Ateísmo militante! Expressão nova a designar uma realidade também nova.
Como fato individual, a negação de Deus é quase tão antiga como a humanidade. Conhecemos os ateus que se abotoam, tristonhos e silenciosos, na solidão de seu deserto interior; conhecemos também os inquietos que se atiram às aventuras de um proselitismo sem glória. Casos isolados, que se multiplicam com freqüência nas civilizações em decomposição.
Como fato social, o ateísmo é um fenômeno inédito na vida da humanidade. A etnografia e a história não conhecem povos sem religião. A observação do velho PLUTARCO encontrou nos estudos mais recentes e mais completos uma confirmação definitiva. “O ateísmo não existe em parte alguma, senão em estado errático”, afirma Quatrefaces.
Com o advento do comunismo que, a todo transe, pretende traduzir em realidade social o materialismo dialético de Marx, a irreligiosidade passa a ser o ideal de uma nova civilização, e o combate à divindade, a condição preliminar de seu triunfo na história. Sem extirpar das consciências a crença em Deus e tudo o que ela representa para a grandeza, a paz e a esperança das almas, a humanidade não atingirá a meta de sua evolução na conquista da felicidade. Um ateísmo militante identifica-se assim com o próprio esforço de libertação salvadora. Acenar aos homens com um novo estilo de civilização em que Deus é o grande inimigo e, para levar a termo esta transmutação radical de valores, mobilizar, num titanismo sem escrúpulos, todos os ressentimentos históricos e toda a avidez de paixões violentas, eis a tragédia do comunismo.
Um estudo da gênese ideológica do marxismo porá em evidência estas correlações internas e essenciais, que fazem do combate à própria noção da divindade a pedra angular da implantação e conservação do comunismo soviético.
I
Nos dez anos que precederam o Manifesto Comunista de 1848, formou-se e amadureceu, nas suas linhas mestras, o pensamento de Carlos Marx. Os seus escritos desta época refletem, com as reações pessoais, as influências dominantes que orientam para posições definitivas as primeiras hesitações. Não se pode compreender o autor do Capital, sem haver analisado a sistematização filosófica, proverbialmente obscura, mas inegavelmente profunda, do pensador da Fenomenologia do Espírito.
Kant construíra o seu sistema sobre o dualismo do noumenon e do fenômenon, da coisa em si, incognoscível, e da sua manifestação, revestida das formas do espírito. Daí a antimonias entre o conhecimento e a natureza, o finito e o infinito, a liberdade e a necessidade, o possível e o real, que não raro desfechavam em contradições indisfarçáveis. Hegel pretende evitá-los e, para isso, suprime a dualidade entre o conhecimento e o ser, entre o Espírito e a Natureza. Toda a realidade concentra-se na unidade do Espírito, e a oposição entre sujeito e objeto, não passa de uma oposição do Espírito a si mesmo. Os termos, que parecem contraditórios, quando isolados estaticamente, tornam-se inteligíveis quando mergulhados no dinamismo do pensamento. O espírito está sujeito a um vir-a-ser contínuo que se processa em três momentos: o da afirmação inicial, em que ele se conhece, o da negação em que percebe o seu limite, o da reconciliação final em que apreende a unidade substancial destes dois termos. Em outras palavras, o espírito movimenta-se num ritmo ternário de tese, antítese e síntese. A contradição e o conflito é o aguilhão do seu progresso. E este movimento interno do pensamento constitui a dialética.
Como o espírito é co-extensivo ao ser, todo o racional é real e todo o real é racional. A dialética rege o pensamento como a história. E uma lógica que analisa rigorosamente o espírito não se distingue da metafísica. As diferentes formas do vir-a-ser universal são outras tantas manifestações da única realidade fundamental – o Espírito. Alienando-se de si, como num sono, é Natureza; consciente de si, é Estado; reveste-se de formas sensíveis na Arte, de pensamentos exatos na Filosofia, de representações míticas na Religião.
Em síntese: uma única realidade, o Espírito, submetida a uma evolução, regida pela necessidade interna de uma dialética em que a luta desempenha um papel primordial: eis a intuição filosófica, que, desenvolvida por Hegel com uma amplitude de proporções, uma coerência de travação interna, uma elevação espiritual “desinteressada”, raras na história da filosofia, se impôs indiscutivelmente ao pensamento alemão com “uma importância de influência que não é possível medir”.
