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Editorial: O Brasil na Encruzilhada

Editorial da Revista Permanência 307

Na medida em que se aproxima o dia da eleição presidencial no Brasil, aumenta a inquietação, ou devemos dizer, certa angústia brota no coração do brasileiro. Terá sido em vão vivermos quatro anos de um governo que, em muitos pontos, pensa e age como nós pensamos e agimos? Os brasileiros serão tão levianos a ponto de deixarem escapar a oportunidade de consolidar o que o atual governo iniciou?

Pobre governo! Infelizmente os bravos conservadores que estão em volta do presidente Jair Bolsonaro, e ele próprio, não conseguem elevar seu conhecimento e sua ação muito além da noção de liberdade e de democracia liberal que move a vida política dos países ocidentais. O vazio liberal não lhes permite fundamentar o seu governo sobre bases sólidas e duradouras, pois insiste em manter aberta a possibilidade do retorno do mal que eles mesmos combateram.

É muito impressionante o fato de Gustavo Corção ter se convertido ao catolicismo em 1939 tendo viva a ideia de que o Liberalismo não era capaz de trazer a solução para a questão política dos povos. No seu primeiro livro, A Descoberta do Outro, ele escreve:

O subjetivismo gera duas consequências inevitáveis: o liberalismo burguês, que se protege atrás do dinheiro e da satisfação dos sentidos, e o voluntarismo fanático que sai à procura do poder. Produz trustes e revoluções; capitalismo e anticapitalismo; comunismo e anticomunismo.” [1]

Vai além da sua análise a consequência do Liberalismo; mais do que produzir o poder do capitalismo selvagem ou o poder da tirania comunista, o Liberalismo produz a deformação espiritual do homem, pois estabelece como essência aquilo que é acidente, qualidade. Ou, por outra, inebria-se diante da capacidade que temos de escolher, deixando de lado o que foi escolhido. O homem não é liberdade, mas alma espiritual racional. Conhece de modo especulativo, e ama de modo concreto; parte do fato sensível que lhe penetra alma adentro pela visão, pela audição, pelo olfato, pelo paladar ou pelo tato, gera de modo intelectual um conceito e dá nome à coisa conhecida. Uma vez a luz do conhecimento tendo sido acesa, com a inteligência iluminada pelo sol da verdade, dá-se início ao espetáculo da usina de amor, ou se preferir o leitor, do movimento de todo o ser em busca do objeto. Que se trate de uma criança correndo para o colo da mãe na leveza do seu primeiro ano de vida, ou de um pesado soldado, montanha de músculos e força, em busca da vitória na batalha, o ato espiritual que moveu a pessoa é um ato da vontade humana na busca da posse do bem.

O leitor atento perguntará: onde entra a liberdade? Entra na capacidade de mover-se pela vontade, é uma qualidade da nossa vontade. A razão humana, a diferença específica que define o ser humano – animal racional – inclui a capacidade de escolher entre a ou b, entre dois bens apresentados pela inteligência como sendo a verdade. Os pensadores antigos sabiam que essa capacidade só podia ser posta em ação se todas as opções em pauta representassem o bem. Os liberais, por sua vez, vão apresentar a liberdade total levando o homem a escolher entre o bem e o mal. Ensina a esse respeito o Papa Pio XII, falando sobre as técnicas da mídia:

 

O mal moral, certamente, não pode provir de Deus, perfeição absoluta; nem das técnicas em si mesmas, que são dons preciosos Seus; mas só do homem, que, sendo dotado de liberdade, abusa [...] e difunde conscientemente o mal moral, colocando-se do lado do príncipe das trevas e constituindo-se inimigo de Deus: "Foi um homem inimigo que fez isto".[2]

O erro do liberal é não atribuir nenhum limite a essa capacidade de escolha, elevando ao trono da alma humana aquilo que é apenas uma qualidade do seu amor, ato da sua vontade. Se somos livres, então ninguém pode limitar o meu querer, a minha vontade. Mas como a tese levaria a humanidade ao caos, perceberam a necessidade de um limite. E aconteceu, nessa passagem, um erro de direção. Não entenderam que o limite à nossa liberdade devia provir do alto. O mesmo Deus criador que fez o homem do barro e soprou vida no seu corpo inerte, impôs os limites morais que deveriam reger os atos humanos. Recusando essa dependência de Deus, os filósofos iluministas inventaram um limite rasteiro, humano, imposto pela lei dos homens, para não seguirem a Lei de Deus. E preconizaram a liberdade total, desde que não fira a paz social. Os princípios liberais foram assim forjados e levaram os homens a crer em falácias como: a minha liberdade termina onde começa a do meu vizinho. Errado! Basta elevar nosso olhar para Deus e perceberemos que a minha liberdade e a liberdade do meu vizinho terminam onde a Lei moral de Deus impõe limites para os atos humanos. E ela diz: “não matarás”, “não fornicarás”, não furtarás”, e os demais Mandamentos de Deus e da Igreja.

