[ Nota da Permanência: Não sabemos se alguém no Brasil já ouviu falar em Henri Charlier (1883-1975). Se na França ele nunca foi muito conhecido, quanto mais nos trópicos incultos do nosso Brasil, tomado pelos seguidores das modas nas letras, nas artes, e em tudo mais. Mas quando os brasileiros têm a oportunidade de visitar este centro de combate pela Tradição católica, e, mais ainda, quando passam um tempo razoável, capaz de introduzi-los nos meios culturais e religiosos da Tradição na França, imediatamente ouvem falar no nome do grande escultor e escritor convertido.
A entrevista que trazemos para os nossos leitores foi, na verdade, escrita pelo seu próprio irmão, de modo anônimo, num esforço para tornar mais conhecido na França o nome do irmão. O texto foi publicano na Revue Itinéraires, nº 266, de março de 1972, e nos mostra claramente qual a linhagem artística de Henri Charlier.]
André Charlier
Entre Troyes e Sens, a vinte e cinco quilômetros de Troyes, na França, encontra-se uma aldeia original, chamada Mesnil-Saint-Loup. Em uma região quase descristianizada, essa aldeia permaneceu católica, ou melhor, voltou a ser, graças a um pároco que foi ao mesmo tempo um santo e homem genial, o Père Emmanuel1. Nos dias de grandes festas os paroquianos passam, ainda hoje, ao menos quatro horas na igreja, pois cantam matinas, a missa solene, as horas menores, vésperas, e completas. Mesmo nos domingos comuns todos se reúnem na igreja para a missa solene, vésperas, completas, benção e terço. Canta-se ainda um puro gregoriano, apesar do progressismo.
Essa aldeia tem outra originalidade, que é o fato de nela habitar um escultor, Henri Charlier. Conheço pouca coisa de sua obra, pois está dispersa nos quatro cantos da França e mesmo em países estrangeiros; mas tinha visto dele, em Paris, uma bela estátua da Virgem que está no jardim do Seminário dos Carmelitas, e um afresco na igreja do Espírito Santo. Em 1930 tive a oportunidade de ler um artigo de Pierre du Colombier, em “Amour de l’Art”, que sublinhava a importância de Charlier. O fato de Henri Charlier viver retirado longe do mundo desde 1925 me parecia uma explicação insuficiente. Mas quando li o livro que publicou em 1957, “Le Martyre de l’Art ou l”Art livré aux bêtes” 2, compreendi melhor esse silêncio. Charlier é um reformador que tem ideias precisas sobre arte, nascidas de uma profunda meditação sobre as formas de arte do passado; essas ideias o levam a se opor à arte moderna pela qual mostra uma extrema severidade, e em que vê uma verdadeira corrupção do espírito; e como faz arte cristã, é igualmente severo com os religiosos que pretendem dirigir a arte sacra e se tornam cúmplices dessa corrupção do espírito, só para apresentarem um ar moderno. Assim, não é de estranhar que tenha se formado uma verdadeira unanimidade contra ele e que se tenham vingado ignorando-o.
Entretanto, um de meus amigos lera uma carta de Paul Claudel que lhe exprimia uma admiração sem reservas: “Charlier é um grande entalhador de imagens, dizia ele, um desses artistas que seguem o coração de Deus, dos quais fala um dos livros Sapienciais. Sua estátua de São José, na Pierre-qui-Vire, é magnífica, e apreciei infinitamente a sua policromia. É excelente caminho.” O mesmo Claudel manifestava seu sentimento sobre os escritos de Henri Charlier em um artigo intitulado “Le goû du fade” (O gosto do insípido); “Charlier publica atualmente no Bulletin des Missions de Santo André de Lophem admiráveis artigos, com uma competência que não tenho.”
Tudo isso excitou bastante minha curiosidade para me por a caminho do Mesnil Saint Loup. Lá cheguei um domingo na saída das vésperas e avistei na multidão um homem de boné, com partituras debaixo do braço (porque era também o organista), que se parecia com a descrição que me haviam feito. Abordei-o com certo temor, pois tinha o sentimento de ser um visitante inoportuno. Contrariamente ao que esperava achei-o muito cordial e mesmo jovial. Não sei se ficou encantado em me ver, mas na hora apreciei que tenha me deixado essa impressão. Levou-me para sua casa, onde sentados em um banco à sombra de uma macieira conversamos amigavelmente.
– Como se explica, Mestre, que não se veja nenhuma de suas obras em exposições?
