Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX
Santo Ambrósio disse que toda verdade, seja qual for, é obra do Espírito Santo. A verdade cristã, à primeira vista, apresenta um rosto eminentemente humilde e humano, porque se fundamenta no patrimônio de toda a humanidade, composto pelas verdades mais simples e evidentes. Este conhecimento se dá em dois níveis. No nível do vivido, é determinado pelo que nós chamamos verdades do senso comum; e, no nível científico, é constituído pelas verdades de ordem filosófica. O esforço filosófico, como parecem sugerir seus primórdios históricos, funda-se, de fato, em verdades do senso comum, que provocam a surpresa e a admiração dos homens ávidos de sabedoria. Em todo caso, o conhecimento natural começa, progride e termina sempre na realidade concreta. Pensar no nada equivale a não pensar, pois todo juízo é, em última instância, um juízo de existência.
Os sofistas, no tempo de Aristóteles, negaram esta postura natural e realista. As posições dos sofistas e do evolucionista Heráclito permitem-nos, de agora em diante, explicar as noções tipicamente modernistas em matéria de filosofia, para as quais estabeleceremos um epíteto característico. Denominaremos o agnosticismo de ignorantista; o imanentismo, de egologista; e à evolução, de revolucionista.
A investigação das coisas e das suas causas, a filosofia propriamente dita, começou com os gregos no século VI antes de Cristo. De todas as culturas antigas, foram eles, e somente eles, que nos ensinaram a pensar, uma vez que as demais civilizações baseavam-se em crenças religiosas e consideravam a razão como uma intrusa. Ora, quando se contempla a filosofia grega em seu conjunto, a primeira coisa que se observa é o estado de trevas que rodeava os raros gênios que a iluminam. A reflexão sobre a essência das coisas é uma tarefa árdua à natureza ferida. Foi preciso toda a serenidade e equilíbrio mental dos gregos para lançar-se à investida da verdade somente com a ajuda da experiência. Os primeiros esforços filosóficos foram reflexões na escuridão. Durante muito tempo, os gregos buscaram somente na matéria a causa de todas as coisas. Heráclito pertenceu a essa escola, mas suas teorias, mais que raciocínios no escuro, foram como a visão de um ébrio que acredita que tudo dá voltas ao seu redor: tudo muda, nada permanece, não há ser. Quando Parmênides opôs o ser à mudança perpétua, começou na Grécia uma guerra de titãs que terminaria estagnando-se no sofisma cético. Seja como for, vê-se que a filosofia, desde seus primórdios, interroga-se sobre a existência da matéria e do movimento, isto é, sobre a experiência concreta. Este é o ponto cardeal do pensamento humano, que veremos reaparecer continuamente ao longo das especulações helênicas.
Neste céu obscuro apareceram, então, sucessivamente, os três maiores luminares da sabedoria grega: Sócrates, com sua busca das essências; Platão, que só contempla as perfeições em suas causas mais elevadas; e Aristóteles, que se torna, para sempre, como que a estrela polar do firmamento filosófico. Se é verdade que certos homens encarnam o gênio de um povo, e que estes vastos e poderosos espíritos são como o ato e a perfeição em que todo um mundo de virtualidades alcança seu termo e seu acabamento, Aristóteles, mais do que qualquer outro, foi um desses homens. Nele, o gênio filosófico da Grécia encontrou sua expressão mais perfeita e universal.
Nascido em Estagira, cidade de Trácia, Aristóteles (384-322) viajou à Atenas aos dezessete anos para converter-se em humilde discípulo de Platão durante nada menos que vinte anos. O mestre apreciava o espírito vivaz de seu aluno, a quem chamava a Inteligência. Por outro lado, Aristóteles não hesitava em manifestar certa independência em suas ideias: «Sou amigo de Platão, porém mais amigo da verdade». Durante três anos, foi preceptor do filho do rei da Macedônia, o futuro Alexandre Magno. Pode-se pensar que os elevados pontos de vista de um mestre de tamanha envergadura tiveram muita influência no ideal de conquista e civilização universal de Alexandre. De regresso a Atenas, Aristóteles fundou sua própria escola no Liceu, que, em pouco tempo, eclipsou a Academia fundada por Platão. Morreu em Cálcis, aos sessenta e dois anos.
