as disciplinas filosóficas começam a persuadir-se que se haviam emaranhado num labirinto sem saída donde só as poderá libertar a metafísica” .
Não há uma só época na história da filosofia em que se não encontrem em proporções variadas as tendências empíricas e idealistas, racionalistas ou místicas. A um contemporâneo de A. COMTE, V. COUSIN (1792-1867), pareceu-lhe ver a evolução do pensamento filosófico subordinado em cada época aos ciclos periódicos: sensualismo, idealismo, ceticismo e misticismo: quatro tendências ou quatro sistemas que encerram, cada qual, uma parcela indestrutível de verdade. Não nos responsabilizamos pelo que pode haver de artificial na síntese do fundador do ecletismo; não se poderá negar, porém, que em todas as épocas se encontram representantes autênticos destas diversas orientações do pensamento. Com que direito, portanto, mutila COMTE a realidade total para afirmar, graças a uma seleção de todo em todo arbitrária, a sua lei de evolução unilinear?
Nem o forra à arbitrariedade a passagem da história da espécie para a dos indivíduos, o reforçar uma suposta demonstração direta por uma prova indireta de analogia. Quando ainda há pouco nos afirmava desabaladamente o fundador do positivismo que o homem era teólogo na infância, metafísico na adolescência e positivo na virilidade, ainda uma vez era infiel aos fatos, às lições da psicologia como às da história. Em formas e proporções variadas, os três tipos de conhecimentos existem em todas as idades; mas se quiséssemos estabelecer alguma ordem na evolução psicológica verificaríamos que nos anos da juventude a vida do conhecimento é mais orientada para a observação do mundo exterior, na variedade impressionante dos seus fenômenos; com os anos amadurece a reflexão, se curam as paixões efervescentes e os problemas metafísicos e religiosos entram a preocupar a razão adulta. ARISTÓTELES e LEIBNIZ, DESCARTES e PASCAL, NEWTON e COPÉRNICO, AMPÈRE e PASTEUR não aliaram na mais robusta síntese o saber positivo à mais alta especulação metafísica ou à mais intensa vida espiritual? KANT e SCHOPENHAUER, WUNDT [e outros] não começaram a sua carreira pelo estudo das ciências positivas para se elevarem, na plenitude de sua madureza intelectual, aos grandes problemas de que se ocupa a metafísica? POINCARÉ, MEYERSON, REINKE, KÜLPE e WHITEHEAD não percorreram, sob os nossos olhos, uma trajetória semelhante? Não conciliaram quase todos os grandes sábios modernos a vastidão variada de sua ciência positiva com a firmeza de suas convicções monoteístas e muitos deles, com a mais profunda interioridade religiosa? Onde estão os grandes sábios que por uma “necessidade invariável” desabotoaram “teólogos” infantes, evolveram a metafísicos adolescentes para desfechar em varões positivistas e velhos ateus? “São só os pseudofilósofos, observa com acerto O. WILLMANN, que nada sabem de Deus quando chegam à metafísica e ignoram totalmente os princípios, quando estudam a natureza” .
Evidentemente não estamos em face de uma visão objetiva da história, mas diante de uma construção subjetiva, artificial, apriorista e tendenciosa. Perfeitamente justa a crítica insuspeita de RENOUVIER: “Nunca hipótese alguma apresentou mais claros sinais da prevenção do que esta pretendida lei que se queria deduzir da observação histórica. A petição de princípio nela se manifesta claramente quando se confunde a marcha das ciências positivas com a marcha do próprio espírito humano de que elas são apenas uma obra parcial, realizada por meio da abstração científica, por um pequeno número de homens. Em estilo baconiano, é um verdadeiro ídolo de caverna” . Mais severo ainda o juízo de MEYERSON, uma das maiores autoridades contemporâneas em epistemologia e história das ciências: “O menos que dela [a lei dos três estados] se pode dizer é que constitui uma fórmula inteiramente apriórica. Nem uma só vez mostrou o seu autor como a tenha tirado da história das ciências nem tentou confirmá-la com os dados reais desta história; basta o relancear de olhos mais sumário sobre esta evolução para infirmá-la a cada passo” .