– Em 1922 expus uma Joana d’Arc no Salão de Outono, tendo em seguida sido admitido como sócio. A escultura fez muito sucesso, e isso aconteceu pelo fato dela ter sido muito bem colocada por Georges Desvallières: não se podia deixar de vê-la. Além disso, suas cores se harmonizavam muito bem com as cores do quadro de Desvallières, que estava atrás. Depois expus a Pleureuse, do monumento aos mortos de Onesse, nas Landes. Foi também bem colocada porque eu estava lá: coloquei-a como era preciso. O sujeito que estava encarregado de arrumar as obras era um pintor. Ele próprio expunha um ônibus. Quis protestar e impor seu próprio lugar. Mas eu respondi: “– Por acaso o senhor me toma por um ônibus?”, e mandei-o passear. Depois disso, quando expus o Anjo de Acy, eu não estava; naturalmente puseram-no em um canto e à sombra, ninguém o via. Então decidi não expor mais. Mas em 1928, quando apareceu meu álbum de talha direta, Desvallières, Bourdelle e outros me disseram: “Como você faz tais coisas e não expõe?” Quis então fazer uma ultima tentativa. Mandei fazer um molde do Sagrado Coração, que está sobre a cúpula da capela do Pe. de La Colombière, na casa dos Jesuítas, em Paray Le Monial. Novamente foi colocado de maneira ridícula. Dessa vez disse para mim mesmo que não recomeçaria. No momento ganho a vida com minha arte, não tenho necessidade de expor.
–O senhor conheceu Bourdelle?
Conheci Bourdelle, e também Rodin. Em 1913 fui escolhido por Rodin para executar afrescos que lhe foram encomendados, mas nossa colaboração foi interrompida pela guerra e Rodin morreu em 1916. Comparado com Bourdelle, Rodin tinha outra envergadura. Este me disse por volta de 1913: –“Pai Rodin está ficando velho, vai sobrar um bom lugar de escultor”. Eis a alta concepção que Bourdelle tinha da arte. Foi ainda Bourdelle quem me disse, um dia em que me mostrava as obras de seu atelier: – “Entenda, em sua idade, eu também como você procurava a forma”. Para ele era algo muito difícil, o que o levou a procurar caminhos mais fáceis.
–O senhor disse que procurava a forma. Pode explicar-me como foi sua evolução artística?
Eu era alguns anos mais moço do que Picasso. Vi, pois, em minha juventude, as mesmas obras que todos os meus contemporâneos; foram propostos à minha admiração os mesmos membros do Instituto. Comecei como Matisse e tantos outros; fui para um atelier onde nos entediávamos. Entrei, aos 19 anos, no atelier de Jean Paul Laurens. Se é verdade que me tornei escultor, fiz até os meus trinta anos uma carreira de pintor. No fim de um ano escapei desse antro, onde o mestre era um bom sujeito, mas os alunos não eram bobos, pois repetiam sempre esse refrão: Pan, pan, pan. – Quem está aí? – sou eu Jean-Paul Laurens. – O que quer? Diz o Sultão. – Quero um barril de betume para fazer cadeiras transparentes. - Não é verdade, diz o Sultão, e mandou cortar-lhe a cabeça. Passado um pouco: “Pan, pan, pan. – Quem está aí?” E o refrão continuava, passando para dois, depois três barris, e assim por diante.
Jovem artista como era, continuei a estudar sozinho na Academia Colagrossi.
Quais foram os acontecimentos de minha formação artística? Lembro-me de que aos 7 ou 8 anos, minha mãe levou-me ao Salão do Palácio da Indústria; vi um quadro que me impressionou e que mais tarde reconheci ser o Ave Picardia Nutrix, de Puvis de Chavannes. É um dos menos literários, dos mais puramente plásticos e decorativos, no grande sentido da palavra, de seu autor.
O segundo acontecimento foi a exposição dos Primitivos franceses, em 1904, que foi um acontecimento para muitos outros, em particular para Peguy, que lhe consagrou um de seus Cadernos. Foi lá que apareceu pela primeira vez a Pieta d’Avignon e a Coroação da Virgem de Enguerrand Charanton, até então escondidos na Cartucha de Villeneuve-les-Avignon. O problema que essas obras traziam era o seguinte: como reencontrar as qualidades de forma e de cor nesta vida, sem cair na imitação e no pastiche? A questão já estava resolvida em seu fundamento por Van Gogh e Gauguin, mas esses artistas eram desconhecidos da juventude artística. Em 1904 Gauguin morria ainda jovem, nas ilhas Marquesas. As telas de Van Gogh teriam sido queimadas por sua família, se não fosse sua admirável cunhada. Essas obras só foram conhecidas em 1910.
Em 1906 realizou-se uma grande exposição de Cézanne depois da morte do artista. Eu nunca tinha visto suas obras: pensei que encontrava diante de mim um frescor de imagens análogas àquelas de La Fontaine. Voltava à mesma questão, desta vez com um artista contemporâneo: como adquirir essa qualidade pelo estudo da natureza?