A herança aristotélica chegou à Europa de maneira indireta, através dos árabes da Espanha meridional, antes de fazer sua entrada triunfal nas universidades do Ocidente, no século XIII, e estimular poderosamente a cultura cristã. Como não ver uma intenção providencial no papel extraordinário que desempenhou essa sabedoria pagã, que se revelará como o instrumento perfeitamente apto para a teologia católica? Mas, por que, à exclusão de todos os outros sistemas, a teologia só pode servir-se das bases filosóficas de Aristóteles? A resposta é muito simples: Aristóteles soube estabelecer os fundamentos da verdadeira filosofia. Foi o único que pôs a inteligência humana no caminho da verdadeira sabedoria. Sua sabedoria é a filosofia eterna, válida para todas as latitudes e para todas as épocas, porque se baseia na intuição filosófica fundamental que se encontra na origem de todo conhecimento, tanto natural como sobrenatural. Aristóteles, contra os filósofos do seu tempo, admite que a razão humana conhece a realidade e pode dizer a verdade. Seus princípios são profundamente realistas, do início ao fim de toda sua investigação filosófica. Por isso mesmo são irrefutáveis, ainda que algumas de suas aplicações concretas tenham caducado com o progresso das ciências, como, por exemplo, a astronomia de Ptolomeu.
Para aqueles que se perguntam se devem pensar ou não, Aristóteles responde: Queiramos ou não, temos de filosofar. Não poderíamos evitá-lo ainda que o quiséssemos. Pois, declarar que a filosofia não tem valor é já adotar uma posição filosófica. Na tenra idade em que a inteligência se abre à realidade, já não se revelam os poderes mais naturais do homem? Nessa idade, a criança interroga os pais até cansá-los com seus «O que é isto?», seus «Porquê?» e seus «Como?». O homem faz o mesmo quando busca as essências, as causas e os princípios. Por sua vez, o adulto como a criança começa a filosofar no momento em que, confrontado com algo que o assombra, ele procura sua causa profunda. Admirado e surpreso, a princípio, diante das coisas mais humildes, pouco a pouco ele avança na admiração das coisas mais elevadas, como as mudanças da lua e do sol, até chegar, enfim, a se perguntar sobre a origem do universo inteiro. Diz-se que o homem é uma criança grande. Esta declaração é certamente verdadeira no sentido preciso de que, à imagem da criança, o homem faz filosofia (tão naturalmente) como respira.
A filosofia é essencialmente uma investigação, e, acima de tudo, a investigação das coisas reais. Se os Hamlets de todas as épocas apresentam-se a questão da existência, «Ser ou não ser, eis a questão»1, Aristóteles responde decidido, dizendo: «O ser é». Ele é o objeto de toda a verdade. Assim como não se põe em dúvida a própria existência ou o dom da vida, o sábio não põe tampouco em julgamento os fatos evidentes, como a natureza das coisas e a faculdade humana de conhecê-las. O Estagirita fundamenta toda sua filosofia na experiência: «A experiência é a mestra da filosofia». Cada uma de suas análises se apoia em uma experiência sensível, em uma intuição de algo concreto. Como poderia Aristóteles ter fundado a biologia sem dissecar porquinhos-da-índia, sem esse conhecimento experimental dos seres vivos? Ele, que era filho de médico, pôde criar múltiplas ciências porque sempre esteve próximo dos fatos, sempre à escuta das coisas, explorando as riquezas da natureza. Na realidade, a observação e a experiência do fato concreto determinam o desenvolvimento posterior de todas as ciências. Sobre essa base realista, finaliza-se o trabalho de fermentação intelectual que conduz à descoberta das leis científicas, que não têm outra ambição que a de adequar-se o melhor possível aos fatos concretos. Por outro lado, qualquer um que se dedique a questionar esse contato direto com as coisas compromete-se a destruir toda a ciência.