Ao chegar a Berlim não se subtraiu o jovem Marx a esta fascinação empolgante. Na primavera de 1837, pouco depois de chegar à capital, uma doença obrigou-o a interromper as suas ocupações normais de estudante e ele atirou-se com sofreguidão à vasta enciclopédia hegeliana. “Durante a minha indisposição, escreve ele, li Hegel de princípio a fim e já me havia familiarizado com a maior parte dos seus discípulos. Prendi-me mais solidamente a esta filosofia do dia, da qual pensava libertar-me”. Que terá entendido de Hegel – lido de princípio a fim – esse jovem universitário que mal contava 19 anos? O fato é que o entusiasmo não durou muito e a adesão total ao hegelianismo foi, bem cedo, retirada. Neste novo passo, atuou, decisiva, a influência de Feuerbach.
A multivalência do pensamento hegeliano alimentou, após a morte do mestre, a divergência dos discípulos. Enquanto os conservadores – a ala direita – timbravam em manter-se fiéis à síntese original – sistema e método – os moços reclamavam ruidosamente o direito de criticá-la e corrigi-la em nome dos seus próprios princípios internos; conservavam o método para demolir o sistema. Novas atitudes políticas – Hegel divinizara o absolutismo do Estado prussiano – e um radicalismo anti-religioso caracterizavam esta ala esquerda, também chamada “o clube dos doutores”, de que faziam parte, entre outros menos expressivos, Bruno Bauer (1809 – 1882), David Strauss (1808 – 1874) e Ludwig Feuerbach (1804 – 1872). Em 1835 Strauss publicava a sua Vida de Jesus e em 1841, Feuerbach lançava a sua Essência do Cristianismo: as duas obras visavam reduzir o cristianismo a uma simples criação da consciência humana.
Para Feuerbach, o hegelianismo, que na sua dialética, partia do infinito e voltava ao infinito através do finito, não passava de um pseudo-misticismo, uma aplicação dos processos filosóficos a “matéria teológica”. A elevação do pensamento humano à dignidade do Absoluto, constituía uma tentativa de alienação, uma espécie de traição do humano. Era mister reconduzir à solidez da terra firme esta filosofia que se perdia nas nuvens. E Feuerbach atirou-se a um materialismo radical. A realidade única não é o Espírito, senão a Natureza, isto é, a matéria que sentimos. Em vez do monismo do pensamento, o monismo da matéria. Existência real outra coisa não é senão existência material, sensível. “Só o corpo distingue a personalidade real da personalidade imaginária de um fantasma”.
Um deus pessoal e transcendente é uma ilusão, criada pelo homem que projeta fora de si os melhores atributos de sua natureza. A Verdade, A Ordem, o Amor, as tendências profundas, as aspirações mais ardentes que se identificam com a nossa espécie e se impõem a cada indivíduo, e o dominam e como que reclamam a sua adoração, nós as personificamos num absoluto transcendente e construímos assim a noção da divindade. Não é, pois, Deus, quem cria o homem, é o homem quem cria a Deus.
Nele, se reúnem, hipostasiados, todos os predicados essenciais da espécie, todos os valores que lhe parecem úteis e que o simples indivíduo não consegue realizar plenamente na precariedade de sua vida. Deus é assim uma projeção mítica, uma apoteose inconsciente da natureza humana.
Mas este transfert para um sujeito pessoal dos predicados impessoais da espécie não constitui só uma mistificação enganosa senão ainda funesta. Criamos a Deus, como uma ficção, mas criamo-lo alienando de nós o que em nós há-de-melhor. Despoja-se assim o homem da sua própria natureza, desvaloriza-se. Em vez de conservar e pôr a serviço de si e da sociedade a sua inteligência e vontade, orienta-as para um além quimérico onde a sua imaginação mítica projetou uma ficção. A religião é, portanto, a grande inimiga do homem. Por ela explica-se esta alienação, pela qual a humanidade se torna como que estranha (= alheia) a si mesma, desumanizada, incapaz de realizar a plenitude do “ser para si”. Combater a religião é reintegrar o homem em si mesmo. Uma preocupação humanitária sobredoira assim a hostilidade anti-religiosa.
Em resumo. Um materialismo radical, inimigo de toda metafísica, que desconhece os valores do espírito e não vê na realidade humana senão matéria; um ateísmo intolerante, para o qual Deus é um mito malfazejo, e a religião, uma ilusão fatal à humanidade e responsável pela alienação que lhe frusta a atuação de suas melhores virtualidades; um humanismo estreito, sem Deus e sem alma, em que a humanidade, fechada num terrenismo absoluto, plenamente bastante a si mesma, é a norma última de todos os valores e o fim soberano de todas as atividades.