Essa ausência de mestres estragou quase todos os artistas dessa geração. O fato é que nenhum dos grandes artistas desse tempo pôde ensinar. Não é de espantar que a maior parte deles, mesmo os mais conhecidos, se tenham atolado, até que os mais espertos conseguiram passar sua inexperiência e suas falhas como se fosse a marca de um espírito novo e revolucionário.
Ora, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, Rodin não eram absolutamente revolucionários; eram reformadores, e sabiam disso: ”Não tomo o lugar do passado, diz Cézanne, somente acrescento um novo elo.” E Van Gogh: “Esse broto verde saiu de um velho tronco...” Rodin foi um Michelangelo redivivo, mas no espírito da modelagem em terra.
– No seu entender, a lição desses grandes artistas do começo de nosso século (século XX) não foi compreendida?
Certamente não! A sociedade em que viviam, burguesa e materialista, tinha interditado a esses grandes espíritos qualquer possibilidade de ensinar o que sabiam, e a geração que os sucedeu ficou desamparada. As obras de Picasso, o mais bem dotado entre eles, por volta de 1910, mostram uma espécie de desespero para conseguir dar o passo que separa o desenho de Poussin do de Gauguin. Desenhava como que às cegas, na esperança de que um dia conseguiria. Mas os artistas estavam entregues desde a juventude nas mãos dos comerciantes de quadros que lhes pagavam em mensalidades. Os pseudo amadores perceberam o erro de ter comprado Meissonier, Bouguereau, Bonnat, pois o valor desses quadros não “subiam”, ao contrario. Apostaram no que lhes parecia revolucionário, e os negociantes forçaram os artistas e clientes a fazer e a procurarem qualquer coisa, desde que ainda não tivesse sido visto.
Havia nessa época duas vias a serem escolhidas: a da facilidade, que era a via revolucionária e que, hoje sabemos, não levava a nada; ou perseverar na via aberta por Gauguin e Rodin, a do aprofundamento nas buscas sobre a forma e a cor e seu sentido espiritual.
– Foi então a segunda via que o senhor escolheu?
Naturalmente, e assim me separei da corrente que tinha os favores da moda. Tendo-me convertido pela graça de Deus, prometi a mim mesmo, como antes Desvallières, de só fazer arte cristã. Procurei persuadir os artistas católicos de que todos esses elementos de uma nova estética cristã, de uma grande arte religiosa tinham sido reunidas por nossos predecessores. Rapidamente renunciei, pois meus camaradas só sonhavam em substituir comercialmente a arte de Saint-Sulpice3.
Veio a guerra de 1914, de que participei até o fim. Foi durante esse tempo que os “gringos” apareceram e se tornaram famosos como cabeças da arte francesa. O que faltou à França entre as duas guerras foi a geração dos que foram mortos. É verdade tanto para a arte como para outras manifestações da vida pública; e aqueles que tinham escapado se viram reduzidos à impotência. Quando levei um retrato para o Salão dos Independentes, na primeira exposição depois da guerra, encontrei instalado como presidente do comitê um de meus antigos camaradas do atelier de Jean-Paul Laurens, que me disse:
– “Ah! Charlier! Você por aqui! Há um século que não o vejo! O que andava fazendo?... – Eu estava no Exército... – Ah!, disse ele, pensava que fosse inteligente.”
Isso me foi dito à alta voz diante de uma centena de pessoas que não acharam nada para dizer. A partida estava jogada, e a renovação da arte francesa abandonada e entregue aos aproveitadores. Isso eu percebi na hora. Fiquei em casa e renunciei às exposições, contentando-me a executar as encomendas que chegavam, não apenas da França, mas de vários países da Europa e da América, porque há sempre pelo mundo uma centena de verdadeiros conhecedores.
– Em suma, o senhor se propôs a continuar a reforma começada no fim do século XIX por Puvis de Chavannes e por aqueles que são chamados erroneamente – se lhe compreendo bem – os Impressionistas?
Os grandes decoradores que foram Puvis de Chavannes e Gauguin, (principalmente o segundo) tinham achado os princípios plásticos essenciais abandonados na Renascença, esses que Poussin, de La Tour, Watteau, David, Ingres tentaram retomar. Mas tinham fracassado na técnica porque ficaram com a pintura a óleo, inventada para os fundos negros e o claro-escuro e para dizer o contrário daquilo que queriam dizer: ao menos, eles tinham tentado. Era preciso voltar a uma técnica feita para obter, ao mesmo tempo, a qualidade de tensão das formas (o que se chama vulgarmente de estilo, no desenho) e as cores frescas e claras em toda parte: é a técnica da têmpera4 e, sobretudo, a técnica do afresco.
