1. Poder-se-ia pensar que a metafísica, nas épocas de impotência especulativa, brilha ao menos pela modéstia. Mas a mesma época que lhe ignora a grandeza ignora-lhe também a modéstia. Sua grandeza: ser sabedoria. Sua miséria: ser ciência humana.
Ela nomeia a Deus, é verdade. Mas não por Seu Nome. Pois não se descreve a Deus como a uma árvore ou como a uma seção cônica. Sois verdadeiramente um Deus oculto, Vós, o verdadeiro Deus, Salvador de Israel. Como Jacó, pela manhã, interrogasse ao anjo: “Diz-me como te chamas”, ouviu esta resposta: “Por que me perguntas o Nome?” [1] “É impossível pronunciar este nome verdadeiramente admirável, posto acima de todo e qualquer nome pronunciado tanto no século presente como no século vindouro.” [2]
2. Sejam neokantianos, neopositivistas, idealistas, bergsonianos, logicistas, pragmatistas, neo-espinosistas ou neomisticistas, um vício profundo marca os filósofos deste tempo — o velho erro dos nominalistas. Em formas variadas, com consciência mais ou menos diferenciada, todos reprovam ao conhecimento por conceitos o não ser uma intuição supra-sensível do singular existente, como a scientia intuitiva de Espinosa, ou a visão teosófica de um Bœhme ou de um Swedenborg, denunciada por Kant — com tanto pesar — como ilusória. Não lhe perdoam o não desaguar diretamente, como os sentidos, na existência, mas somente em essências, em possíveis, e o não alcançar a existência atual senão cingindo-se aos sentidos. Ignoram profundamente o valor do abstrato, dessa imaterialidade mais dura que as coisas, ainda que impalpável e inimaginável, que o espírito vai buscar no coração das coisas mesmas. E por que esse incurável nominalismo? Porque, tendo o gosto do real, não possuem o sentido do ser. O ser como tal, desligado da matéria onde ganha corpo, o ser com suas puras necessidades objetivas, suas leis que nada pesam, suas exigências que não se tocam, suas evidências invisíveis, não passa para eles de uma palavra.
Como especular acerca da geometria do espaço se não se vêem as figuras no espaço? Como dissertar acerca de metafísica se não se vêem as qüididades no inteligível? Sem dúvida, uma difícil ginástica é necessária igualmente ao poeta e ao metafísico. Num e noutro caso, todavia, impossível tentar o que seja sem um dom primeiro. Um de meus amigos, jesuíta, sustenta que o homem se tornou, desde o pecado de Adão, tão inepto em sua inteligência, que é preciso ver a percepção intelectual do ser como um dom místico e sobrenatural concedido a alguns privilegiados. Piedoso exagero. É verdade, porém, que esta intuição é para nós um despertar entre sonhos, um passo dado bruscamente fora do sono e de seus rios estrelados. Pois há para o homem muitos dormires. Ele sai todas as manhãs do sono animal; de seu sono de homem quando a inteligência se desliga (e de um sono de deus ao contato com Deus). No nascimento do metafísico como no do poeta, há como uma graça de ordem natural. Um, que lança seu coração nas coisas como um dardo ou um foguete, vê por adivinhação — no sensível mesmo, de que não o pode separar — o fulgor de uma luz espiritual onde um olhar de Deus brilha para ele. O outro, desviando-se do sensível, vê por ciência, no inteligível, e desprendida das coisas perecedouras, essa mesma luz espiritual captada em alguma idéia. Na abstração, que é a morte de um, o outro respira; a imaginação, o descontínuo, o inverificável, onde este perece, constitui a vida daquele. Ambos aspiram os raios descidos da Noite criadora, mas um se nutre de uma inteligibilidade vinculada e tão multiforme como os reflexos de Deus no mundo, e o outro de uma inteligibilidade livre e tão determinada como o ser próprio das coisas. Eles brincam de balanço, elevando-se alternadamente ao céu. Os espectadores escarnecem a brincadeira; estão sentados na terra.
3. O senhor é, disse-me alguém, como um decifrador de magia negra que nos ordenaria voássemos com nossos braços. — Não, eu lhes peço que voem com suas asas. — Mas temos somente braços. — Braços? Asas atrofiadas, o que é coisa muito diferente. Elas tornariam a crescer se vocês tivessem coragem, se compreendessem que não nos apoiamos somente na terra, e que o ar não é o vazio.
Invocar contra um filósofo uma simples impossibilidade de fato, certo estado histórico da inteligência, dizer-lhe: O que senhor nos oferece ao entendimento é talvez a verdade, mas nossa estrutura mental chegou a tal estado que já não podemos pensar a verdade que o senhor nos propõe, pois nosso espírito “mudou como nosso corpo” [3], é argumento estritamente nulo. É no entanto o melhor que se pode opor ao atual renascimento da metafísica. É bem verdade que a metafísica eterna não se harmoniza com a inteligência moderna ou, mais precisamente, esta não se harmoniza com aquela. Três séculos de empiriomatematismo a levaram a não se interessar senão pela invenção de aparelhos para captar os fenômenos — sistemas conceptuais que conferem ao espírito certo domínio prático e uma intelecção enganosa da natureza, porque o pensamento se resolve aí não no ser, nas no próprio sensível. Progredindo, assim, não por agregação de verdades novas a verdades adquiridas, mas por substituição de aparelhos velhos por aparelhos novos; manejando as coisas sem as entender; extraindo do real não mais que pequenezas, pacientemente, por conquistas sempre parciais e sempre provisórias; adquirindo o gosto secreto da matéria em que roça, a inteligência moderna desenvolveu em si, nessa ordem inferior da demiurgia científica, uma espécie de tato múltiplo maravilhosamente especializado, e admiráveis instintos de caça. Mas ao mesmo tempo se debilitou e desarmou miseravelmente com respeito aos objetos próprios da inteligência, aos quais renuncia covardemente, e já não é capaz de apreciar o universo das evidências racionais senão como a um sistema de engrenagens bem lubrificadas. Por conseguinte, é-lhe preciso pôr-se contra qualquer metafísica — positivismo de tipo antigo — ou tomar o partido de uma pseudometafísica — positivismo de novo tipo — de uma dessas contrafações da metafísica onde se vê o procedimento experimental invadir os domínios da intelecção pura, ou em sua forma mais grosseira, como é o caso dos pragmatistas e dos pluralistas, ou na mais sutil, como o da intuição bergsoniana, ou na mais religiosa, como o da ação integral dos blondelianos e seu esforço para sofrer misticamente todas as coisas.
Tudo isso é verdade. O pendor da inteligência moderna está contra nós. Não importa: os pendores, as ladeiras são para que as subamos. A inteligência não mudou de natureza; unicamente adquiriu hábitos. Os hábitos corrigem-se. Segunda natureza? Mas a primeira está sempre presente; e o silogismo durará tanto quanto o homem.