Aí estão os outros tantos motivos que serão assimilados por Marx e se encontrarão com variações múltiplas na orquestração definitiva da sua ideologia.
A obra de Feuerbach foi saudada com entusiasmo pelos jovens hegelianos. É bem conhecida a célebre página de Engels que nos descreve a “ação libertadora”, produzida pelo novo livro. Marx que asfixiava na atmosfera sutil e rarefeita do idealismo hegeliano, deixou-se empolgar pelo “verdadeiro vencedor da filosofia antiga”. “Feuerbach, escreve ele na Sagrada Família, foi o primeiro a completar e criticar Hegel de maneira hegeliana, reduzindo o absoluto do Espírito metafísico à realidade do homem enraizado na natureza”. Com um trocadilho intraduzível, atira ele aos teólogos e filósofos esta advertência: “Para vós só existe um caminho que conduz à verdade e à liberdade: atravessar o Feuer-Bach. O Feuerbach é o purgatório do nosso tempo
Tal o ambiente intelectual que respirou o jovem Marx na fase de assimilação de idéias que precedeu a elaboração de seu sistema definitivo. Hegel e Feuerbach vincaram profundamente o seu espírito. Sem os repetir com servilismo, não conseguiu nunca desvencilhar-se de suas influências orientadoras. A crítica, por vezes desapiedada, feita aos dois mestres, é, não raro, uma confirmação de quanto lhes deve o futuro autor do Capital, que, antes de iniciar as suas análises econômicas, já estava enfeudado a uma sistematização filosófica.
Com efeito, Marx não se satisfaz inteiramente com Feuerbach como não se contentara com Hegel. O seu materialismo não lhe pareceu bastante radical e coerente. Reflete ainda os preconceitos de uma “metafísica burguesa”. Reagindo contra Hegel, Feuerbach não faz mais que substituir uma noção abstrata por outra: lá a Idéia, aqui a Humanidade. O Espírito hegeliano era uma pura abstração lógica, mas a Espécie feuerbachiana não era menos outra abstração hipostasiada. Num como noutro sistema, esquecia-se a única realidade concreta, o homem que vive em sociedade, a braços com as dificuldades econômicas, criando a história e sendo por ela recriado. Feuerbach esquece esta atividade humana concreta, viva, que se desenrola no tempo e constitui essencialmente o próprio homem. A sua filosofia é ainda puramente “contemplativa”.
O dinamismo de uma entidade irreal, - eis o que nos propõe Hegel; uma realidade sem dinamismo, eis o que lhe substitui Feuerbach. Ambas estas visões das coisas, parciais e incompletas. Urge integrá-las, eliminando o materialismo passivo pelo materialismo dialético.
À “contemplação” do homem e da natureza, em atitude estática, alheia a toda evolução histórica, suceda uma visão do mundo essencialmente dialética, onde o homem real age sobre a natureza adaptando-a às suas necessidades.
Só assim se eliminará a alienação denunciada por Feuerbach, e que não é só religiosa, senão também moral, jurídica, política, numa só palavra, universal. Enquanto todas as realidades e os objetos sensíveis não passarem de pensamentos puros, de formas da consciência, a luta será fácil contra adversários etéreos, que se digladiam no mundo das abstrações. A vitória contra a alienação será ilusória. As condições trágicas da existência nem por isto se modificam. O triunfo só se obterá por uma transformação das condições reais de existência levada a cabo por uma revolução social. O materialismo, cumpre orientá-lo, de um sistema especulativo de metafísica, para uma doutrina prática de ação revolucionária. E a última das Teses sobre Feuerbach, publicadas em 1845, soa já como um clarim de guerra precursor do Manifesto de 1848: “Os filósofos não fizeram senão interpretar o mundo de diversas maneiras; o de que se trata, porém, é de reformá-lo”.
O marxismo será esta filosofia toda orientada para a praxis; em nenhuma outra, pensamento e ação se fundiram tão indissoluvelmente.
Seu ponto de partida será o homem, não a idéia abstrata de homem, mas o homem vivo, concreto, imerso na natureza, relacionado com os outros homens. A atividade humana, considerada como um todo, constituirá o primum philosophicum desta nova sistematização, que pretende dar-nos, numa síntese compreensiva, a noção verdadeira do homem, tal qual deve ser, e o caminho prático para libertá-lo das escravidões atuais e reintegrá-lo sem alienações diminuidoras, na plenitude de sua natureza.
A reflexão exercida sobre a realidade viva apontará as causas de sua desintegração e indicará ao mesmo tempo as condições de sua recuperação. O pensamento traça à ação rumos e normas, a ação assegura ao pensamento eficiência e fecundidade. Filosofia e revolução serão os aspectos indissoluvelmente complementares da nova Praxis.