Se o conteúdo material da lei sociológica está em completo antagonismo com os dados mais incontestáveis da história, das idéias, das instituições e da civilização humana, a sua elaboração formal adoece ainda de enfermidades mais graves. Passamos assim dos erros de fato aos vícios de lógica.
Começa-se por uma generalização injustificada e contrária às exigências mais elementares da metodologia científica. A base da observação sobre que se pretende esticar a lei restringe-se aos povos ocidentais situados em torno da bacia do Mediterrâneo nos últimos 4.000 anos de sua existência. O que se viu ou se julgou ver nestes limites de espaço e de tempo é depois, contra todas as regras da indução, ampliado a todos os tempos e a toda a humanidade em virtude de uma suposta impossibilidade de retrogradação e de uma necessária evolução retilínea — duas teorias cujo valor estava topo dependendo da verdade da suposta lei para cuja generalização já eram empregadas como se foram verdades demonstradas. É o primeiro círculo vicioso ou a primeira petição de princípio.
O segundo equívoco fundamental esconde-se nos próprios termos em que se enuncia a lei: chama-se teologia o que não é teologia, batiza-se de metafísica o que metafísica não é, e depois conclui-se pela incompatibilidade dos três modos de pensar, falsa e arbitrariamente conceituados.
Metafísica, diz COMTE, é a substituição do positivo pelo imaginado, a personificação de abstrações vazias, a pura dissolução da teologia. Não! Isto não foi metafísica; a transição de ideal para o real é apenas um velho sofisma denunciado por todos os lógicos e metafísicos e em que pode incorrer qualquer homem que não aprendeu a pensar: teólogo, metafísico ou experimentador.
Teologia é a explicação dos fenômenos por vontades preternaturais, arbitrárias e caprichosas, incompatíveis com a regularidade e constância dos fenômenos observados. Ainda uma vez, não; semelhantes infantilidades ridículas não são teologia. Nenhum teólogo de valor, ARISTÓTELES ou S. TOMÁS DE AQUINO, atribui à divindade esta função substitutiva da causalidade criada.
Metafísica e teologia representam-se assim para o fundador do positivismo, produtor da fantasia que indevidamente se substitui à razão. Ora, se há conhecimento humano em que o papel da imaginação se acha reduzido ao mínimo e o da razão ao máximo, é precisamente o domínio da filosofia. Os grandes metafísicos e os grandes teólogos recrutam-se entre as inteligências mais elevadas que melhor souberam discernir as exigências racionais do jogo das ilusões imaginosas. É a lição da história!
Falseia-se destarte a noção de teologia, falseia-se a noção de metafísica, identificam-se uma e outra com um antropomorfismo ingênuo e, depois, proclama-se a sua incompatibilidade irredutível!!
deste, nasce outro equívoco ainda mais funesto. Os três modos de pensar, a ouvirmos COMTE, versariam sobre a mesma realidade encarada sob o mesmo aspecto, e, por isto, não se compadecem; necessariamente um deverá excluir os outros. Sobe o mercúrio num tubo barométrico. Sentencia o sábio: é a pressão da atmosfera que se relaciona necessariamente com a ascensão do líquido e a explica. Intervém um metafísico: não! É o horror ao vácuo. Explica o teólogo: qual! É algum diabinho ou algum gênio bom que preside à conservação dos barômetros. E como as três explicações se excluem, só a do sábio é verdadeira; o filósofo e o teólogo dêem as suas demissões e aposentem-se definitivamente.