Não é menor dificuldade para o filósofo que para o artista estar em descompasso com o ritmo intelectual de seu tempo. As coisas, porém, passam-se mui diferentemente no caso de um e do outro. O artista infunde em sua obra o espírito criador; o filósofo mede pelo real o espírito cognoscente. É confiando antes de tudo na inteligência de seu tempo e tirando dela todo o partido possível, concentrando antes de tudo todos os seus langores como todos os seus fervores, que o artista terá condições de ordenar toda a massa. Mas o filósofo deve aproximar-se antes de tudo do objeto e aferrar-se a ele loucamente, com tanta tenacidade, que na massa que lhe é adversa uma ruptura enfim se produza, determinando um reagrupamento de forças e uma nova orientação.
4. É bem verdade também que a metafísica não serve em nada para o rendimento da ciência experimental. Descobertas e invenções no país dos fenômenos? De nenhuma ela se pode gabar; seu valor heurístico, como se diz, é absolutamente nulo. Nada que esperar dela desse ângulo. No céu não se trabalha.
E nisto reside sua grandeza, sabemo-lo já desde alguns milhares de anos. Inútil, dizia o velho Aristóteles, ele não serve para nada porque está acima de toda e qualquer servidão; inútil porque supra-útil, boa em si e para si. Compreenda-se pois que se ela existisse para servir a ciência dos fenômenos, para contribuir para seu rendimento, seria vã por definição: quereria ir além dessa ciência, sem ser melhor do que ela. Falsa desde o princípio, seja de Descartes, de Espinosa ou de Kant, qualquer metafísica que se meça não pelo mistério do que é, mas pelo estado momentâneo da ciência positiva. A verdadeira metafísica, à sua maneira, e guardadas as devidas proporções, também pode dizer: Meu reino não é deste mundo. De seus axiomas ela se apodera apesar do mundo, que se esforça para lhos mascarar ― que é, com efeito, o que dizem os fenômenos, a falaz maré do empírico bruto, senão que o que é não é, e que há mais no efeito do que na causa? A suas conclusões, elas as contempla elevando-se do visível ao invisível, subordinando-as a um regime de causações inteligíveis que se encontra implicado neste mundo e que todavia o transcende, regime que não contraria em nada o sistema de consecuções sensíveis estudadas pela ciência experimental, mas que lhe permanece estritamente alheio: movimento de minha pena sobre o papel — mão; imaginação e sentidos internos — vontade, inteligência; e o primeiro Agente, sem cuja moção nenhum ser criado atuaria; tal série não se opõe em nada mas tampouco ajuda em nada à determinação das modificações vasomotrizes ou das associações de imagens postas em função enquanto escrevo. A metafísica exige certa purificação da inteligência; supõe também certa purificação do querer, e que se tenha a força de aderir ao que não serve, à Verdade inútil.
Nada porém é mais necessário ao homem que esta inutilidade. Temos necessidade, pois, não de verdades que nos sirvam, mas de uma verdade a que sirvamos. Pois ela é o alimento do espírito, e nós somos espírito pela melhor parte de nós mesmos. A inútil metafísica põe ordem — não um arranjo qualquer de polícia, mas a ordem emanada da eternidade — na inteligência especulativa e prática. Dá ao homem seu equilíbrio e seu movimento, que consiste, como se sabe, em gravitar com a cabeça no meio das estrelas, erguido na terra pelas duas pernas. Ela descobre-lhe em toda a extensão do ser os valores autênticos e sua hierarquia. Ela centra-lhe a ética. Ela situa na justiça o universo de seu conhecimento, assegurando os limites naturais, a harmonia e a subordinação das diversas ciências — e isso importa mais ao ser humano que a mais luxuriante proliferação da matemática dos fenômenos, pois para que ganhar o mundo e perder a retidão da razão? Por estarmos, ademais, tão enfermos, pode muito bem suceder que a límpida paz dispensada por uma sã metafísica seja menos favorável à descoberta experimental que os devaneios ou a aspereza de um espírito imerso no sensível; pode ser que as ciências da natureza gostem de pescar em águas turvas; mas talvez também tenhamos o direito de nos sentir suficientemente cumulados dos benefícios da dispersão.
A metafísica instala-nos no eterno e no absoluto, fazendo-nos passar do espetáculo das coisas ao conhecimento de razão (mais firme em si mesmo e mais seguro que as certezas matemáticas, conquanto menos ao nosso alcance), à ciência do invisível mundo das perfeições divinas decifradas em seus reflexos criados.
A metafísica não é um meio, é um fim, um fruto, um bem honesto e deleitável, um saber de homem livre, o saber mais livre e mais naturalmente nobre, o ingresso nos ócios da grande atividade especulativa onde a inteligência respira à vontade, posta no cume das causas.
5. Não obstante, isto não é ainda o esboço, nem sequer o mais imperfeito, da alegria da pátria. Esta sabedoria se adquire a modo de ciência; daí seu grande peso de labor e de aflição do espírito. Pois a antiga maldição maledicta terra in opere tuo nos pesa mais tragicamente sobre a razão que sobre as mãos. Sim, a não ser por um privilégio dessa boa Fortuna em que os pagãos não faziam mal em meditar, a exploração dos supremos inteligíveis promete-nos sobretudo esforços baldados, e a terrível tristeza de verdades a retalho.
Os deuses invejam-nos a sabedoria metafísica — o patrimônio doutrinal que nos permite chegar a ela sem risco de cair em demasiados erros é constantemente ignorado — mas o homem jamais a possui senão de modo precário, e como seria de outra forma? Que mais belo paradoxo que uma ciência das coisas divinas conquistada por meios humanos, um gozo de liberdade, próprio dos espíritos, obtido por uma natureza “serva por tantos aspectos”? A sabedoria metafísica está no mais puro grau de abstração, porque é a que mais dista dos sentidos; ela deságua no imaterial, num mundo de realidades que existem ou podem existir separadamente da matéria. Mas nosso meio de ascensão marca também nossos limites. Por necessidade de natureza a abstração, condição de qualquer ciência humana, porta, com a multiplicidade das visões parciais e complementares, a dura lei do movimento lógico, a lenta elaboração dos conceitos, a complexidade e a imensa maquinaria, mais pesada que o ar, do aparelho alado do discurso. A metafísica quereria contemplar puramente, transpor o raciocínio para entrar na pura intelecção; ela aspira à unidade do simples olhar. Aproxima-se dele como de uma assíntota, sem jamais o alcançar. Que metafísico, para não falar dos velhos Brâmanes, sentiu melhor que Plotino esse ardente desejo da sublime unidade? Mas o êxtase de Plotino não é o exercício supremo; é antes o ponto de desvanecimento da metafísica, e a metafísica por si só não o pode buscar. Essa feliz oportunidade, que Plotino conheceu quatro vezes durante os seis anos que Porfírio viveu com ele, aparece como breve contato com uma luz intelectual naturalmente mais poderosa, o espasmo de um espírito humano roçado por um puro espírito. Se cremos em Porfírio quando nos diz que seu mestre nasceu no décimo terceiro ano do reinado de Severo, que escutou a Amônio em Alexandria, que veio para Roma aos quarenta anos, que morreu em Campânia, quando nos informa de sua higiene e de seu estilo de vida, de sua bondade para com os órfãos confiados à sua guarda, de sua maneira de ensinar, de compor suas obras, de pronunciar o grego, da correção de sua ortografia etc., por que não creríamos nele quando nos diz que o filósofo estava inspirado por um demônio superior que o habitava, e que, sob forma sensível, apareceu no momento de sua morte? “Nesse momento uma serpente passou sob o leito em que estava deitado e penetrou num buraco da parede; e Plotino rendeu a alma.” [4] O que seria de espantar é que o eros metafísico, ali onde Cristo não habita, não apelasse para uma espécie de colusão com as naturezas intelectuais supra-humanas, rectores hujus mundi [5].
