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Nas origens do agnosticismo contemporâneo

Como os homens, as idéias têm a sua genealogia. E nem sempre ao próprio erro a lógica deixa a liberdade absoluta de escolha dos seus descaminhos. As doutrinas filiam-se nas vicissitudes de sua sucessão e o jogo inelutável dos princípios traça-lhe de antemão as linhas do seu desenvolvimento.
 
Sob as aparências de todo este íris de sistemas que vão do pragmatismo à filosofia de BERGSON,esconde-se mal dissimulada uma desconfiança na capacidade natural da inteligência.Um anti-intelectualismo, implícito ou explícito, constitui a subestrutura comum de todas estas construções. Remontando no passado das idéias não será difícil rastear-lhe a origem para melhor discutir-lhe os títulos e direitos.
 
Sem sairmos do domínio especificamente religioso podemos responsabilizar o protestantismo por este deslize gradual da solidez do objetivo para a fluidez inconsciente do subjetivo.
 
LUTERO substitui na justificação do homem a fé-crença pela fé-confiança: um ato de inteligência pela emoção de um sentimento. Foi o primeiro passo.
 
O segundo e mais decisivo deu-o SCHELEIERMACHER (1763-1834). Dificilmente se poderá exagerar a sua influência em toda a evolução posterior do pensamento religioso nas rodas protestantes. É um marco e assinala, na encruzilhada das idéias, uma mudança de rumo. Vivendo na era do criticismo e do romantismo sofreu a influência profunda de ambos e não sacrificou nenhum ao outro. ESPINOSA e KANT, SCHLEGEL e HERDER vincaram profundamente a sua formação espiritual. JACOBI lamentava ser pagão de inteligência e cristão de coração. SCHELEIERMACHER não se resignou a este dualismo interior, mas, para isto, modificou essencialmente o conceito de religião. Religião para ele não é uma doutrina nem de doutrinas depende sua vitalidade eterna. É um sentimento: sentimento de coexistência do finito no Infinito, dizia ele na primeira das suas grandes obras. Discursos sobre a Religião (Ueber die Religion; Reden au dei Gebildeten unter ihren Verächtern, Berlim 1799); sentimento absoluto da nossa dependência de Deus (Abhäuzigkeitsgefühl) escrevia mais tarde na sua Dogmática (Glaubenslehre, 1821-1822) atenuando as expressões um tanto panteístas dos primeiros trabalhos. Nesta experiência profunda do sentimento reside o essencial da religião; confundi-la com uma doutrina — revelada ou racional — ou concebê-la como um instrumento da moral é desnaturá-la. Os dogmas ou as expressões intelectuais não têm mais que um valor simbólico — e portanto racional — de tradução em imagens e idéias das realidades afetivas da vida interior. Destarte julgava o célebre pastor poder conciliar as demolições da crítica com a vitalidade intangível de sua religiosidade intensa1. Religião não é dogma, nem moral. Teologia, Filosofia e Ética podem digladiar-se em lutas fratricidas; a alma religiosa ficará sempre indene destes conflitos intelectuais.
 
O progresso no rumo do subjetivo é considerável. Para os primeiros reformadores a experiência religiosa constituía um critério subjetivo dos dogmas de fé, uma espécie de prova apologética da sua verdade que se pretendia conservar e respeitar; para SCHELEIERMACHER essa experiência constitui a essência, o conteúdo da fé. A dogmática não passará de uma superestrutura acessória e dispensável. Uma religião sem Deus, diz ele, pode ser mais religiosa que a baseada nesta idéia (Reden, p.120).
 
Na sua Glaubenslehre, o pastor pretendeu reconstruir os principais dogmas do cristianismo, não como verdades acolhidas por um ensinamento autorizado, mas como interpretação autêntica da experiência religiosa na comunidade cristã.
 