Nesta arrancada, Marx, opta, sem discussões nem crítica, pelo materialismo da tumultuosa esquerda hegeliana. O homem é matéria e só matéria. “A História, escreve ele, é uma verdadeira parte da história natural, da transformação da natureza no homem”. Assim sendo, toda a sua atividade reduz-se a um esforço de adaptação ao meio. Para satisfazer às suas necessidades, o homem age sobre a natureza e a natureza reage sobre o homem. O trabalho e o trabalho produtivo é a atividade essencialmente humana, a chave do grande enigma da natureza e da história, a síntese que liga o homem ao cosmos. Por este esforço da adaptação recíproca os indivíduos vinculam-se ao ambiente e prendem-se uns aos outros. O trabalho define o homem e a estrutura a vida social.
As relações dele decorrentes, relações puramente econômicas, tecem a trama real da história. Tudo o mais, a nossa vida intelectual, moral e política, não tem nenhum valor próprio, autônomo, nada mais é que reflexo das condições materiais da existência que variam com o tempo; “Em cada época histórica, escreve Engels, no Prefácio ao Manifesto Comunista, a forma dominante de produção econômica e de permuta e a organização social que necessariamente se lhe segue, constitui a base sobre a qual se eleva, e da qual unicamente, na sua explicação, depende, a história política e intelectual desta época”. As idéias não passam de produtos ou subprodutos da estrutura econômica.
Os grandes pensadores viram sempre, no drama histórico da humanidade, o resultado complexo, não só de fatores físicos, geográficos e econômicos, senão ainda de agentes espirituais, psicológicos, morais e religiosos, que se entrelaçam em tramas complicadas a desafiarem, por vezes, as análises mais esmiuçadoras. O postulado materialista impõe a evicção de todas as energias espirituais. O humano reduz-se ao econômico. O jogo das atividades livres cede o lugar ao determinismo inflexível das leis naturais. Só a ação das forças produtivas constrói e explica a história; é a sua base, a sua estrutura. O moinho de vento criou a civilização feudal, o moinho de vapor, a capitalista. Das condições modernas de produção nasceu o capitalismo, como a escravidão resultou das condições sob as quais foram construídas as pirâmides. A filosofia, a arte, a religião, as instituições jurídicas, políticas e sociais, não passam de superestruturas ideológicas, associações mais ou menos coerentes de idéias abstratas, a espalharem, num mundo irreal, as condições materiais existentes. Falta-lhes um conteúdo de realidade própria. E se por vezes lhes atribuímos uma tal qual autonomia de influência no curso dos acontecimentos, é porque perdemos a consciência de sua origem, esquecidos dos fatores econômicos que lhes deram nascimento. Engels não se cansa de o repetir: é “a necessidade econômica que em última instância sempre prevalece”; que “em última instância condiciona o desenvolvimento histórico”; “por mais influenciadas que pareçam pelas outras condições políticas e ideológicas, não deixam as condições econômicas de ser, em última instância, as condições determinantes”.
Esta interpretação materialista da evolução humana, pelo simples jogo das forças da produção, tem uma importância central no marxismo. Nela verá Marx a chave de uma explicação econômica da alienação denunciada por Feuerbach; nela ainda, encontrará o ponto de inserção da dialética hegeliana que progride à força de antagonismos fecundos e conflitos libertadores.
A alienação, origem da desintegração e diminuição do homem, é um fruto natural do regime econômico em que vivemos. Não só da religião, simples superestrutura ideológica, deriva ela mas, também e principalmente de toda a situação social criada pelo capitalismo. “A alienação religiosa como tal só se processa no domínio da consciência, no foro interior do homem, mas a alienação econômica é a da vida real”. A propriedade privada dos meios de produção é a primeira responsável da grande decadência. A consideração do trabalho como fator único do valor e a teoria mais valia, propostas por Marx, explicam facilmente, a seu ver, esta desumanização progressiva das grandes massas.