Mas retomemos nosso propósito. Digo que a metafísica não padece somente a necessidade comum da abstração e do discurso. Ela padece uma enfermidade que lhe é própria. É uma teologia natural, e seu objeto por excelência é a Causa das causas. O Princípio de tudo o que é, eis Aquilo que ela quer conhecer. E como não o quereria conhecer com uma ciência perfeita e acabada, a única plenamente capaz de saciá-la, a conhecê-lo em si mesmo, em sua essência, no que propriamente o constitui? O desejo de ver a Causa primeira, se é natural ao homem — conquanto “condicional” e “ineficaz”, pois precisamente não provém em nós de uma proporção natural a seu objeto — é natural de modo especial para o metafísico, que, se merece seu nome, não pode menos que sentir-lhe o aguilhão. Mas a metafísica não nos faz conhecer a Deus senão por analogia, no que Ele não tem de próprio, na comunidade dessas perfeições transcendentais que se encontram ao mesmo tempo — em modos infinitamente diversos — n’Ele e nas coisas. Conhecimento verdadeiro, certo, absoluto, o mais alto deleite da razão, e pelo qual vale a pena ser homem, mas que permanece infinitamente longe da visão, e que faz sentir com mais acabrunhamento o mistério. Per speculum in ænigmate [6]. Compreende-se pois muito bem por que o fruto mais perfeito da vida intelectual deixa ainda o homem insatisfeito.
É que para dizer a verdade, em tese geral, a vida intelectual em nós não se basta. Carece de complemento. Todas as formas e todos os bens, o conhecimento no-los introduz na alma, mas despojados de existência própria e reduzidos à condição de objetos de pensamento. Presentes, como enxertados em nós, mas sob um modo de ser essencialmente incompleto, exigem eles completar-se, engendram em nós forças de gravidade, o desejo de os alcançar em sua existência própria e real, de os possuir já não em idéia, mas em realidade. Surgindo pois o amor, impele a alma a uma união de ordem real, que a inteligência por si só, a não ser no caso extremo da visão de Deus [7], não pode tornar efetiva. Fatalmente, portanto — a menos que o impeça algum humano desvio — a vida intelectual termina em nós por se confessar indigente, e muda-se um dia em desejo. É o problema de Fausto. Se a sabedoria humana não termina no alto, no amor de Deus, declinará para Margarida. Possessão mística do Deus santíssimo na eterna caridade, ou possessão física de uma pobre carne na fugacidade do tempo, acaba-se inexoravelmente nisto, por astuto que se seja; é uma escolha que não se pode evitar.
6. Eis pois a miséria da metafísica (e também, todavia, sua grandeza). Ela acende o desejo da união suprema, de uma possessão espiritual consumada na ordem mesma da realidade, e já não somente na da idéia. Esta não o pode satisfazer.
É outra sabedoria o que nós pregamos, escândalo para os judeus e demência para os gregos. Excedendo a qualquer esforço humano, dom da graça deificante e das livres larguezas da Sabedoria incriada, em seu princípio há o amor louco desta Sabedoria por cada um de nós, e em seu termo unidade de espírito com ela. Só Jesus crucificado, o Mediador suspenso entre o céu e a terra, nos dá acesso a ela. Tendo amputadas mãos e pés, e crucificado, também ele, no patíbulo, como lhe perguntassem: “’Que é a mística?’, respondeu al Hallâj: ‘Seu menor grau, tu o vês aqui.’ ‘E seu grau supremo?’ ‘Tu não podes ter acesso a ele; e no entanto verás amanhã o que advirá. Pois é no mistério divino, onde ele existe, que eu o testemunho, e que a ti te permanece oculto.’” [8] A sabedoria mística não é a beatitude, a perfeita possessão espiritual da realidade divina. Mas é-lhe o começo. É uma entrada desde aqui em baixo na incompreensível luz, um gosto, um toque, uma doçura de Deus que não passará, porque os sete dons continuarão na visão o que inauguram na fé.
Não podemos perdoar aos que a negam nem aos que a corrompem, extraviados por uma presunção metafísica inescusável, porque conhecendo a transcendência divina não a querem adorar.
As doutrinas que certos ocidentais nos propõem em nome da sabedoria do Oriente — não falo do próprio pensamento oriental, cuja exegese requer uma multidão de distinções e matizes — essas doutrinas arrogantes e fáceis são uma negação radical da sabedoria dos santos. Pretendendo chegar unicamente pela metafísica à contemplação suprema, buscando a perfeição da alma fora da caridade, cujo mistério lhes permanece impenetrável, substituindo a fé sobrenatural e a revelação de Deus através do Verbo encarnado — unigenitus Filius, qui est in sinu Patris, ipse enarravit [8] — por uma pretensa tradição secreta herdada de desconhecidos mestres do Conhecimento, elas mentem, porque dizem ao homem que ele pode agregar algo a suas dimensões naturais e entrar por si mesmo no sobre-humano. Seu hiperintelectualismo esotérico, feito para suplantar a verdadeira metafísica, não passa de miragem, não só enganosa mas perniciosa. Conduz a razão ao absurdo, a alma à segunda morte.
Ainda de outra maneira a vã filosofia pode ser inimiga da sabedoria: já não suprimindo a sabedoria dos santos ante a metafísica, mas misturando-a em maior ou menor grau e, nos casos mais graves, confundindo-a decididamente com a metafísica, o que é corromper-lhe profundamente a natureza. É assim que um espírito atento e penetrante, após quinze anos de buscas fervorosas, e de todo o esforço da mais minuciosa e apaixonada erudição, pôde desfigurar tragicamente o herói místico cujo drama interior se propusera a traçar. Ai! como se um filósofo, com base em informação história ainda que exaustiva, e pela mais intuitiva simpatia bergsoniana, pudesse penetrar o interior de um santo! reviver em si João da Cruz! Todas as falsas chaves da filosofia se quebram, pela simples razão de que não há fechadura; nela não se entra senão através da parede. Por grande que seja a minha amizade por você, meu caro Baruzi, devo confessar que, querendo iluminar São João da Cruz a uma luz leibniziana, arrancando-lhe à contemplação o que foi a vida de sua vida: a graça infusa e a operação de Deus nele, fazendo dele não sei que gigante malogrado da metafísica vindoura, preso ainda às superstições “extrinsecistas”, mas visando antes de tudo a adquirir, por um processo de despojamento onde o espírito do homem faz todo o trabalho, uma compreensão intelectual de Deus cada vez menos grosseira, e conseguindo-o tão bem que nos conduz “de certo modo para além do cristianismo” [9], você traçou uma imagem do santo que ele mesmo teria tido por abominação, e cuja gritante falsidade, unida a muito zelo, é para nós motivo de assombro e dor [10]. O justo que você descreve não vive da fé. Este teópata não sofre as coisas divinas, mas um mal de Sorbonne.
