Antônio Hernandez
Há exatamente 300 anos, na pequena cidade de Eisenach, Alemanha Oriental, a poucos quilômetros de Kassel, nascia Johann Sebastian, quarto filho de Elisabeth e Johann Ambrosius Bach, mortos quando o menino mal completara dez anos. Johann Ambrosius era músico, altamente respeitado na região. Com ele, Bach aprendeu a tocar violino. Com seu irmão mais velho, Johann Christoph, estudou órgão e cravo. Na escola de Ohrdruf, onde vivia o irmão, aprendeu a cantar e tinha tantas qualidades que ainda menino conseguiu seu primeiro emprego, no coro local. A compor, ele aprendeu praticamente sozinho, copiando às escondidas partituras de mestres alemães, italianos e franceses quw seu irmão importava com dificuldades.
Através de seus próprios recursos, já adolescente, Bach ganhou também a melhor educação a que podiam aspirar os fihos dos nobres de sua época: latim, francês, teologia, literatura, filosofia. Aos 18 anos, organista célebre na região, tinha uma base cultural invejável que, aliada à maturidade fatalmente adquirida pela sua condição de órfão desde os dez anos, fazia dele um artista capaz de assumir responsabilidades profissionais como qualquer adulto.
A prática da música, do canto e das técnicas instrumentais e da composição eram quase fator hereditário na vida de Bach. Ao longo de mais de quatro séculos da história da criação musical, registram-se aproximadamente 40 músicos em sua família espalhados por diversas cidades alemãs. O mais antigo foi um conselheiro municipal de Wichmar, Haus Bach, apreciado na região como exímio tocador de cítara. Os conhecimentos técnicos e artísticos eram assim transmitidos de geração a geração e o nome de família chegou a ser sinônimo de músico. Casado duas vezes, o próprio Bach educou seus filhos com extremo cuidado no universo musical e vários deles, por seus próprios méritos, têm lugar assegurado entre os maiores vultos da história: Johann Christian, Carl Philip Emanuel, por exemplo, nomes de grande destaque na evolução das formas do período clássico.
Johann Sebastian Bach, mais do que a figura culminante da história de toda sua família, foi o ponto de confluência das mais importantes vertentes da cultura musical do Ocidente, na primeira metade do século XVIII. Além da síntese das qualidades artísticas que vinham desde a Renascença, Bach é também o ponto de partida da música moderna: suas luzes, que iluminaram Mozart e Haydn e os românticos continuaram a aquecer os cérebros de mestres como Shoenberg, Alban Berg, Stravinsky e Villa-Lobos que, considerando-o uma espécie de “repositório do folclore universal”, comprometeu o Brasil nessa homenagem monumental que são as nove “Bachianas Brasileiras”.
Quando Bach chegou ao mundo, vivia-se o segundo século da descoberta das Américas, da invenção da imprensa de Guttemberg e do protestantismo de Lutero. O criador da ópera, o italiano Claudio Monteverdi, havia falecido 50 anos antes. A grande explosão da polifonia ocorrera três séculos antes e já envelheciam os exageros contrapontísticos dos renascentistas, que chegaram a trabalhar peças a 30 partes reais. Nem anacrônico, nem revolucionário, na sua condição de criador, Bach comportou-se dentro dos limites de um conservadorismo nada estéril. No que diz respeito ao enriquecimento dos recursos armônicos, por exemplo, ele se pronunciou corajosamente em defesa do “Temperamento” da divisão da oitava em 12 semitons fixos, o que permitiria a utilização dos teclados em qualquer tonalidade, sem ajustes de afinação. E o pronunciamento veio com a força amazônica dos 48 Prelúdios e Fugas para o cravo bem temperado.
Quanto às formas que cultivou, Bach conseguiu levá-las, com espírito científico e capricho artesanal, até as últimas consequências, animando-as também com essa sensibilidade que, no século XIX, Robert Schumann reconheceria como autêntico romantismo.