Aplicando as suas forças, intelectuais e manuais, o homem modifica a natureza, dá aos produtos de sua atividade um valor que antes não tinham, e transfere, ao mesmo tempo, ao fruto de seu trabalho algo de si mesmo, de sua inteligência e de suas forças. Para que não fique diminuído ou mutilado, fora mister que todo o valor do produto, unicamente devido ao trabalhador integralmente revertesse. No regime capitalista, ao invés, só lhe toca o salário, isto é, por via de regra, o indispensável para uma subsistência precária, muito abaixo do valor conferido pelo trabalho ao objeto produzido. O mais, esta sobrevalia que vai aumentar o capital, fica definitivamente alienado de sua humanidade empobrecida. O progresso do trabalho, produzindo mais riqueza, não fará senão agravar o mal. Quanto mais trabalhar o assalariado, mais desagregará a sua personalidade. Multiplicando as suas obras, empobrece. Tudo o que de sua vida e de sua substância cristaliza na coisa produzida, cessa de lhe pertencer, aliena-se em proveito de outrem, constitui uma realidade estranha, uma dominação estrangeira que lhe é inimiga. A lei de concentração do capital, sua conseqüência espontânea, importa necessariamente na lei da proletarização crescente das massas. E a alienação, diminuidora do homem, ampliará inelutavelmente a esfera de sua ação nefasta.
A produção privada é, portanto, a causa primeira desta diminuição, “a expressão material e sensível” da alienação universal. A religião, a família, o Estado, o direito e a moral, a ciência, a arte não passam de reflexos do regime econômico por ela caracterizado. Assim, o que ao socialista francês se afigurava um roubo, na perspectiva marxista aparece como uma expropriação contratual do homem.
A diagnose do mal aponta-lhe o remédio. E este é único: a supressão total e completa da propriedade privada. Revoluções parciais, simples reformas econômicas, conseguirão apenas um transfert de riquezas. A reintegração definitiva da natureza humana não será uma realidade senão quando se socializarem todos os meios de produção. Só o comunismo, integral e absoluto, libertando o homem de todas as alienações, o restituirá a si mesmo, plenamente livre e independente.
E para esta emancipação final, marchamos sob o impulso de uma fatalidade inelutável. O discípulo de Hegel, que Marx nunca deixou de ser, aplica à evolução econômica da humanidade o determinismo dialético a que o mestre, com rigoroso ritmo lógico, submetera o desenvolvimento, racional e real, a um tempo, da Idéia. Também aqui o compasso temário de posição, negação e reintegração, cadencia a marcha dos acontecimentos. Num primeiro tempo há uma espécie de organização coletiva do trabalho; cada membro da comunidade consome o que produz – tese. Pouco a pouco, a divisão de tarefas provoca a apropriação e as permutas. Nasce a propriedade privada que, através de mil vicissitudes, avulta até o zênite do capitalismo moderno. Antítese ou negação, que por sua vez provocará a negação da negação ou a síntese final. A propriedade passará das mãos de poucos para a coletividade.
A luta de classes constitui o âmago deste antagonismo criador de progresso. E o impulso dinâmico que há de acionar e acirrar o movimento revolucionário, dá-lo-á o proletariado, vítima principal da alienação que a todos escraviza. Atirando-se contra a burguesia, numa concentração de forças irresistível, os grandes esbulhados do regime presente construirão amanhã, sobre as ruínas da nossa, outra sociedade, sem classes, em que os dois termos dos contrastes passados se fundirão numa ordem superior, e o homem, finalmente alforriado de todas as sujeições desumanizantes e deprimentes mas passageiras, só se pertencerá a si mesmo.
Como sistematização de idéias e como programa de ação, o pensamento marxista atingiu a sua maturidade. O Manifesto de 1848 podia ser lançado a todos os quadrantes. Nele os comunistas “declaram abertamente que seus desígnios se não podem realizar senão pela subversão violenta de toda a ordem social. Ante a eventualidade de uma revolução comunista tremam as classes dirigentes! Os proletariados, nada terão a perder senão suas cadeias; e a ganhar um mundo! Operários de todas as nações, uni-vos!”
Não esquecemos o nosso fito principal. Sem ter, porém, diante dos olhos uma visão panorâmica da ideologia marxista, dificilmente se poderá situar nela o relevo central do ateísmo. O comunismo não é ateu porque ateus, pessoalmente, foram Marx, Lenin e Stalin A negação de Deus entranha-se organicamente na doutrina de Marx, articulando-lhe toda a estrutura lógica e inspirando-lhe todo o dinamismo revolucionário.