A contemplação dos santos não está no plano da metafísica, mas no plano da religião. Tal suprema sabedoria não depende do esforço do intelecto em busca da perfeição do saber, mas do dom do homem inteiro em busca de uma retidão perfeita com respeito a seu Fim. Ela não tem nada que fazer com o “embrutecimento” aconselhado por Pascal aos orgulhosos (se ela está aí, é porque o orgulho já caiu); mas conhece tão bem, que já não sonha em conhecer. Tal saber, o mais alto, supõe que se tenha renunciado ao saber.
Não é para conhecer que os santos contemplam. É para amar. E não amam para amar, mas para o Amor d’Aquele que eles amam. A própria união com Deus que o amor requer, é para Deus mesmo, o primeiro amado, que aspiram a ela, não se amando a si mesmos senão para Ele [11]. O fim dos fins não é para eles fazer exultar sua inteligência e sua natureza, e por conseguinte deter-se em si mesmos. É fazer a vontade de Outro, contribuir para o bem do Bem [12]. Não buscam sua alma. Perdem-na, já não a têm. Se, entrando no mistério da filiação divina, e tornando-se algo de Deus, ganham uma personalidade transcendente, uma independência e uma liberdade de que nada se aproxima no mundo, é porque esquecem tudo isso para que o Bem-Amado, e não eles próprios, viva neles.
As antinomias que os “novos místicos” [13] descobrem no misticismo tradicional — por fazerem dele uma idéia artificial, viciada pelos solenes preconceitos modernos com relação à vida do espírito — eu concederia tranqüilamente que caracterizam, com efeito, muitos pseudomisticismos filosóficos. (E o próprio novo misticismo terá muita dificuldade em escapar a elas.) Referidas a uma via mística autêntica, perdem toda a significação. Aqui nem o “querer criador” que busca a exaltação direta na pura aventura e uma superação sem fim, nem o “querer mágico” que busca a exaltação de si na dominação do mundo e uma possessão acabada. Aqui o amor (não esqueçam nossos filósofos que ele, e somente ele, é que faz tudo), aqui a caridade, que se vale do conhecimento — que ela mesma, sob a ação do Espírito de Deus, torna saboroso e presencial — para aderir mais plenamente ao Amado. Aqui a alma não quer exaltar-se, e não quer abolir-se: quer unir-se a Aquele que a amou primeiramente. Pois aqui há um Deus que não é um nome mas uma realidade, há um Real e até um Sobre-real que existe desde sempre, antes de nós, sem nós; apreensível não humanamente nem angelicamente, mas divinamente, e que para isso nos diviniza; um Sobre-espírito cuja apreensão não limita mas ilimita o espírito finito, Vós, o Deus vivo, o nosso Criador. Antes de discutir acerca do misticismo, você, John Brown, tem de resolver uma questão capital: M. Pierre Morhange foi criado?
A contemplação dos santos não procede do espírito do homem. Procede da graça infusa. (Falemos teologia, já que não se pode responder às questões que atormentam nossa época sem recorrer às noções da ciência sagrada.) Digo que a contemplação é, sim, nosso fruto perfeito, mas enquanto nascidos da Água e do Espírito. Obra sobrenatural por essência, que indubitavelmente emana de nosso fundo substancial e de nossos poderes naturais de atividade, mas enquanto nossa substância e atividade mesmas, passivas ante o Deus Todo-poderoso, são por Ele, e pelos dons que Ele implanta nelas, sobre-elevadas com relação a um objeto divino, absolutamente inacessível como tal às meras forças da natureza. [14] Obra superiormente pessoal, e livre e ativa, vida que jorra para a eternidade, mas que é para nós como um não-obrar e uma morte, porque, sobrenatural não somente por seu objeto mas também por seu modo próprio de proceder, emana de nosso espírito movido unicamente por Deus, e depende da graça operante onde toda a iniciativa é de Deus. E, porque a fé é a raiz e o fundamento de toda a vida sobrenatural, tal obra não é concebível sem a fé, “fora da qual não há meio próximo e proporcionado” da contemplação. [15]
Enfim, a contemplação dos santos não é somente para o divino amor; é também por ele. Ela não supõe somente a virtude teologal da Fé, mas também a virtude teologal da Caridade, e os dons infusos da Inteligência e da Sabedoria, que não existem na alma sem a caridade. A esse mesmo Deus percebido pela fé na escuridão, e como à distância, pois que pela inteligência há distância quando não há visão, o amor como tal o alcança imediatamente em si mesmo, unindo-nos de coração àquilo mesmo que está oculto na fé; e são as coisas divinas assim arraigadas me nós pela caridade, e Deus tornado nosso pela caridade, que a sabedoria mística, sob uma moção e uma regulação atual do Espírito Santo, experimenta por e no amor como se dando a nós em nós, e conhece efetivamente, “em virtude de uma incompreensível união” [16], numa noite superior a qualquer conhecimento diverso, a qualquer imagem e a qualquer idéia, como transcendendo ao infinito tudo o que jamais poderão pensar todas as criaturas. Vere tu es Deus absconditus, Deus Israel Salvator [17]. Sabedoria que alcança a Deus como Deus oculto, como Deus salvador, e tanto mais salvador quanto mais oculto, sabedoria secreta que purifica a alma em segredo. Permanecendo embora verificável pela teologia [18], dependendo embora, como de suas condições e bases humanas, das múltiplas noções e signos conceptuais onde a Verdade divina se manifesta à nossa inteligência; sem nada desprezar dos dogmas revelados, muito pelo contrário! e conhecendo melhor que pelos conceitos o mesmo que as fórmulas conceptuais do dogma comunicam à inteligência humana, como não ultrapassará ela qualquer noção diversa e qualquer signo exprimível para aderir assim, na experiência do amor, à realidade mesma que é o objeto primeiro da fé? Ei-nos no antípoda de Plotino. Não se trata aqui de elevar-se intelectualmente para além do inteligível, de subir pela metafísica e sua escada dialética, sabiamente regulada até à abolição — ainda natural — da intelecção natural, a um sobre-inteligível onde extasiar-se angelicamente. Trata-se de elevar-se amorosamente para além do criado, de renunciar a si mesmo e a tudo para ser arrebatado pela caridade, na noite transluminosa da fé, sob a operação divina, até a um soberano conhecimento sobrenatural do sobrenatural ilimitado, onde nos transformarmos em Deus pelo amor. Porque “definitivamente não fomos criados senão para este amor”.[19]
Não, a metafísica não é a porta da contemplação mística. Esta porta é a humanidade de Cristo, por quem recebemos graça e verdade. Eu sou a porta, disse Ele mesmo. Se alguém entrar por mim, será salvo; e entrará, e sairá, e encontrará pastagens. Entrada por ele, a alma ascende e penetra na obscura e nua contemplação da Divindade pura, e retorna para fora na contemplação da santa Humanidade. E aqui como lá encontra “pastos” e se nutre de seu Deus.[20]
7. Em todo e qualquer signo, conceito ou nome, há duas coisas que considerar: o objeto mesmo que ele faz conhecer, e a maneira como faz conhecer. Em todos os signos de que se vale nossa inteligência para conhecer a Deus, a maneira de significar é deficiente e indigna de Deus, sendo proporcionada não a Deus, mas ao que não é Deus, ao modo como existem nas coisas as perfeições que em estado puro preexistem em Deus. Da mesma maneira imperfeita como as coisas criadas representam a Deus, de Quem procedem, assim nossas idéias, que apreendem antes de tudo e diretamente o criado, fazem conhecer a Deus. A perfeição que elas significam, e que pode — se for de ordem transcendental — existir tanto no estado incriado como no estado criado, é-lhes essencial significá-la tal qual existe no estado criado, limitado, imperfeito. Por isso também todos os nomes com que nomeamos a Deus, conquanto designem uma só e mesma realidade indizivelmente uma e simples, não são todavia sinônimas, já que significam a maneira como estão participadas e divididas nas criaturas as perfeições que preexistem em Deus em estado de soberana simplicidade. Deus é a Bondade subsistente como a Verdade subsistente e o Ser mesmo subsistente, mas a Idéia da Bondade, da Verdade, do Ser, se subsistisse em estado puro, não seria Deus.