Que deplorável confusão! Quem não vê que a explicação científica, a filosófica e a teológica da realidade atingem domínios diferentes e respondem a questões de todo em todo distintas? Longe de se excluírem, completam-se. No domínio dos fenômenos, o que se deseja saber é a solidariedade dos fatos, no espaço e no tempo, e as leis que a regem; o método para conhecê-la, a observação e a experimentação. O sábio está aqui no campo de sua exclusiva competência. Quanto ele apurar, com o rigor dos seus processos, admitem-no sem hesitações filósofos e teólogos, os primeiros a preconizar, também eles, a necessidade da experiência na investigação das leis naturais. Mas a razão humana não pára na primeira série dos porquês; aspira a conhecer a natureza das coisas e a explicá-la inteligivelmente. Desejamos saber se uma pedra ou uma planta são a mesma coisa; se o instinto e a inteligência são duas manifestações de um mesmo psiquismo fundamental, se o homem e o bruto diferem apenas de grau ou de natureza; se a ciência, averiguando apenas relações de coexistência ou de sucessão, dá no Universo uma explicação suficiente e completa. Desejamos ainda saber qual a origem e a finalidade do Cosmos e, de modo particular, qual a origem e os destinos do homem? São ou não são estas questões inelutáveis, postas a toda a razão que reflete? Que outra coisa é toda a história do pensamento humano senão a afirmação maciça deste fato? Quem poderá interditar à razão estes porquês, sem ao mesmo tempo a destruir radicalmente? Ora, qualquer resposta que a estas perguntas se quiser dar não poderá apresentar-se senão em nome de uma metafísica. Por sua natureza, escapam aos métodos experimentais do saber positivo. Será uma metafísica construtiva, que, baseada na experiência e nos princípios racionais, se eleva com o raciocínio além do sensível, para explicá-lo adequadamente, ou será uma metafísica crítica, que investigando a natureza dos nossos meios de conhecimento lhes trace, no mundo dos fenômenos, limites intransponíveis. Ora, desta crítica restritiva do conhecimento nenhum vestígio no fundador do positivismo. “COMTE, escreve HÖFFDING, não sentiu “l’anillo” do verdadeiro problema gnoseológico. Tentou sistematizar o conhecimento positivo, mas sem se propor a tarefa de examinar-lhe o fundamento derradeiro” . “Ele não tem consciência, observa por sua vez RENOUVIER, da necessidade lógica de uma crítica geral do conhecimento. Não percebe como, reduzindo a filosofia ao conjunto sistemático das ciências positivas, ou afirma um princípio arbitrário ou precisa de uma investigação filosófica superior para estabelecer a sua tese. Nada há com efeito, de quanto se tira de uma destas ciências ou de sua reunião, que as possa dominar; sobre que base repousará a sua sistematização? Há mister, portanto, outra filosofia, que, não se identificando com uma das ciências admitidas pelo positivista, tem seu fundamento ou na análise da consciência, ou nas verdades ditas da razão pura; em outros termos, no que se chama psicologia e metafísica. Rejeitando sem exame estas ciências, ou, se quiserem, estes estudos, qualquer que possa vir a ser o seu resultado, o positivista comete uma petição de princípio”. Por outra, a toda combinação positivista, falta-lhe a base natural. A eliminação da metafísica e da teologia é feita em nome de um dogmatismo apriorista e injustificado.
Daí a marcha da civilização não obedecer ao itinerário traçado pela lei sociológica dos três estados. O domínio do estado positivo com exclusão dos outros, se fora possível, marcaria não um enriquecimento mas uma mutilação essencial do homem. O progresso deve orientar-se para uma síntese harmoniosa dos três estados. A causalidade científica, a causalidade metafísica e a causalidade teológica não se excluem como incompatíveis, integram-se como complementares e respondem a exigências distintas mas inextirpáveis da mesma razão ao encarar a realidade em seus diferentes aspectos. Os métodos diversificam-se com diversidade dos objetos mas é a mesma inteligência humana que se abre, em toda a amplitude de suas mais legítimas aspirações às ciências positivas, à metafísica e à teologia. O progresso realiza-se por uma distinção mais nítida de domínios e por um aperfeiçoamento progressivo dos métodos respectivos. A princípio o conhecimento apresenta-se indiferenciado e confuso. Em face de uma explicação primitiva e ingênua da natureza não saberíamos muitas vezes decidir se se trata de má teologia, de má metafísica ou de má ciência. Com o volver dos séculos os campos se vão distinguindo e os métodos se vão apurando. A ciência aperfeiçoa os seus processos de observação e experimentação e em nome deles não afirma senão as relações constantes evidenciadas por uma indução rigorosa. A metafísica e a teologia, alargando cada vez mais a base experimental, não tentarão adivinhar a realidade, mas interpretá-la e explicá-la com a crítica mais severa dos seus raciocínios. Cada forma de conhecimento desenvolver-se-á na sua esfera, sem atritos nem conflitos com a vizinha. Assim, na história dos indivíduos como na da humanidade progride a inteligência pelo desenvolvimento harmônico de todas as suas virtualidades naturais. Qualquer tentativa de mutilação na solidariedade deste dinamismo funcional está condenada a um malogro irremediável. As questões de ordem filosófica ou religiosa são tão consubstanciadas à estrutura da inteligência, tão indissoluvelmente unidas à orientação da vida que não há esforço nem artifício capaz de partir estes vínculos essenciais. A lei de COMTE é a prova mais fulgurante. Enunciada com o propósito visível de excluir a metafísica como uma vaidade de palavras vazias, descansa em peso num imenso postulado de ordem metaempírica. toda ela visceralmente contaminada pelo vírus metafísico. É o último círculo vicioso que a desvirtua.