Pode afirmar-se que, de um modo ou de outro, quase toda a teologia protestante posterior é tributária de SCHELEIERMACHER2. Mas o seu herdeiro mais notável é A. RITSCHL (1822-1889). Dando um passo além na evolução do subjetivismo, ele faz consistir a religião numa experiência, mas não já, como o mestre, na experiência da comunidade e sim na experiência pessoal do crente. No intuito de abrir uma separação definitivamente intransponível entre a ciência e a religião, entre o domínio da inteligência e o da fé, introduz na filosofia religiosa a distinção já preconizada por W. HERMANN, entre juízos de valor. Podem distinguir-se, diz ele, duas espécies de conhecimentos: o conhecimento teórico que se ocupa do valor objetivo e da verdade intrínseca de suas afirmações, procurando organizá-los em sistemas coerentes, unindo-os pelo vínculo de causalidade e pronunciando, assim, juízos de existência (Seinsurterle); e o conhecimento religioso que prescinde da natureza objetiva das coisas e das suas relações causais para concentrar-se unicamente nos efeitos subjetivos que produz como resposta às tendências morais, estéticas ou religiosas de seu jeito. Sua função é elaborar juízos de valor (Werturterle) que nos não dizem o que são as coisas em si, mas qual a ação que em nós exercem ou quais as repercussões que nos despertam n’alma — “Deus existe”: juízo de existência, juízo científico. “A crença na existência de Deus faz-me bem”: juízo de valor. Só deste precisa a religião; ou ainda se quiserem, um é critério do outro; o valor subjetivo impõe a afirmação objetiva: o que me é útil é verdadeiro3
 
Assim na fração chamada liberal da teologia protestante a evolução das idéias se foi processando logicamente até desterrar de todo da nossa vida religiosa a função primordial da inteligência para deixá-la oscilante sobre a areia movediça do sentimentalismo. O progresso moderno do individualismo religioso e da dissolução das crenças, fora dos ambientes colocados sob a irradiação da doutrina católica, não tem outra origem.
 
Com a indicação, porém, destas ascendências genealógicas ainda não chegamos à primeira raiz do mal. A evolução do pensamento religioso foi, em grande parte, condicionada pela orientação do pensamento filosófico. Na razão última, explicativa destas atitudes religiosas, encontra-se uma teoria restritiva dos limites do conhecimento. LUTERO foi poderosamente influenciado pelo nominalismo4; SCHELEIERMACHERconheceu e estudou, em Halle, as obras de KANT e, não obstante algumas divergências, "conservou-se sempre verdadeiro discípulo seu"5. E esta influência profunda do empirismo e do criticismo, nas diferentes modalidades de seu desenvolvimento histórico, continuou a exercer-se até aos nossos dias. Ante estas novas genealogias que vedavam o conhecimento do supra-sensível, as almas que não se resignavam ao sacrifício das consolações religiosas tentaram com a filosofia demolidora um armistício ou quiçá um pacto definitivo de paz infrangível. Abandonaram-lhe a inteligência e entrincheiraram-se no sentimento. À expansão da atividade religiosa reservaram os domínios do coração e à razão proibiram que neles interferissem indiscretamente. Como se, com um espírito irreligioso, o coração pudesse conservar-se longamente fiel à religião! Como se fosse possível que a ausência de convicções pudesse ser substituída na orientação da existência de um ser racional pelas emoções vagas de um sentimentalismo cego! Como se pudesse ter um valor real e profundo de vida o que pela inteligência se declara uma ilusão pura!
 
Imprudência manifesta! Tática de desastradas conseqüências! Onde se impunha uma batalha decisiva, dissimulou-se a gravidade da situação com uma trégua enganadora. Outras deveram ter sido as atitudes, outros os planos de combate. No próprio domínio da filosofia impunha-se a peleja decisiva. À crítica convinha opor a crítica; a uma crítica de superfície uma crítica profunda; à precariedade dos seus primeiros resultados, a solidez de suas conclusões definitivas. Importava salvar a inteligência e com ela a dignidade do homem e a certeza do conhecimento de Deus e a possibilidade racional da vida religiosa.
 
É o caminho por que nos esforçaremos de seguir.
 
A filosofia moderna evolve há mais de um século sob o signo de um antiintelectualismo radical. Após um primeiro período de confiança excessiva nas forças individuais da razão, capaz em cada pensador de construir sistema completo e definitivo de interpretação do universo, acentuou-se o movimento de reação tendente a despojar a inteligência da universalidade de seu objeto e do seu primado de direito na orientação da vida humana. DESCARTES e ESPINOSA são dois representantes autênticos do racionalismo exagerado; HUME e KANT chefiam a reação antiintelectualista. A sua repercussão no domínio da filosofia religiosa constitui o agnosticismo6. Ante o problema da existência de Deus o agnóstico assume uma atitude de ignorância confessada; é a razão etimológica do seu nome; φζνρέω, ignoro ou desconheço. Para altear-se até ao Absoluto falta ao homem a envergadura de asas mais poderosas. A sua inteligência não pode elevar-se nem librar o seu vôo nestas regiões superiores onde se oculta, essencialmente inacessível, o mistério do Infinito. “O Absoluto, o Infinito, dizia LITTRÉ, é como um oceano que vem bater às nossas praias e para o qual não temos nem barcas nem velas”7.
 