Segue-se daí que os nomes e conceitos que de modo próprio convêm a Deus guardam, ao aplicar-se a Ele, todo o seu valor inteligível e toda a sua significação: o significado está em Deus todo inteiro e com tudo o que O constitui para a inteligência (“formalmente”, dizem os filósofos); ao dizermos Deus é bom, qualificamos intrinsecamente a natureza divina, e sabemos que há nela tudo quanto a bondade implica necessariamente. Mas nesta perfeição em ato puro — que é Deus mesmo — há ainda infinitamente mais que o significado por seu conceito e seu nome. É de um modo que excede ao infinito nossa maneira de conceber que ela existe em Deus (“eminentemente”, dizem os filósofos). Sabendo que Deus é bom, ignoramos ainda o que é a Bondade divina, pois Ele é bom e verdadeiro como nenhum outro o é, verdadeiro como nenhum outro o é, e é como nada do que conhecemos. Assim”, diz Santo Tomás, “o nome de sábio, quando se diz de um homem, descreve e envolve de certo modo a coisa significada: mas já não sucede o mesmo quando dito de Deus; ele deixa então a coisa significada como incontida e incircunscrita, e excedendo a significação do nome.”[21]
Qualquer conhecimento de Deus por idéias ou conceitos, idéias adquiridas como na metafísica e na teologia especulativa, ou infusas como na profecia — qualquer conhecimento puramente intelectual de Deus que não seja a Visão beatífica, conquanto possa ser absolutamente verdadeiro, absolutamente certo, e constituir saber autêntico, e desejável sobre todos, permanece pois irremediavelmente deficiente, desproporcionado, por seu modo captar e significar, ao objeto conhecido e significado.
É claro que se nos pode ser dado conhecer a Deus não ainda sicuti est, por sua essência e na visão, mas ao menos segundo a transcendência mesma de sua deidade, valendo-nos de um modo de conhecer que convém ao objeto conhecido, tal conhecimento não poderá ser obtido por via puramente intelectual. Transcender toda e qualquer maneira de conceber permanecendo no campo da inteligência e, por conseguinte, do conceito, é uma contradição de termos. Há que passar pelo amor. Só o amor, digo o amor sobrenatural, pode operar essa ultrapassagem. A inteligência não pode aqui em baixo transcender a todo e qualquer modo senão numa renúncia-ao-saber em que o Espírito de Deus, usando da conaturalidade da caridade, e dos efeitos produzidos na afecção pela união divina, comunica à alma uma experiência amorosa daquilo mesmo de que não se aproxima nem se pode aproximar nenhuma noção. “Então, desprendida do mundo sensível e do mundo intelectual, a alma entra na misteriosa obscuridade de uma santa ignorância, e, renunciando a todo e qualquer dado científico, perde-se n’Aquele que não pode ser visto nem apreendido; dada toda inteira a esse soberano objeto, sem pertencer a si mesma nem a outros; unida ao desconhecido pela mais nobre porção de si mesma, e em razão de sua renúncia à ciência; enfim, bebendo nesta ignorância absoluta um conhecimento que o entendimento não poderia alcançar.” [22]
8. Parece que o curso dos tempos modernos está sob o signo da disjunção entre a carne e o espírito, ou do deslocamento progressivo da figura humana. Está muito claro que a passagem da humanidade pelo regime do Dinheiro e da Técnica [23] marca uma materialização progressiva da inteligência e do mundo. Por outro lado, e como em compensação desse fenômeno, o espírito, de que prescinde cada vez mais nossa atividade discursiva e social, e que se vê, assim, dispensado de assegurar muitas funções orgânicas da vida humana, experimenta uma espécie de libertação — ao menos virtual. “A fotografia libertou a pintura” — tais palavras de Jean Cocteau se podem aplicar a todos os domínios. A imprensa libertara as artes plásticas da função pedagógica que lhes incumbia no tempo das catedrais. As ciências dos fenômenos libertaram a metafísica da preocupação de explicar as coisas da natureza sensível, e de tantas ilusões que dela se tinham seguido para o otimismo grego. Desta purificação da metafísica temos de nos felicitar. Mas reduz-se-nos o regozijo quando constatamos que na ordem prática o governo das coisas, à medida que requer da inteligência trabalho material mais pesado, se separa mais da vida que ela leva acima do tempo. A terra já não tem necessidade de anjo motor; o homem impele-a com a força dos braços. O espírito ascende ao céu.
O homem, todavia, é carne e espírito não ligados por um fio, mas unidos em substância. Que as coisas humanas cessem de ser à medida do composto humano, pedindo umas seu número às energias da matéria, as outras às exigências de uma espiritualidade desencarnada, é para o homem pavorosa tribulação metafísica. Pode-se suspeitar que a figura deste mundo passará no dia em que essa distensão seja tal que nosso coração acabe por explodir.
Quanto às coisas mesmas do espírito, sua “libertação” corre o risco de ser ilusória — o que é bem pior que a servidão. As travas impostas pelo serviço do homem eram-lhe boas; constrangiam-nas, mas davam-lhes um contrapeso natural. Angelização da arte e do conhecimento? Toda essa pureza possível se vai perder num brutal frenesi? Ela não se encontrará, não existirá verdadeiramente senão no aprisco do Espírito. Onde estiver o Corpo, aí se congregarão as águias. Se a cristandade de outrora desapareceu, ela, a Igreja do Cristo, continua a elevar-se, liberta também ela pouco a pouco liberta,liberta do cuidado das cidades que a rechaçam, da providência temporal que ela de pleno direito exercia para sarar-nos as feridas. Despojada, despida de tudo, quando fugir da solidão, levará consigo tudo o que no mundo tiver permanecido não somente de fé e de caridade, e de contemplação verdadeira, mas também de filosofia, de poesia e de virtude, e que será mais belo que nunca.