Pobre governo – dizíamos acima. Mesmo com suas preocupações conservadoras, mesmo compreendendo o mal que o socialismo traz a uma nação, falta ao governo Bolsonaro o conhecimento desses princípios que norteiam a ação política. Formado e envolvido no ambiente liberal da vida política, resta ao nosso Presidente alguma intuição, certo bom senso humano e bom, que o traz de volta à realidade, e o afasta dos excessos do seu próprio liberalismo. Clama pela verdade como princípio da liberdade, e nisso ele tem razão; por outro lado não escapa das garras liberais e positivistas na crença de um poder que emanaria do povo, supostamente devendo ser exercido pelo povo. E neste ponto encontramos uma dificuldade que necessita de análise.

Por um lado, sabemos que todo poder vem de Deus e os governantes exercem esse poder em nome de Deus, ou deveriam exercê-lo. E como a democracia liberal nega este princípio, até que ponto podemos agir no mundo político, adotarmos as práticas da democracia liberal, entrarmos no jogo político? Um católico conseguiria se filiar a um partido político, candidatar-se a um cargo, exercer suas nobres funções a serviço da Pátria, tendo consciência de que não seria em função dos princípios católicos, mas em nome da mesma democracia liberal que nos governa desde a Revolução Francesa?

Nesse caso ele deveria saber que está numa corda bamba, que todos os dias estará diante de situações em que o juízo político deverá ser exercido com extremo cuidado para não cair na lógica liberal e, por outro lado, não se trancar dentro de um moralismo que destruiria qualquer pretensão política. Também não lhe serviria de nada o fideísmo protestante que aponta o céu com o dedo como se a ação política pudesse ser tratada como uma comemoração de jogador de futebol.

Não temos como esconder a gravidade da situação. Ficarmos à mercê do jogo político entre socialistas de diversas colorações, ou conservadores sem formação e sem critérios mais profundos pode nos deixar abandonados, e vermos as piores e mais iníquas leis serem promulgadas, ou chefes de Estado tomarem decisões inaceitáveis. Ou ainda, juízes corruptos rebaixarem a Justiça à prostituição do dinheiro. Por outro lado, termos católicos bem formados nas funções políticas poderia servir de bloqueio do que há de pior na política atual dos povos. Mas correriam o risco de se queimarem ao entrar no fogo. Este é o impasse em que estamos!

Não podemos deixar de constatar que o resultado prático dos exemplos de católicos que se dedicaram à ação política ou social não é dos mais brilhantes. No mundo neoconservador vemos muitas ilusões e equívocos em aspectos importantes da vida humana. Equívocos que diminuem a eficácia do trabalho de almas bem-intencionadas e generosas. Quantos educadores procuram fundar escolas que tirem as crianças da deformação socializante da educação moderna! Mas a proposta desses católicos exagera muitas vezes num retorno a uma educação medieval e especulativa que não corresponde às necessidades da formação atual. Ou propõem um ensino todo ele calcado na Religião, como se o catolicismo exigisse de todos só pensar e só estudar temas e exemplos religiosos. Há um risco muito grande da corda romper no lado mais fraco onde os autores terminariam contaminados pelos falsos princípios, e os alunos perderiam a fé nos anos difíceis da adolescência, por excesso de religiosidade nos anos dóceis da infância.

No âmbito da vida política, no nosso modo de ver, de nada adianta um discurso na Câmara dos deputados que terminaria com Vivas a Cristo-Rei, e por outro lado, o político adotar princípios da democracia liberal, onde a doutrina católica é deixada de lado – et pour cause – visto que as regras do jogo exigem a aceitação da liberdade ao erro e ao mal.

Há necessidade de uma avaliação mais ponderada, onde as virtudes da Prudência e da Justiça estejam presentes de modo a equilibrar a vida. Como lá diz o Eclesiaste:[3]

“Todas as coisas têm o seu tempo, todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Há tempo de nascer, e tempo de morrer. Há tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. Há tempo de matar, e tempo de sarar. Há tempo de destruir, e tempo de edificar. Há tempo de chorar, e tempo de rir. Há tempo de se afligir, e tempo de dançar. Há tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar. Há tempo de dar abraços, e tempo de se afastar deles. Há tempo de adquirir, e tempo de perder. Há tempo de guardar, e tempo de lançar fora. Há tempo de rasgar, e tempo de coser. Há tempo de calar, e tempo de falar. Há tempo de amor, e tempo de ódio. Há tempo de guerra, e tempo de paz.”

Ao longo de tantos anos de combate percebemos que não podemos imaginar situações práticas ideais e lutarmos com excesso de energia para que elas venham a se concretizar num mundo em que elas já não são mais aceitas. Tomamos aqui o exemplo da monarquia na política dos povos.

Quando se tem a oportunidade de morar por alguns anos em outros países percebemos que a ideia da monarquia continua presente nos meios católicos conservadores. Se o ideal monárquico fosse a certeza de que um rei católico encarna o ideal do governo submisso a Nosso Senhor Jesus Cristo, mas que não há condições práticas para o retorno a esse ideal, talvez os monarquistas católicos obtivessem melhores resultados em suas campanhas e ações. Mas é completamente ilusório pensar que um rei católico poderia governar qualquer país ocidental, como um São Luiz governou a França. No máximo conseguiriam a monarquia parlamentarista onde a figura do rei já não teria o poder efetivo. E estaríamos diante de uma monarquia “democrática”.