Explicitemos estes postulados latentes. A lei de COMTE aspira a traçar o caminho do progresso. Vencidos os dois primeiros estados, de sua natureza transitórios, a humanidade tende para o terceiro como para o seu ideal definitivo; uma sociedade humana, emancipada de teologias e filosofias, totalmente unida na concepção positiva do saber, na organização industrial e na prática espontânea do altruísmo. Eis, portanto, o fim último que ao homem aponta o positivismo: uma soma de bens terrenos harmoniosamente equilibrados. Sua existência não se estende além das fronteiras do túmulo; os limites do espaço e do tempo encerram definitivamente, nesta vida terrena, a totalidade dos seus destinos. Ora, que são todas estas afirmações senão outras tantas respostas às questões de natureza, de origem e de fins do homem, às questões de causa eficientes e finais que se haviam declarado vãs e metafísicas e que de fato não podem ser resolvidas pelos métodos experimentais das ciências positivas? Suponde, por um instante, outra resposta dada ao problema da vida, inspirada esta na filosofia espiritualista: o homem não é só um punhado de argila organizada; no corpo de matéria vibra-lhe a chama de um espírito imortal; criado por Deus, para ele tende como para a Suma Verdade e o Sumo Bem; este termo necessário de sua perfeição e felicidade, atingi-lo-á pela sinceridade e retidão de uma vida moral conscientemente orientada para o Princípio e Fim de todo ser. Imediatamente, nesta suposição, a lei dos três estados, longe de encerrar a fórmula do progresso seria, realizada, a maior catástrofe que poderia sobrevir à humanidade: o desvio consciente e definitivo dos seus destinos, a inabilitação radical para atingir a perfeição e a felicidade para que foi feita e fora da qual só encontraria a desordem, a inquietude, o desespero fatal.
A lei sociológica não se desembaraçou, pois, da metafísica. Todo o progresso é um movimento de aproximação para um ideal. E não há ideal, não há determinação de valores, sem uma solução explícita ou implícita das questões de ordem filosófica e religiosa. COMTE não pôde subtrair-se a esta necessidade iniludível. Consciente ou inconscientemente também ele optou por uma metafísica. Por desventura preferiu a de pior cunho: o mais radical materialismo, que, no seu sistema, nem sequer tem o merecimento de uma afirmação desassombrada ou de uma tentativa leal de justificação. Insinua-se como fundamento disfarçado e mal seguro do inteiro edifício vacilante. O agnosticismo de COMTE é na realidade uma dissimulação superficial do materialismo ateu.
Deus, por isso mesmo que de sua natureza é Absoluto e Necessário, é a única realidade de que se não pode prescindir. Pelo fato indeclinável de pensarmos e vivermos damos uma solução ao problema da vida e das suas finalidades. Todo o movimento tem no próprio termo sua razão de ser e seu princípio específicos. Na finalidade inevitável que propomos a este grande movimento da nossa existência declaramos a Deus Necessário ou Contingente, isto é, afirmamo-lo ou negamo-lo. Que estas atitudes sejam francas, racionais, sinceras e refletidas: é o maior dever que se impõe à consciência do homem. Com ele jogam-se todos os seus destinos.