9. O formidável interesse da crise atual decorre de que, mais universal que qualquer outra, ela a todos nos obriga a escolhas decisivas. Eis-nos chegados à linha de divisão das águas. Por causa das prevaricações do Ocidente, que abusou das graças divinas e deixou se perdessem os dons que era preciso fazer frutificar para Deus, vê-se que, já não mantida sob a ordem da caridade, a ordem da razão se corrompeu em todas as partes, e já não serve para nada. O mal racionalista introduziu a discórdia entre a natureza e a forma da razão. Tornou-se desde então demasiado difícil manter-se no humano. É preciso pôr-se acima da razão, e por ela ainda, ou abaixo da razão, e contra ela. Ora, só as virtudes teologais e os dons sobrenaturais estão acima da razão. De todos os lados — mesmo entre os novos humanistas ou entre os partidários do materialismo dialético (como noutro tempo entre os barrèsianos) — ouve-se clamar: espírito, espiritualidade! Mas que espírito invocai? Se não for o Espírito Santo, dá no mesmo invocar o espírito de madeira ou o espírito de vinho. Todo o suposto espiritual, todo o suposto supra-racional que não resida na caridade não serve, afinal de contas, senão à animalidade. O ódio da razão nunca será mais que a insurreição do gênero contra a diferença específica. O devaneio é todo o contrário da contemplação. Se a pureza consiste em desvincular-se totalmente da vida segundo o sentido de seus mecanismos, ela está mais no animal que no santo.
O mundo, o mundo por que Cristo não orou, já fez antecipadamente sua escolha. Livrar-se da forma rationis, fugir para longe de Deus, fugir, num impossível suicídio metafísico, da ordem cruel e salvadora estabelecida pela Lei eterna, tal é o anelo que faz pulsar a carne do velho homem, tal era o anelo do Velho dos velhos, quando caía do céu como um raio. Para expressá-lo no absoluto, tão plenamente quanto possível a um ser que, na maior parte do tempo, não sabe o que faz, precisa-se de uma espécie de heroísmo. (O diabo tem seus mártires.) Testemunho sem promessa, oferecido ao que está mais que morto... Quanto à grande massa dos homens, a julgar pelas condições ordinárias da natureza humana, poder-se-ia crer sem dificuldade que seguirá o mesmo pendor, mas sem vontade nem coragem, anestesiada pelo ideal. Este pendor é tão fácil!
Seria um erro, no entanto, julgar somente pela natureza. Aí está a graça, que reserva surpresas. Enquanto este velho mundo continuar a rolar pelo pendor, eis o verdadeiro novo, o secreto e invencível impulso de seiva divina no Corpo místico que perdura e não envelhece, o bem-aventurado despertar das almas sob o signo da Virgem e do Espírito. Ó Sabedoria, que atinges com vigor de um pólo ao outro do mundo, e que tornas um os extremos! Ó promessa que constituis a beleza destes tempos de miséria, e nos enche de júbilo! Infiéis à sua vocação, as nações batizadas separam-se da Igreja, fazem blasfemar por todas as partes o nome de Cristo, chamando civilização cristã ao que não é mais que seu cadáver: a Igreja ama as nações, mas não tem necessidade delas; elas é que têm necessidade da Igreja. Foi para seu bem que, valendo-se da única cultura por que a razão humana esteve perto de triunfar, a Igreja tentou por muito tempo impor à matéria terrestre uma forma divina, e erguer e manter assim, em perfeição, sob a dulcíssima ordem da graça, a vida do homem e da razão. Se a cultura européia vier a perigar, a Igreja salvará o essencial, e saberá perfeitamente bem fazer elevar-se até Cristo tudo quanto se possa salvar das outras culturas. Ela ouve remexer-se no fundo da história um mundo imprevisto, que a perseguirá sem dúvida tanto como o antigo (não tem ela a missão de sofrer), no qual porém encontrará novas possibilidades de ação.
Se pretende significar que a Europa não seria nada sem a fé, e que sua razão de ser foi, e segue sendo, dispensar ao mundo a fé, tem razão Hilaire Belloc em dizer que a Europa é a fé. Mas, absolutamente falando, não! A Europa não é a fé, e a fé não é a Europa; a Europa não é a Igreja, e a Igreja não é a Europa. Roma não é a capital do mundo latino, Roma é a capital do mundo. Urbs caput orbis. A Igreja é universal porque nasceu de Deus; todas as nações têm lugar em seu regaço, os braços em cruz de seu Mestre se estendem por sobre todas as raças e todas as civilizações. Ela não oferece aos povos os benefícios da civilização, mas sim o sangue de Cristo e a Beatitude sobrenatural. Parece que se prepara em nossos dias uma espécie de epifania admirável de sua catolicidade, de que o desenvolvimento progressivo, nos países de missão, de um clero indígena e de um episcopado indígena se pode ver como signo precursor.
Por muito tempo adormecido à margem da história, e contagiado agora por nossas loucuras, o Oriente está tão enfermo como o Ocidente. Mas aqui como lá se verá, por todas as partes onde a fé viva deitar raízes, a adesão ao que está verdadeiramente acima da razão, à Verdade incriada, à sabedoria dos santos, conduzir ao mesmo tempo (não, certamente, sem nenhum labor) à restauração da ordem mesma da razão, exigida a título de condição pela vida sobrenatural. Seguem assim, em harmonioso concerto, Evangelho e filosofia, mística e metafísica, divino e humano. Não é de um europeu, mas de um bengali, o grande projeto de Brahmanandav, retomado por seu discípulo Animananda: a fundação em Bengala de uma congregação contemplativa, cujos membros, religiosos mendicantes à maneira dos sannyasis hindus, levariam a toda a Índia um exemplo indiano de santidade católica, e, sem ignorar o vedanta, apoiariam sua vida intelectual na doutrina de Santo Tomás de Aquino. [24] Anoto esta homenagem à virtude do tomismo. Dom oferecido ao mundo inteiro pela cristandade medieval, não é ele de um continente nem de um século, mas universal como a Igreja e a verdade.
10. Aos espíritos que sentem estar tudo perdido, e que esperam o inesperado, não lhes menosprezarei jamais a angústia nem a espera. Mas o que importa saber é o que em verdade esperam: o Anticristo ou a parusia? Nós outros esperamos a ressurreição dos mortos, e a vida do século vindouro. Sabemos o que esperamos, e que isso ultrapassa qualquer inteligência. Há uma diferença entre não saber o que se espera e saber que o que se espera não pode ser concebido.
“Pagão ainda, Adriano perguntou aos mártires: ‘Que recompensa esperais vós?’ ‘Nossos lábios’, respondera, eles, ‘não o pode dizer, nem o ouvido o pode perceber.’ ‘Não haveis, pois, aprendido nada acerca dela? Nem pela lei nem pelos profetas? Nem por nenhuma outra escritura?’ ‘Os profetas mesmos não a conheceram como seria necessário; pois não eram eles senão homens que adoravam a Deus, e o que tinham recebido pelo Espírito Santo diziam-no em palavras. Mas desta glória está escrito: O olho não viu, o ouvido não ouviu, e ao coração do homem não chegou, o que o Senhor preparou para os que O amam.’
“Ouvindo isto, Adriano saltou para o meio deles, e disse: ‘Contai-me entre os que confessam a fé com estes santos, que também eu sou cristão.’’ [25]
(Distinguer pour Unir ou Les Degrés du Savoir, Paris, Desclée de Brouwer, 1946, 5.a edição, revista e aumentada, Capítulo Primeiro, pp 4-37.)