Já em 1844 na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel escrevia Marx: “Para a Alemanha, a crítica da religião está substancialmente terminada. Esta crítica condiciona toda a crítica... A abolição da religião, como felicidade ilusória do povo, é exigida pela sua felicidade real”. Este preconceito, fundamente enraizado no seu espírito, penetrará visceralmente na elaboração definitiva de todo o sistema. Partindo de uma concepção da história rigorosamente materialista, toda a realidade humana será reduzida ao jogo das forças produtivas ou relações econômicas. A religião, como as outras ideologias, não passa de um reflexo ilusório, no mundo das abstrações, das condições materiais de existência. É um produto histórico, sem consistência nem autonomia, transitório como as formações sociais do regime que lhe deram origem. Nasceu da necessidade que experimentou o homem de explicar a si e aos seus semelhantes as desigualdades criadas pela apropriação dos bens, por parte de alguns com detrimento dos outros. Seu efeito natural será reforçar e perpetuar o regime de que provém, sancionando estas desigualdades e injustiças. E como este regime é, por hipótese, um regime de exploração de uma classe por outra, a religião, tanto pela sua origem como pela sua finalidade, afigura-se ao marxista um instrumento de exploração, com seu indissimulável caráter de classe. Nas mãos da burguesia, a idéia de Deus e a esperança da vida futura com as suas compensações remuneradoras, são habilmente manejadas para manter, resignadas e submissas, as massas dos trabalhadores. A religião é o ópio do povo. O poderoso narcótico, de um lado, provoca sonhos e fantasias de prazer que, na volta à realidade, se resolvem em desenganos e tristezas, de outro, paralisa as atividades orgânicas. A religião embala a humanidade em vãs quimeras e entorpece a pugnacidade libertadora dos proletários. Ilusão e ilusão malfazeja.
Destes pressupostos sistemáticos sobre a natureza da religião, estabelecidos sem nenhum exame crítico do seu conteúdo e sem nenhum respeito à verdade da história, decorre espontaneamente a atitude prática do comunismo. Atitude de hostilidade total e inexorável. As necessidades estratégicas da luta poderão sugerir, aqui e ali, tolerâncias temporárias, condescendências aconselhadas por um oportunismo contemporizador. As exigências internas do marxismo imporão sempre uma guerra de extermínio e de morte. O marxismo combate e deve combater a religião, como combate a propriedade privada, a existência da burguesia, a sociedade sem classes. Todos esses objetivos, que consubstanciam a íntima razão de ser do comunismo, entrelaçam-se, indissoluvelmente, na textura ideológica do marxismo, com a idéia de Deus e a vida religiosa. Por isto, enquanto em prol da religião apenas se assegura a liberdade de culto, a liberdade ilimitada de propaganda anti-religiosa é garantida como um direito constitucional da Carta Orgânica que estrutura “a ditadura do proletariado” nas repúblicas soviéticas. A emancipação do homem, finalmente libertado de toda a alienação, como a entrevê Marx, está condicionada pelo eclipse total e definitivo da idéia de Deus na consciência da humanidade. É mister chegar a esta aniquilação para que o homem entre “a mover-se ao redor de si mesmo e, assim, ao redor de seu verdadeiro sol. A religião é um sol ilusório que se move em torno do homem, enquanto o homem não se move em torno de si mesmo”.
O marxismo é essencialmente um ateísmo militante.
I I
Não há por que determo-nos longamente na crítica dos seus fundamentos doutrinais. Os postulados metafísicos que lhe constituem a subestrutura são de uma inconsistência insanável e Marx não trouxe em seu apoio nenhuma contribuição nova, digna de apreço.
Deus, Absoluto transcendente, é a condição mesma de inteligibilidade de todo o real. Só nele poderá descansar, de modo definitivo, todo o pensamento que se completa. A estrutura como o dinamismo do Universo reclamam-no com a necessidade imperiosa e a exigência essencial de sua própria razão de ser. Explicar a crença constante e universal da humanidade num Princípio de tudo o que é, como um jogo ilusório de ficções ideológicas, para conservar e defender a propriedade, é simplesmente pueril. São muito mais sérias e profundas as razões que nos levam a Deus. Marx dispensou-se de examiná-las. E foi um grande mal.
O materialismo, outro postulado metafísico fundamental de sua sistematização ideológica, não apresenta maior consistência. É uma filosofia simplória de primitivos: suas explicações terminam onde começam os verdadeiros problemas da inteligência. Adolescente, respirou-a Marx na atmosfera tumultuária dos jovens hegelianos (Feuerbach, e, mais tarde, Vogt, Buechner e Moleschott), em reação violenta contra os excessos idealistas da geração postkantiana. Sua aplicação à interpretação da história, não obstante as aparências de uma análise fria e rigorosa, obedece às imposições aprioristas de uma visão preconcebida das coisas. O que devera ser historiador sereno, economista positivo, numa palavra, homem de ciência, está sempre a serviço do ideólogo apaixonado, infalível e prepotente. A sua perspectiva histórica não resulta de um exame objetivo dos fatos; os fatos são vistos através das lentes deformadoras de um sistema antecipado. Aos 27 anos, Marx ainda se não havia aplicado ao estudo da economia e já estavam firmadas as articulações mestras da sua construção ideológica. O Capital foi escrito depois do Manifesto.