Por razões que não podemos avaliar, Deus permitiu que os reis perdessem suas coroas, e muitas vezes perdessem suas cabeças coroadas; já não há ambiente espiritual nas almas dos povos que inclinem os homens a venerar o seu rei, a entender o quanto de paternidade existiu nos governos católicos da Idade Média. Pois não bastaria uma determinação do Congresso Nacional adotando um regime monárquico. Faltaria ainda um povo humilde e submisso à autoridade. Faltaria igualmente um mundo em que um governante conduziria seu povo pelo caminho da verdade e da justiça, sem que os organismos internacionais o tentassem impedir. Mas já não é assim há mais de duzentos anos.

O que fazer? Ao formular esta questão ocorre-nos mais uma vez esta impressionante passagem de Gustavo Corção em seu O Século do Nada, na perplexidade do grande pensador diante da decadência do mundo e da Igreja, e da única fonte de solução:

Que fazer? Lutar. Combater. Clamar. Guerrear. Mas lutar sabendo que lutamos não somente contra a carne e o mundo, mas contra o principado das trevas. É preciso gritar por cima dos telhados que, se o cristianismo se diluir, se a Igreja tiver ainda menos visível o ouro de sua santa visibilidade, se seu brilho se empanar pela estupidez e pela perversidade de seus levitas, o mundo se tornará por um milénio espantosamente, inacreditavelmente, inimaginavelmente estúpido e cruel.

Roguemos, pois, a Deus, com todas as forças; desfaçamo-nos em lágrimas de rogo e gritemos a súplica que nos estala o coração: enviai-nos Senhor, ainda este século, um reforço de grandes santos, de grandes soldados que queiram dar a vida, no sangue ou na mortificação de cada dia, pela honra e glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. Compadecei-vos, Senhor, de nossa extrema miséria, e sacudi os homens para que eles saibam quem é o Senhor![4]

 

Nesse contexto a Permanência iniciou a campanha de Rosários pelas eleições de outubro. Temos a convicção que a Divina Providência governa o mundo com sua Sabedoria e Majestade. Cabe a Deus Nosso Senhor determinar se teremos ou não a chance de fortalecer a vida das nossas famílias em torno dos princípios católicos. Para tanto será necessário mostrarmos a Deus que merecemos tamanha graça, que nosso esforço de vida espiritual, de conversão dos nossos maus costumes, da boa educação transmitida a nossos filhos, na pureza, na civilidade, na prática da única Religião revelada por Deus para a nossa salvação, merece o agrado de Deus por todo esse povo que um dia foi marcado pela fé na doutrina de Deus e de sua Igreja.

 

Mesmo se os católicos fiéis são poucos, poderão realizar grandes feitos espirituais pela oração fervorosa a Nossa Senhora Aparecida, nossa Padroeira, como pedimos na oração que está na abertura desse número da Revista Permanência.

 

Nesse momento de grandes dúvidas e angústias, não podemos nos apegar à nossa opinião pessoal sobre tal ou tal candidato, pois o que conta na vida de uma sociedade, é o Bem Comum: o conjunto de atitudes dos membros dessa sociedade, cada qual cumprindo o seu dever, todos trabalhando no sentido de buscar o bem. Este bem não se encontra na posição política, na escolha de um partido político, ou mesmo na simpatia que se possa ter por um candidato. O Bem Comum se encontra na posse dos meios adequados para alcançar a finalidade mais elevada da nossa Pátria: a bênção de Deus que só pode vir pela fé na doutrina revelada, o patrimônio físico e moral da nação, e as virtudes consequentes de Justiça e de Paz entre nossas famílias e nossas cidades.

 

Mesmo sabendo das limitações espirituais e filosóficas do Presidente Bolsonaro, não podemos deixar de aprovar com ênfase os quatro anos do seu corajoso governo. Neste número da Revista Permanência procuramos realçar as conquistas alcançadas por ele, as quais não se limitam a armações partidárias com vistas à reeleição. Bolsonaro deixa um legado impressionante de cuidados duradouros a milhões de brasileiros. O Brasil passa a ocupar um lugar de destaque na política mundial, apesar dos fortes e constantes ataques sofridos pelo atual governo. Seu conservadorismo abre possibilidades reais de escaparmos da destruição da família, pelo menos por mais alguns anos. Por isso não há espaço para dúvidas sobre o caminho que o brasileiro deve trilhar para o Bem Comum da Pátria.

 

Precisamos crescer espiritualmente. Precisamos de mestres espirituais que nos ensinem a refletir e a orar, medindo todas as coisas pela balança da justiça divina.

 


[1] Gustavo Corção, A Descoberta do Outro, cap. Equações sem homogeneidade. Vide Ed. 2017.

[2] Pio XII, Encíclica Miranda prorsus, 8/9/1957.

[3] Ecl. 3, 1 a 8.

[4] Gustavo Corção, O Século do Nada, Record, 1973 – pag. 436.

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