[1] Gên. 32, 29.
[2] DIONÍSIO, De Divinis Nominibus, I, 6 (lição 3 de Santo Tomás. Cf. São Paulo, Efés. 1, 21).
[3] Ramón FERNÁNDEZ, “L'Intelligence et M. Maritain”, Nouv. Revue Française, 1° de junho de 1925.
[4] PORFÍRIO, Vida de Plotino, II, 25. Mais adiante (cap. 10), Porfírio nos conta como um sacerdote egípcio chegado a Roma propusera a Plotino fazê-lo ver o espírito que o habitava, e como invocara tal demônio, que por fim se revelou um deus. “Não se pôde”, acrescenta, “interrogar o demônio nem o ter muito tempo presente à vista, porque um de seus amigos, espectador da cena, a quem se tinham confiado os pássaros e que os tinha na mão, sufocou-os de alegria ou talvez de terror. Plotino estava pois assistido por um dos demônios mais divinos; constantemente dirigia para ele o olho divino de seu espírito. Eis o motivo por que escreveu o tratado Acerca do demônio que recebemos de herança, onde se esforça para fornecer a razão das diferenças entre os seres que assistem o homem.”
[5] “Reitoras deste mundo”. [N. do T.]
[6] “Por reflexo em enigma”. [N. do T.]
[7] Pela visão a alma devém Deus “intencionalmente” (secundum esse intelligibile), não substancialmente, mas com uma união real (secundum rem), pois que é pela essência infinita de Deus mesmo atuando imediatamente sobre a inteligência na ordem inteligível que ela o alcança e vê. A inteligência sobrenaturalizada pela luz da glória é, assim, como a mão pela qual os bem-aventurados alcançam a Deus.
[8] “O Filho unigênito, que está no seio do Pai, Ele mesmo é que o deu a conhecer” (João 1, 18).
[9] Jean BARUZI, Saint Jean de la Croix et le problème de l'expérience mystique, 2ª. ed., p. 230.
[10] Cf. Dom Phil. CHEVALLIER, Vie Spirituelle, maio de 1925, e R. GARRIGOU-LAGRANGE, ibid., julho-agosto de 1925; e o opúsculo de Roland DALBIEZ, Saint Jean de la Croix d’après M. Baruzi (ed. da Vie Spirituelle).
[Na segunda edição de seu livro, Jean Baruzi teve o mérito de suprimir certas passagens incongruentes, e seu prefácio indica que ele hoje compreende melhor as dificuldades e a amplitude dos problemas que trata. Não obstante, no fundo, seu pensamento absolutamente não mudou. Não nos diz ele ainda (p. 674) que, “quando o místico alcança essa pureza noética, se aparta do que L. Brunschvicg, em profundas observações [...], chama o ‘psiquismo naturalista’ e volta, pelo contrário, ao ‘idealismo intelectualista’”? — Desconhecendo a essência mesma da mística de São João da Cruz, não é de estranhar que a aproxime (segundo analogias acidentais tomadas por analogias de fundo, pp. 676-677) da mística de Plotino (a qual, porém, está distante do que M. L. Brunschvicg chama o “idealismo intelectualista”), e que considere que, independentemente de qualquer problema de influência, João da Cruz reproduz o neoplatonismo “pelo mais secreto movimento de seu pensamento” (p. 677).
No prefácio dessa segunda edição, nega ter tido alguma vez a intenção de “trasladar o plano místico a um plano metafísico" (p. III) ou de representar “João da Cruz como absorvendo-se numa Deidade que se oporia ao Deus vivo do cristianismo” (p. XIII). De nossa parte, absolutamente não são suas intenções o que criticamos, e sim sua filosofia e as interpretações que inevitavelmente ela lhe sugere.
Se lealmente assinalou que “esta gênese divina se cumpre no interior do Cristianismo” (op. cit., p. 656), todo o seu livro foi concebido sobre o tema de que tudo se passou de maneira contingente (quanto à experiência mística mesma de João da Cruz): de fato, tal experiência é cristã, mas sucede que nela se produziu uma combinação, uma síntese, entre o que é essencial e necessariamente da mística e o que brota do cristianismo. “A alma, todavia, é sem limite, e Deus mesmo é sem raias. Mas a alma desnuda e o Deus sem modo combinam-se aqui com a alma tocada pela graça mística, com o Deus em três Pessoas do Cristianismo teológico. [...] A síntese cumpriu-se nele, mais vivamente que em qualquer outra mística católica talvez, porque a um imenso amor de um Deus que é Pai, Filho e Espírito se agregou a adesão pura à Divindade essencial, à ‘Deidade’, e, conquanto o termo não figure em sua língua — ao Um.” (Pp. 674-675. Os grifos são nossos.) Cf. mais adiante, cap IX, § 16.
É perigosa tentação para um filósofo, quando ele retraça e repensa a história de outro espírito, crer que lhe compete conduzi-lo à plena verdade de sua natureza, à qual supõe que ele próprio não soube chegar. A história recorda ao filósofo que ela não tem outro Deus senão Deus, e que não está em nosso poder reengendrar as Idéias criadoras. Igualmente, é arriscado impor a obediência de seus próprios deuses ao herói que se admira. Aos olhos de Baruzi, o impulso mais autêntico de João da Cruz tendia a um puro conhecimento, que, transcendendo ao infinito, por uma incessante autodestruição do saber, toda e qualquer condição mental e todo e qualquer dado perceptível, nos faria transcender nossa natureza, não, certamente, entrando na espessura de realidades sobrenaturais por alcançar misticamente segundo seu próprio modo, mas entrando somente num modo (sem modos) de conhecer (cf. pp. 454, 600-601, 612-613), num reino de não-saber superior à nossa maneira de experimentar e de compreender, e onde conheceríamos melhor as mesmas realidades que são o objeto da metafísica e da filosofia, “o Ser” (p. 448), “as coisas” (p. 584), “o universo” (pp. 584, 685), “o Um divino” (p. 675). (Nas pp. 639 e 645 se trata do “êxtase cósmico” e da “descoberta cósmica”.) Baruzi separa a “fé mística” da fé dogmática (448, cf. pp. 510511, 600-601, 659), o que é diretamente contrário ao pensamento e à experiência de João da Cruz; e, se não ignora o papel do amor nas mística deste, reduz singularmente este papel e não lhe mostra o alcance; sua exposição dá irremediavelmente a impressão de que o amor seria nesta mística, como no neoplatonismo, uma espécie de nisus, de esforço metafísico destinado a nos fazer “entrar num mundo novo” (p. 611), e mero meio de uma “noética” transcendente; ignora, assim, o que é mais pessoal e central em São João da Cruz, ou seja, a soberana e vital certeza da primazia do amor.
Algumas linhas de Jean Baruzi (Note finale da segunda edição, p. 727) nos obrigam a dar essas precisões. Se o criticamos vivamente, é porque a nossos olhos os problemas que ele trata, e que para ele também têm importância capital, não são do domínio da pura erudição, pois envolvem verdades essenciais; ademais, a estima mesma em que, apesar de todos as nossas críticas, temos o grande esforço de Baruzi faz-nos deplorar que tanto labor humano lhe termine por mascarar a mensagem do santo que ele quis homenagear.]