Vista através desse daltonismo, uma realidade fluida, movediça e complexa como a história não poderia deixar de sofrer deformações essenciais. Onde atua uma multiplicidade real de fatores – geográficos, biológicos, psíquicos e ideais – ele viu apenas o imperialismo absorvente e exclusivo das forças econômicas de que todas as demais são apenas epifenômenos inconsistentes. Onde se manifesta uma evolução a processar-se sobretudo em continuidade orgânica, ele não apurou mais que um movimento dialético de negações e conflitos.
Transporta assim à história, o materialismo, se ganhou em dinamismo revolucionário que destrói, nada lucrou como verdade que salva.
Mais interessante se nos afigura sublinhar a significação e as ressonâncias culturais de um movimento social que se afirma com uma energia de conquista crescente e ameaçadora.
Da sistematização marxista não há uma só peça que tenha resistido vitoriosamente à análise científica. As suas principais doutrinas – postulados filosóficos e teorias econômico-sociais – estão hoje cientificamente superadas. Não suportaram o exame da crítica e o confronto dos fatos. Sobrevivem, porém, popularmente, com uma força de expansão formidanda. O partido comunista que se encarna, por uma conjunção acidental de circunstâncias favoráveis, empolgou o poder na grande e misteriosa e enigmática Rússia. Mobilizou os seus inesgotáveis recursos econômicos, galvanizou o messianismo secular do seu povo e pôs este imenso poder a serviço da mais hábil, mais tenaz e mais tecnicamente organizada das propagandas imperialistas. Destarte, o que há 30 anos, como doutrina era um sistema historicamente classificado, como força política era uma inexistência ou uma insignificância, assumiu, em nossos dias, o vulto da maior ameaça à civilização humana.
O comunismo, de fato, não é apenas um sistema econômico, é uma filosofia integral da vida. Não aspira apenas a reformas da estrutura social, baseadas numa redistribuição mais eqüitativa dos bens materiais, reclama o monopólio incontrastável das almas. Pretende implantar a ditadura do proletariado e a ditadura das consciências. Uma religião às avessas. Seu dogma: o materialismo histórico. Sua ética: nova hierarquia de valores aferidos pelo imperativo condicional da vitória do partido. Seu ideal messiânico que eletriza as massas numa grande esperança escatológica: conquista emancipadora da humanidade. Nunca um totalitarismo estadeou pretensões tão radicais!
Na propaganda deste programa, os postulados metafísicos, que já não se discutem, ficam em planos mais afastados da perspectiva. Concentrando as atenções imediatas, figuram a exploração hábil de ressentimentos históricos das classes sofredoras, as críticas contundentes das injustiças e desumanidades do capitalismo, a pintura risonha da sociedade futura, colorida com um otimismo ingênuo e sereno em contraste com o pessimismo azedo que projeta as suas negruras sobre todo o passado histórico do homem alienado e decaído. Assim se hipnotizam as massas. Assim se cria a mística do comunismo, e se mobilizam as energias religiosas da alma a serviço de uma ideologia atéia. Fé e esperança, dedicação e sacrifício, amor da justiça e da liberdade, todo este patrimônio de riquezas humanas, que só têm valor numa ordem ontológica de realidades espirituais, são exploradas para acelerar a implantação de uma nova concepção da vida que as declara ficções sem conteúdo e abstrações malfazejas.
Eis a grande tragédia do comunismo: a mobilização das melhores energias humanas para a construção de um porvir que será o maior desastre e a decepção total da humanidade.
Este mundo que a revolução marxista prepara para a felicidade do homem será um mundo sem Deus. Um mundo em que se verificará o que Chesterton chamou “anomalia suprema dos tempos anormais, a derradeira negação que, para além de todos os dogmas, fulmina a crença mais necessária à alma: a de que existe uma razão das coisas”. A inteligência já não poderá encontrar respostas às interrogações supremas sem as quais não lhe é possível viver. À vontade, com a negação do Infinito Bem, faltará a mola insubstituível do seu dinamismo metafísico. A consciência, reduzida a reflexo de condições sociais, perderá a sua dignidade de norma racional de ação. Os supremos valores da ordem ideal – a Verdade, o Amor e a Beleza – sem o único fundamento ontológico que lhes assegura realidade e vida, eclipsam-se numa noite sem esperanças. A morte impossível de Deus precipitaria a existência universal na negação eterna do nada. Não podemos prever o caos em que se desconjuntaria uma estrutura social em que fosse possível a extinção de Deus nas consciências humanas.