O que vale para as ciências físicas vale a fortiori para a ciência filosófica. Mais do que todas as outras ciências, ela é tributária do real, porque seu objeto é precisamente o ser enquanto existente. O filósofo não estuda somente o ser vivo do biólogo, ou o ser inanimado do físico, ou o ser quantitativo do matemático, mas estuda o que se encontra no centro mesmo do ser: sua existência íntima. O filósofo deve ir diretamente ao coração do ser, à realidade viva e concreta, sob pena de não ser filósofo. Se partisse de outro ponto, não seria nada. Seria como um lógico que negasse a razão, ou um matemático que negasse a unidade e a multiplicidade, ou um biólogo que negasse a vida. Cometeria o suicídio da filosofia, e não só da filosofia, mas também de toda a ciência. Porque toda ciência, sempre e quando é realmente científica, funda-se na filosofia, como afirma Einstein:
«Por mais “positiva” [descritiva] que pareça, a verdade teórica é uma espécie de metafísica obscura»2.
Os autênticos cientistas pressupõem sempre as verdades filosóficas, a existência de um universo real, a capacidade humana de conhecer a verdade, a causa por trás dos efeitos. Estas verdades, embora evidentes e triviais, são a condição necessária de toda verdade humana. Negá-las é reduzir o homem ao estado vegetal.
Se é um fato evidente que a razão é tributária do real, é igualmente fácil explicar por que tem de ser assim. De fato, compreender é informar-se e, portanto, receber uma forma do exterior. A inteligência humana vive e se enriquece na medida em que se abre ao exterior, porque por si mesma está vazia: não é mais que uma folha em branco na qual não há nada escrito. A inteligência humana, como as plantas, alimenta-se dos seres que a rodeiam. É justamente o oposto de um pensamento fechado ao mundo, confinado egoistamente em si mesmo, que jamais poderá desenvolver-se; porque não conhecer nada é não conhecer.
Aristóteles, da mesma forma que seu régio aluno, lança-se à conquista do mundo. Alexandre Magno queria mudar o mundo, submetendo-o à civilização grega. Aristóteles também pretende conquistar o mundo, mas sujeitando-o à sua inteligência. Esta é a única maneira de filosofar e de conquistar mundos. Longe de nós pensarmos que nossas ideias regulam as coisas; ao contrário, sabemos que são as coisas que regulam e ajustam nossas ideias. A inteligência humana é uma matriz que só está esperando ser fecundada pela realidade e afirmá-la como existente, dizendo: o céu é azul, o homem é racional. O vocabulário do conhecimento traduz perfeitamente esta submissão à realidade: o pensamento, fecundado pelo ser, dá à luz a uma concepção fértil, o conceito; este conceito do ser se chama ideia — visão — visão que é evidentemente a visão de algo; e então a inteligência intus-legit — lê por dentro — o livro aberto da criação, a mensagem inteligível da sabedoria divina.
Diante do universo que a rodeia, a atitude da inteligência humana não é a de um artesão que fabrica o mundo, o homo faber, mas a de um contemplativo, o homo sapiens. O conhecimento é extático porque nos coloca literalmente fora de nós mesmos, e nos torna capazes de abarcar e nos converter no outro, sem deixar de ser nós mesmos. A filosofia, ciência contemplativa do mundo criado, chega a seu ponto culminante com a contemplação do Incriado, a teologia natural. Como nos recordam as Sagradas Escrituras:
«As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis desde a criação do mundo pelo conhecimento que delas nos dão suas criaturas»3. «Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento proclama as obras de suas mãos»4.
Aristóteles prova a existência de Deus pelo estudo do movimento e pela ordem que há na natureza5. Chama Deus de ser vivo, eterno e perfeito, porque n’Ele está a vida eterna. Deus é o Ato puro, a Inteligência pura que se contempla a si mesma. O Filósofo conclui sua Metafísica dizendo que Deus é uno, porque a multiplicidade de superiores não é boa: é necessário que um só governe. Aristóteles demonstra, assim, que o espírito humano, em boa lógica, só pode escolher Deus ou o absurdo. E todos os esforços dos maus filósofos e dos modernistas para negar o além não fazem senão reforçar essa tese, pois sempre naufragam na mais lamentável contradição.