Quanto a Rodin, o único escultor depois de Michelangelo e Jean Goujon, seu fracasso do ponto de vista monumental é manifesto. Nenhuma das suas esculturas poderia fazer parte de uma arquitetura. Para que uma escultura tenha esse caráter, é preciso que seja concebida na pedra e não na terra, e em relação com seu lugar arquitetural. Compreendi que eu era escultor quando me dei conta de que com bons desenhos poderia esculpir diretamente na pedra, sem nenhum intermediário.
É claro que essas reformas não podiam estar na moda: os amadores e os marchands queriam vender quadros como se faz com os títulos da Bolsa, fazer várias modelagens de terracota ou de gesso. Mas deixei muitas obras que a especulação não pode atacar: são afrescos pintados nas paredes ou estátuas feitas para uma arquitetura.
– Quais são suas obras que considera mais importantes?
Quer dizer, as que considero como mais bem sucedidas? É difícil de dizer. Fiz mais de uma centena de Virgens e cada uma corresponde a uma ideia particular. Entre aquelas em que realizei o que queria fazer poderia citar a do claustro de Solesmes, a que está na capela das Beneditinas de Vanves, ou ainda a do mosteiro de Santo André de Lophen, na Bélgica. Vá ver, em Aisne, o monumento dos mortos de Acy, onde representei o Anjo do Apocalipse pousando... depois venha me dizer o que achou.
Se quiser falar dos conjuntos que realizei, há primeiramente o de La Bourboule, que é considerável, pois compreende as esculturas do tímpano e dos capitéis, o altar e o sacrário, duas estátuas, uma Via Sacra em cerâmica, e uma pintura no batistério. Os capitéis foram talhados na própria lava, que é o material do lugar, e os da nave são enormes. Não é amassando bocados de terra que se pode avaliar semelhante trabalho.
Outro conjunto é o Oratório de São José du Mont Royal, em Montreal no Canadá, cujo arquiteto foi o R. P. Dom Bellot. Lá esculpi o altar-mor monumental, e acima do altar um calvário cujos personagens são maiores que o natural (a escultura do calvário foi feita em madeira para ser moldada no bronze). É o momento do Evangelho: “Exclamans magna voce, exspiravit”. Ao mesmo tempo, a Virgem Maria renova seu Fiat e São João nos toma como testemunha da grandeza indizível do sacrifício. O baixo relevo do altar representa a Ressurreição. Também esculpi ali os doze Apóstolos que, em razão da altura em que estão colocados, são muito grandes (têm quase quatro metros). Enfim pintei um afresco da morte de São José.
Meu último trabalho foi a decoração da cripta e da capela da casa matriz dos Oblatos de São Francisco de Sales, em Troyes. A cripta é dedicada a Santo Egídio, porque estava no lugar de uma igreja em madeira, do século XIII, queimada no bombardeio de 1940, que era dedicada ao mesmo padroeiro. Fiz toda a decoração, inclusive o altar. Pintei um afresco de 12 metros quadrados em hemiciclo, que representa a descoberta do eremita por um grupo de caçadores, que o acharam em sua gruta na companhia de um cervo. Figuram também os donos e os fundadores da Congregação, e ainda um talhador de pedras, de joelhos, que oferece a Santo Egídio um modelo do famoso Parafuso de Santo Egídio, escada em parafuso da famosa abadia de Camargue, lugar de peregrinação (como a Santa Baume, na Provença) dos “Compagnons”, talhadores de pedra do “Tour de France” 5.
Um elevador no andar superior tornou necessário dois alicerces de cimento armado. Decorei-os com duas estátuas de São Francisco de Sales e de Santa Joana de Chantal e de um baixo relevo da Visitação.
A capela superior, muito larga, foi centrada por um arco triunfal aplicado à parede e emoldurando o altar-mor. Nele foram esculpidos Moisés e Elias, as testemunhas da Transfiguração, que no relato de São Lucas conversavam com Jesus sobre o modo como ele devia morrer. Sob o arco encontra-se um grande Cristo em cruz e triunfante. O deambulatório da nave foi decorado com uma Via Sacra de grande dimensão. Só falta, para acabar esse conjunto, esculpir a estátua de Nossa Senhora da Luz, padroeira da capela.
Em todas essas obras me esforcei em aplicar à arte cristã, sem nada esquecer, os princípios eternos da grande arte reencontrada pela geração que nos precedeu. Como conclusão, vou ler um fragmento do prefácio que escrevi outrora para meu álbum de talhas diretas:
“Aos dezoito anos, com a pretensão própria dessa idade, via como objetivo de minha vida reformar a arte e o pensamento, no sentido do espírito francês, porque o achava mais universal. E isso, sobretudo, contra a filosofia e a música alemães. Dez anos mais tarde percebi que o que havia de universal no espírito francês era católico, e que a primeira coisa a reformar era eu mesmo.”