Ateísmo e materialismo são solidários no sistema de Marx. Este mundo que se pretende elevar sobre tantas ruínas será ainda o mais inumano dos mundos. O problema central em qualquer estruturação da sociedade, o problema da pessoa foi, pelo marxismo, não só preterido, nos aspectos que lhe são próprios, mas de todo em todo falseado na natureza dos seus dados fundamentais.
No homem não se viu senão a atividade econômica, característica de sua essência e plasma de sua sociabilidade. Os domínios mais nobres de sua vida individual e social – a cultura, o direito, a moral, a religião – foram anexados ao primado da economia. Onde convinha libertar o homem da hegemonia crescente e humilhante das forças de produção, consumou-se, como definitiva e ideal, a sua ditadura incontrastável. O homem já não deve dominar e disciplinar as relações econômicas para dirigi-las aos fins superiores da realização plena de sua personalidade, curva resignado o colo à tirania do seu jugo. A escravização ao econômico em vez de emancipação do econômico consuma a alienação irreparável e desumanizante.
Com esta inversão de valores desnatura-se e avilta-se a dignidade do trabalho. O esforço humano já não tem outra razão de ser senão aperfeiçoar a matéria e criar utilidades. O trabalho é isto, mas não é só isto. O que o constitui uma atividade especificamente humana, é, antes de tudo, ser uma obra viva interior das almas sobrelevam em qualidade as riquezas materiais que multiplica. Trabalhando, o homem desenvolve harmoniosamente as suas mais nobres faculdades, colabora com a realização dos planos divinos da criação e procura transfigurar este mundo, de que foi constituído senhor, numa habitação em que possa desenvolver as suas energias e realizar a nobreza de seus destinos.
No horizonte das esperanças humanas o comunismo acena com felicidades sonhadas de um paraíso perdido. Mas são estreitos estes horizontes e falazes estas promessas. No indefinido em que se perde o olhar perscrutador do futuro, não se distingue senão riqueza e mais riqueza, conforto e mais conforto. Uma cúpula de chumbo, imensa e pesada, cinzenta e fria, não permite que se elevem as vistas acima dos bens materiais. O surto para o infinito, que constitui a essência mesma da personalidade, estará para sempre condenado a cair sobre si mesmo, no tantalismo de um desespero mortal. O homem transformar-se-á num animal de vista baixa: a terra estreitará para sempre o horizonte de suas perspectivas: o vôo de suas aspirações como o termo de suas atividades. Quando o trabalho se degrada à simples força criadora de valores econômicos, o homem, preso à matéria, verá alienado o melhor e mais nobre de sua natureza.
E esta alienação vai ainda mais longe. Quando se desconhece a dignidade do espírito, o homem já não tem um destino próprio, essência da personalidade. Decai à categoria da coisa ou do instrumento à serviço da sociedade. Na fórmula de Marx, o ser humano “na realidade, é o conjunto das relações sociais”. Os vínculos que, num dado momento histórico. O ligam ao meio, definem-lhe a natureza e esgotam-lhe a razão de ser. Já não há em cada homem uma vocação original que importa respeitar, uma fonte de direitos que não podem ser postergados, uma autonomia de atividades realizadoras de uma finalidade moral, indeclinável. Cerceiam-se assim, pela raiz, todas as liberdades humanas. O indivíduo é sacrificado à comunidade, o cidadão ao Estado, que lhe impõe o mais absoluto conformismo de idéias, de vontades e de sentimentos. Compreende-se que Marx ridicularize: “o inevitável estado-maior das liberdades de 1848: liberdade pessoal, liberdade de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de ensino, de cultos etc”. Compreende-se que seja imolada a geração presente à felicidade quimérica do futuro. O homem, totalmente alienado de sua excelência natural, não passa de joguete sem dignidade nas mãos dos que encarnam a falsidade de uma ideologia na tirania de uma ditadura.
A grande tarefa da hora presente é dissociar do marxismo a obra imensa da elevação das classes operárias à participação mais eqüitativa em todas as riquezas da cultura. Ele não é nem pode ser o agente das transformações sociais por que suspiramos.
A tentativa comunista, se realizada, comprometeria a civilização e mergulharia o homem, para sempre transviado dos seus destinos, na desgraça de uma catástrofe irreparável.
Não é possível combater a Deus sem ferir o homem de morte.
Ateísmo militante, humanismo inumano.