Atenas era, no século V antes de Cristo, o ponto de encontro intelectual de todas as escolas filosóficas, mas a confrontação entre elas revelou amargamente suas limitações e contradições. Foi nesse contexto que apareceu então a espécie tão desonesta quanto improdutiva dos sofistas, a quem seria melhor chamar soficidas — assassinos da sabedoria. Eram professores ambulantes, mais ávidos dos benefícios da ciência que da verdade que desesperavam alcançar. Praticavam atos de ilusionismo intelectual. Incapazes de realizar algo construtivo, dedicaram-se a criticar todas as coisas. Para esses homens, da mesma forma que para as crianças, a destruição era o modo mais fácil de demonstrar sua força. Dois aspectos da escola sofista devem prender nossa atenção: o agnosticismo - como aspecto negativo - e o imanentismo - como substituto positivo. Veremos, na sequência, o sistema de Heráclito, embora tenha precedido historicamente os sofistas.
Górgias é o melhor representante do aspecto ignorantista dos sofistas: a negação da verdade. Tornou-se célebre por sua tríplice declaração:
«Nada é real. E ainda que algo existisse, não poderíamos conhecê-lo, pois o objeto muda, enquanto que o pensamento permanece. E mesmo que pudéssemos conhecer o ser, este conhecimento seria incomunicável, porque o pensamento permanece, enquanto que a palavra é fugaz»6.
A este suicídio intelectual, Sócrates respondeu com o otimismo da inteligência. Assim se fez porta-voz do senso comum, um sentido inato e idêntico em todos os homens. Negue a existência da luz e todo o mundo zombará de você! Ora, este mesmo senso comum protesta a favor do realismo dos nossos conhecimentos.
Entre os sofistas, Protágoras representa a corrente subjetiva ou egologista.
«A verdade depende do parecer de cada pessoa, de modo que um mesmo objeto pode ser branco para um e negro para outro. Há dois discursos para cada coisa, contraditórios entre si. O homem é a medida e a razão de todas as coisas: das que existem, faz que elas existam; e das que não existem, faz que elas não existam»7.
Aristóteles lhe respondeu indiretamente ao dirigir-se aos pitagóricos, não sem certa pitada de humor:
«Quando as coisas não concordavam com seus números, eles as corrigiam, ajudando, deste modo, Deus a construir o mundo»8.
Todas estas pessoas partem unicamente do pensamento e nele permanecem. Desde o princípio, combatem os fatos concretos que dão estabilidade e consistência ao pensamento, e, sem os quais, ele nada mais é que um sonho. Estes subjetivistas, idealistas e imanentistas, seja qual for o nome que se lhes dê, negam o fundamento essencial do conhecimento. Rejeitam a realidade que os sentidos veem, tocam e percebem, e que se dirige a uma inteligência humana, não a um anjo. São investigadores que nada investigam. Estes homens, vítimas das suas alucinações fantásticas, estendem freneticamente as mãos para, em vão, pegar o objeto das suas quimeras. Não são filósofos, mas ideósofos, estudantes do pensamento e das ideias, e não homens desejosos de conhecer o que é.
De todos os seus predecessores, nenhum sofreu tanto os ataques de Aristóteles como Heráclito (540-475). Isto se deu porque seu sistema era o contrário do realismo aristotélico. Ao afirmar o ser das coisas e sua natureza, Aristóteles pretende poder conhecê-las. A inteligência pode conhecer as coisas porque elas são. Heráclito nega o ser, e, por isso mesmo, nega também a faculdade do ser, que é a inteligência. Em sua disputa com Parmênides sobre a mudança, ele faz sua escolha entre o ser e o devir. Segundo ele, se o ser é admitido, a mudança é impossível; ora, a mudança existe:
«Tudo muda, tudo se move, nada se detém. O universo é como um rio. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. O fogo é o elemento onipresente e a causa de toda mudança. É a contradição mesma, porque o que é, enquanto é, não é. O fogo é algo vivo e divino, o princípio supremo, mas ao mesmo tempo impessoal e imanente no mundo. É a identidade entre Deus e o mundo. A própria alma humana, faísca procedente da grande fogueira universal, ao fim voltará a ela, dotada de uma imortalidade impessoal».
Faz, também outra comparação para explicar a mudança:
«A guerra é a causa de todas as coisas. Descemos e não descemos o mesmo rio; somos e não somos; a água do mar é, ao mesmo tempo, a mais pura e a mais contaminada; o bem e o mal são uma única e mesma coisa. Tudo se separa e tudo se une: o mesmo ser vivo está morto, o animal vive da morte da planta»9.