Se lhe perguntardes as razões deste veto imposto aos movimentos livres da investigação racional o agnosticismo não vos dará a unanimidade de uma resposta. Se as conclusões coincidem, divergem os caminhos que levam ao termo.
 
Uns vos dirão: A inteligência humana está chumbada ao domínio da experiência sensível. Os fenômenos, as aparências das coisas suscetíveis de observação imediata, limitam necessariamente o domínio útil e positivo de sua atividade. Quando ultrapassar estas fronteiras seguras entre as quais se encerra a possibilidade das verificações experimentais, furta-se, impérvio, à curiosidade das nossas investigações racionais. Espaço livre, aberto ao devaneio das nossas imaginações de poetas; terreno inviolável vedado à certeza de nossas demonstrações de sábios. Assim fala o agnosticismo empírico ou positivista que encontrou em HUME e COMTE os seus mais ativos propagadores.
 
Outros vos responderão noutra clave. O conhecimento, dizem, não atinge a realidade extramental, a coisa em si, menos ainda, uma realidade transcendente. O realismo ingênuo de outras eras não é compatível com o espírito crítico de nossos dias. Uma “Crítica da Razão Pura” levou à vitória, no campo da filosofia, uma revolução semelhante à operada nos domínios da astronomia pela teoria de COPÉRNICO. Já não é o Sol que gravita em torno do nosso insignificante planeta; é a terra que lhe gira em derredor na dependência das pequeninas massas. Assim julgava-se outrora que a inteligência gravitava em torno das coisas. Engano; são as coisas que gravitam em torno da inteligência. O conhecimento não é uma representação do objeto, é a sua construção. Quanto, pois, constitui o termo de nossa percepção intelectual, não nos põe em contato com uma realidade distinta de nós, projeta apenas fora de nós, como num estado de imensa alucinação permanente, os resultados de nossa atividade interior. Sair do nosso mundo subjetivo para atingir um objeto externo é uma utopia. Os fenômenos ou as aparências subjetivas das coisas: eis o que atingimos. Os noumenos ou as realidades em si, esses ou não existem de modo algum (idealismo radical) ou são para nós de todo em todo inacessíveis, como um x incógnito e incognoscível (subjetivismo kantista). Assim, conclui o agnosticismo que direta ou indiretamente vai entroncar no criticismo subjetivista de E. KANT.
 
Para o agnosticismo empirista falece ao nosso conhecimento o caráter de universalidade e necessidade indispensável para transpor a ordem dos fenômenos; para o agnosticismo idealista falta-lhe a imprescindível objetividade para aferrar uma realidade extramental. Um prende o pensamento à ordem sensível dos fatos experimentados, outro enclausura-o na interioridade intransponível das modificações subjetivas do próprio eu. Numa ou noutra hipótese, limitada pela experiência externa dos sentidos ou pela experiência interna da consciência, à inteligência humana não é dado elevar-se a um conhecimento de ordem metaempírica e atingir o Absoluto na realidade superior de sua transcendência. Ao entrar em Atenas encontrou S. PAULO um altar em cujo frontal se lia: Ignoto Deo. Não é a um Deus Incógnito, é a um “Deus Incognoscível” que a filosofia moderna oferece, como termo supremo de seus esforços, o holocausto fatal da inteligência.
 
A larga difusão dessa atitude mental, sob qualquer das suas várias modalidades, explica-se facilmente. As suas aparências de modéstia em contrate com as bravatas agressivas do materialismo ateu; o diletantismo da dúvida aristocrática que facilmente se crê superior à ingenuidade das afirmações decididas; a possível conciliação com uma religiosidade vaga, sentimental, menos custosa, ante o mistério do grande cognoscível, a dar alimento a uma das necessidades mais profundas da alma humana — são outros tantos fatores — além dos de ordem estritamente intelectual — que revestiu o agnosticismo de uma sedução tentadora e a muitas inteligências menos advertidas dissimulam o que na realidade é — uma mutilação essencial do homem, um horror à sinceridade completa das atitudes francas e definidas, um medo às responsabilidades indissoluvelmente presas à vitória na luta contra a dúvida, pela cessação completa das cômodas autonomias e das fáceis disponibilidades da vida.
 