[11] Então o amor de si secundum rationem proprii boni [em razão do bem próprio] não desaparece, mas seu ato dá lugar ao do amor de caridade, em que o homem se ama a si mesmo propter Deum et in Deo [por Deus e em Deus] (Sum. Theol., II-II, 19, 6; 19, 8, ad 2; 19, 10), e que, rematando-o e elevando-o, contém em si o amor natural que cada um dirige a seu ser e, mais que a seu ser, a Deus (I, 60, 5; II-II, 25, 4).
[12] Cf. Santo TOMÁS DE AQUINO, Sum. Theol., II-II, 26, 3, ad 3: “Hoc quod aliquis velit frui Deo, pertinet ad amorem, quo Deus amatur amore concupiscentiae; magis autem amamus Deum amore amicitiae, quam amore concupiscentiae; quia majus est in se bonum Dei, quam bonum, quod participare possumus fruendo ipso; et ideo simpliciter homo magis diligit Deum ex charitate, quam seipsum” [Se alguém quer desfrutar de Deus, é em virtude do amor por que Deus é amado com amor de concupiscência; porém mais amamos a Deus com o amor de amizade que com o de concupiscência; pois é maior bem Deus em si que o bem de que, ao desfrutar d’Ele, podemos participar; e por isso, simplesmente, o homem ama mais a Deus pela caridade que a si mesmo]. Cf. ainda CAJETAN, in II-II, 17, 5.
[13] Cf. Henri LEFEBVRE, “Positions d’attaque et de défense du nouveau mysticisme”, Philosophies, março de 1925.
[14] Os filósofos que, a propósito da doutrina da “potência obediencial”, falam de sobrenatural aplicado não leram jamais os teólogos tomistas ou, se os leram, não os compreenderam. Cf. JOÃO DE SANTO TOMÁS, Cursus Theologicus, I. P., q. 12, disp. 14, a. 2 (Vives, t. II).
[15] Cf. São JOÃO DA CRUZ, Subida ao Monte Carmelo, II, VIII. Ver mais adiante, cap. VIII, 16.
[16] DIONÍSIO, De Divinis Nominibus, VII, 3.
[17] “Tu verdadeiramente és um Deus escondido, ó Deus de Israel, ó Salvador” (Isaías 45, 15).
[18] É ao menos nos enunciados comunicáveis por que a linguagem humana traduz a experiência mística — ou seja, no que já não é, propriamente falando, a experiência mística em si, mas, antes, a teologia de que está impregnada (ver mais adiante, cap. VIII, § 13) — que a sabedoria mística é verificável pela teologia. O teólogo julga, assim, o contemplativo não precisamente enquanto contemplativo, mas enquanto o contemplativo desce ao campo da expressão conceitual e da comunicação racional. No mesmo sentido, um astrônomo pode julgar um filósofo que fala de astronomia.
Mas em si mesma a sabedoria mística é superior à sabedoria teológica, e é o espiritual que, não, sem dúvida, na ordem da doutrina, mas na da experiência e da vida, julga o teólogo especulativo. Spiritualis judicat omnia et a nemine judicatur [“o espiritual julga todas as coisas; e ele não é julgado por ninguém”] (São Paulo, I Cor. 2, 15).
Quanto a julgar, com efeito, da substância secreta e incomunicável da experiência mística em si, e a discernir os espíritos, tal não é tarefa própria do teólogo especulativo, mas dos espirituais mesmos, e do teólogo enquanto é ele mesmo um espiritual e possui a ciência prática (ver cap. VIII, §§ 7 e 8) das vias místicas. “Tal é, com efeito”, escreve João de Santo Tomás, “a regra apostólica: Não queirais crer em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus (I João 4). E ainda: Não desprezeis as profecias. Examinai tudo; abraçai o que for bom (São Paulo, I Tessal., 5). (...) Este exame deve normalmente efetuar-se em comum...
“Tal não quer dizer que nisto o dom do Espírito Santo esteja submetido à virtude de prudência, ou lhe seja inferior, ou receba sua determinação dela, pois os que julgam dessas revelações ou dessas verdades não o devem fazer segundo as razões da prudência humana, mas segundo as regras da fé a que estão submetidos os dons do Espírito Santo, ou segundo os mesmos dons, que se podem encontrar mais excelentemente em uns que em outros. Mas, se, não obstante, se empregam razões humanas ou teológicas no exame dessas espécies de coisas, aquelas são consideradas de modo secundário, e somente como servindo ministerialmente para melhor explicar o que concerne à fé, ou ao instinto do Espírito Santo.
“É por isso que no exame das coisas espirituais e místicas há que recorrer não somente a teólogos escolásticos, mas também a homens espirituais que possuam a prudência mística, que conheçam as vias espirituais e que saibam discernir os espíritos”(JOÃO DE SANTO TOMÁS, Os Dons do Espírito Santo, V, 22, obra traduzida do latim para o francês por RAÏSSA MARITAIN, pp. 201-202).
[19] São JOÃO DA CRUZ, Cântico Espiritual, segunda redação, estr. 28 (19), Silv., III, 362.
[20] Cf. Santo TOMÁS DE AQUINO, Quodlib. VIII, a. 20; JOSEPHUS A SPIRITU SANCTO, Cursus theologiae mystico-scholasticae, Disp. prima prooemialis, q. 2, I (edição 1924, Beyaert, Bruges, t. , p. 117).
[21] Santo TOMÁS, Sum. Theol., I, 13, 5.
[22] DIONÍSIO, Theologia mystica, cap. I, 3.
[23] De per si as técnicas materiais deveriam abrir caminho para uma vida mais desprendida da matéria, mas por culpa do homem tendem de fato a oprimir a espiritualidade. Quererá isto dizer que é necessário renunciar à técnica, ou entregar-se a vãos lamentos? Tal jamais foi nosso pensamento. Mas é preciso que a razão imponha aqui sua regulação humana. E, se ela o consegue sem ter de recorrer a soluções puramente despóticas, e inumanas por outros motivos, a materialização de que falamos terá sido superada, ao menos por certo tempo. Não pretendemos de maneira alguma enunciar aqui a lei de uma curva necessária dos acontecimentos; tentamos somente sublinhar, do ângulo em que nos encontramos, a significação tendencial da curva seguida por eles até o presente, e que a liberdade humana pode retificar.
[24] Michel LEDRUS, S. J., L’Apostolat Bengali, Louvain, 1924. — Na China, uma congregação católica totalmente chinesa, os Irmãozinhos de São João Batista, foi fundada pelo R. P. Lebbe em 1928. De modo geral, os que melhor conhecem a China pensam que o melhor de sua antiga herança espiritual não encontra hoje senão no catolicismo uma oportunidade de escapar ao materialismo primário que a juventude vai buscar no Ocidente.
[25] BONINUS MOMBRITUS, Sanctuarium seu vitae sanctorum, nova edição publicada pelos monges de Solesmes, Paris, Fontemoing, 1910: Passio Sancti Adriani M. cum aliis 33 MM.