Estas palavras têm um tom mais que marcial, talvez quase marxista, mas certamente modernista e destruidor da inteligência e do ser. A guerra heracliteana, fonte da contradição e do caos universal em perpétua evolução, só pode gerar a destruição.
Em sua defesa do princípio de não contradição, Aristóteles não se expressa com rodeios:
«É impossível que a mesma coisa tenha e não tenha o mesmo ser. Pouco importa o que Heráclito, como alguns pretendem, tenha opinado sobre o tema, porque não é necessário que se pense o que se afirma»10.
Aristóteles explica que o erro de Heráclito foi negar as essências, que são o sujeito imprescritível da mudança. Negou as essências porque confundiu sentido e razão, ver e saber; porque seus olhos só foram capazes de ver as coisas sensíveis em perpétuo movimento. Como se os dados dos sentidos fossem suficientes para proporcionar o verdadeiro saber! Os sentidos, com efeito, percebem a trajetória de uma bola no ar, mas não que a bola continua sendo idêntica a si mesma. O dedo submergido na água que está sendo aquecida sente o frio e o calor, sem perceber que a água que se esquenta é a mesma. O mundo de Heráclito é uma pura mudança, um voo de pássaro sem pássaro, uma corrida sem corredor, um crescimento sem o ser que cresce. Teria ele percebido que, da mesma forma que aquele animal lendário da Idade Média que comia seus próprios pés, seu sistema de pura mudança acaba por destruir o próprio movimento? Ao reduzir a inteligência humana ao conhecimento sensível próprio dos animais, Heráclito é levado a reduzir o mundo visível ao puro movimento, quer dizer, ao nada.
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Desde os primórdios do esforço filosófico, alguns espíritos se desencaminharam, embriagados pela fugacidade das coisas e pelos vapores opacos do mundo sensível, que oculta o mundo inteligível. O pensador Marcel de Corte julga com dureza estes intelecticidas:
«A maioria dos nossos contemporâneos que romperam deliberadamente com o real e com sua própria realidade são adolescentes tardios que não puderam resolver psicologicamente sua crise da puberdade. Por isso, estes efebos perpétuos veem-se obrigados a construir um mundo de quimeras… Na ordem intelectual e moral, não suportam a realidade, porque sua débil inteligência não pode perfurar sua cabeça dura e tenaz. Por isso a negam. Querem aniquilá-la, porque sua simples presença manifesta sua fraqueza. Um ato de humildade diante dela, uma confissão de seu mistério, seria, ao menos, um reconhecimento de sua existência. O adolescente tardio nega-se a isso: já não pode sequer, seja qual for sua idade, sair de seu eu em que o aprisiona a crise permanente que sofre. Seu narcisismo constitucional também o obriga a satisfazer-se com as representações mentais saídas de sua própria substância, e então ele impõe o modelo a todas as coisas para criar um mundo acessível e não acede, nem nunca acederá, senão a ele. Ele constrói esse mundo mundo, esse homem novo, esa sociedade nova, porque ele adora a si mesmo.” 11.
Ao fazer um diagnóstico tão severo da inteligência moderna em perigo de morte, o autor nos dá a chave da tragédia modernista: a negação do ser, a negação do outro e, portanto, a negação do Outro que é o Ser por excelência, o único que pode fazer-nos viver, porque é a Vida. O homem, ao enclausurar-se sobre si mesmo por amor próprio, condena-se à morte, pois, sendo uma pobre criatura, por si mesmo nada é. E ao amar-se e fechar-se sobre si mesmo, envenena-se e morre de inanição. Sufoca o germe da vida intelectual e moral que só pode alcançar seu pleno desenvolvimento abrindo-se ao ser e à fonte de vida. É exatamente o que sugerem as palavras evangélicas, em uma ordem de valor muito mais sublime:
«Aquele que amar sua vida, perdê-la-á; mas aquele que perde sua vida por Mim, a salvará»12.
(Cem Anos de Modernismo, cap. 1. Tradução: Ricardo Bellei)