Esta difusão de uma mentalidade sutil e perigosa impõe-nos o dever de uma exposição mais circunstanciada e de uma crítica mais analítica dos sistemas agnósticos. Estudaremos primeiro o agnosticismo empírico sob as suas duas formas principais: crítica e positivista; a seguir o agnosticismo kantiano. Exporemos os sistemas principais, submetendo-os imediatamente a uma crítica interna e concluiremos reivindicando de uma maneira positiva o valor absoluto do princípio de causalidade que nos permitirá o acesso a um conhecimento analógico, isto é, imperfeito mas certo, na sua imperfeição, do mundo supra-sensível. A solidez das nossas posições e a eficácia dos nossos argumentos só poderão ser apreciados, após a exposição integral do conjunto, na solidariedade inseparável de todas as suas partes.
  1. 1. "A particularidade que faz de SCHELEIERMACHER uma das mais importantes figuras na história da filosofia religiosa consiste em reter que tudo quanto foi pela crítica demolido e privado de todo valor objetivo nada perde do seu valor religioso se puder subsistir como expressão simbólica de uma experiência vivida pelo homem na intimidade do seu sentimento. E estas experiências do sentimento... eram para ele o elemento essencialmente religioso". H. HÖFFDING, Storia della Filosofia Moderna, tr. it., t. II, Torino, 1913, p. 183. Cfr. GOYAU, L´Allemagne Religieuse, Le Protestantisme, Paris, 1811, pp. 76-85.
  2. 2. Cfr. KATTENBUSCH, VON SCHLEIERMACHER ZURITSCHL, Giessen, 1903; GOYAU, loc. cit.
  3. 3. Entre os protestantes franceses, A. SABATIER, Esquisse d’une Philosophie de la Religion d’Aprés la Psychologie et l’Histoire, e E. MÉNÉGOZ, Publications Diverses sur le Fidéisme, vulgarizaram sob o nome de símbolo-fideísmo estas idéias da teologia alemã reformada. O movimento modernista, representado por A. LOISY e TYRREL, tentou mas em vão, nos primeiros anos deste século, aclimá-las na teologia católica.
  4. 4.Sum occamicae factions”. De OCCAM diz freqüentemente: “magister meus”; “OCCAM mein lieber Meister”; “summus dialecticus”; “scholasticorum doctorum sine dubio princeps et ingeniosissimus”. Sobre a influência em LUTERO do nominalismo, através das obras de OCCAM, de PEDRO D’AILLY e de GABRIEL BIEL, cfr. H. GRISAR, Luther, t. II, Freiburgi. Br. 1911, pp. 102-132.
  5. 5. H. HÖFFGING, Storia della Filosofia Moderna, Torino, 1913, t. II, p. 183.
  6. 6. A paternidade do termo compete a HUXLEY (1825-1895). Os seus colegas da Metaphysical Society julgavam-se de posse de uma gnose ou sabedoria capaz de resolver todo o problema da existência. HUXLEY assume a posição de quem vê a insolubilidade da questão, e a esta atitude, em contraste, denomina agnosticismo. Empregada pela 1a. vez em 1869 num artigo do Spectator, o vocábulo teve a fortuna de entrar na circulação geral da linguagem filosófica. A palavra é, pois, de data recente; a atitude mental por ela designada é mais antiga, como se verá logo.
  7. 7. LITTRÉ, Paroles de Philosophie Positive, p. 31. E com expressões menos distintas, HUXLEY: “O problema da causa última das coisas parece-me definitivamente fora dos limites das minhas pobres faculdades. De todas as dissertações sem sentido que sobre o assunto tenho lido, as demonstrações dos que nos falam tanto acerca da natureza divina seriam o que há de pior se não fossem superadas pelos absurdos ainda maiores dos filósofos que tentam provar que Deus não existe”. Essays, t. I, p. 245.
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