Os aspectos biográficos, entretanto, não são particularmente favoráveis às explorações literárias. O mais alemão e ao mesmo tempo o mais universal de todos os compositores alemães jamais deixou a Alemanha. Casado com sua prima Maria Bárbara, que morreu ainda jovem, e depois, com Anna Magdalena, teve ao todo 17 filhos. Escreveu, dia e noite, à luz das velas ou da lua, até ficar cego. Trabalhou para a nobreza até os 37 anos e, a partir daí, até morrer, para a igreja e a municipalidade de Leipzig. Antes de assumir as funções de Kantor, que incluiam obrigatoriamente a criação de música para os serviços religosos, Bach viveu o período mais feliz de sua vida – segundo seu próprio depoimento em cartas – na corte do príncipe de Anhalt-Cohten. Esse período corresponde à sua produção instrumental mais importante: as Aberturas (ou Suítes para orquestra); os Concertos de Brandenburgo – um dos quais, o quinto, inaugura a forma tão prestigiada pelos românticos do diálogo concertante entre um instrumento de teclado e um grupo instrumental; as Sonatas e Partitas para violino solo, para violoncelo, para violino e cravo, para cravo solo, e, entre muitas outras obras importantes, o primeiro volume de Prelúdios e Fuga para o cravo bem temperado.
Romantismo latente e perfeição artesanal
A segunda parte da vida, em Leipzig, corresponde à composição da maior das cantatas, das Paixões – “segundo São Mateus” e “segundo São João” – o segundo volume para cravo (a Oferenda Musical) e, para mencionar apenas alguns dos monumentos maiores da criação de Bach, a Arte da Fuga, que deixou inacabada, para consagrar seus últimos anos à conclusão da Missa em si menor, uma tarefa que não obedecia a nenhuma encomenda nem tinha a menor perspectiva de execução em público.
Esse período em Leipzig foi marcado por desgostos e por desentendimentos com as autoridades. Compositor livre, Bach era um músico oprimido nas suas aspirações e até hostilizado nas suas tarefas de diretor de música e de professor. Homem forte, ele era capaz de vencer a pé grandes distâncias para poder ouvir os organistas célebres de seu tempo, como Buxtehude ou Pachelbel, influências marcantes na sua formação instrumental (como compositor de música religiosa, vinha de Schutz, que nascera justamente cem anos antes). Extremamente sensível, emocionava-se quando meditava sobre as responsabilidades que lhe cabiam pessoalmente pelos “sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo”, segundo depoimento registrado no livro de sua mulher Anna Magdalena, que o surpreendeu gemendo na sua mesa de trabalho enquanto escrevia a Paixão segundo São Mateus.
Compondo para a “Maior Glória de Deus”, conciliando um romantismo latente com a perfeição do computador que tinha no cérebro, Bach deixou, aos 65 anos, obras perfeitas que pouco interessaram aos seus sucessores imediatos e que não chegaram até nós em sua totalidade. Calcula-se que apenas a metade do que escreveu está incluído nos catálogos modernos. E, a não ser por Haydn, Mozart e Bethoven, não existem muitas luzes de admiração pela sua obra, no século seguinte. Mesmo assim, a música instrumental teve razoável importância na vida concertista européia, sobretudo as Aberturas e os Concertos de Branderburgo, além dos Prelúdios – que eram a bíblia de músicos como o primeiro professor de Chopin. Seria preciso, entretanto, esperar até o século XIX para uma verdadeira ressurreição do nome de Bach, por ocasião da revelação da Paixão segundo São Mateus, por inciativa (e sob a direção) de Mendelsohn.
Todos os grandes românticos, particularmente Shumann, Liszt, Chopin e Brahms, prestaram homenagens significativas ao gênio de Bach. Depois, já no século XX, vieram os reconhecimentos de Villa-Lobos, animando as leis do reino bachiano com sangue brasileiro; de Strawinsky, confessando que o centro de suas aspirações era chegar a ser um pequeno Bach; e de Shoenberg e Alban Berg, que mergulharam na Arte da Fuga, procurando saídas na floresta do atonalismo.