APRESENTAÇÃO, por ALFREDO LAGE
Nenhum pensador atual descreveu com mais dramaticidade — no plano das idéias — a subversão racionalista e idealista da inteligência, e as conseqüências que daí resultam para a cultura, do que Marcel de Corte.
A ciência moderna é um processo peculiar de investigação da realidade. Incentivada, de um lado, pelos altos vôos do racionalismo cartesiano e, de outro, pela miúda curiosidade do empirismo, a ciência de si mesma independe dessas conceptualizações. As falsas filosofias que, por um paradoxo da nossa condição, outrora impulsionaram a pesquisa — e que a ciência hoje mais do que nunca dispensa — continuam contudo a espalhar a sua deletéria influência sobre a cultura e as ciências do homem.
De seu lado, a técnica encontra um justo lugar no conjunto de uma visualização do mundo que a subordina a um projeto civilizacional de caráter eminentemente humano e ético. Mas sob a égide do cientificismo, a atividade técnica exorbita de seus limites, expulsa a contemplação e substitui a sabedoria por uma astúcia infinitamente aperfeiçoada de inseto.
O labor da ciência deixa metodicamente de parte as afirmações sobre o ser e as causas universais. A noção de verdade que utiliza é relativa. Relativa não à realidade, ou ao que é, mas a uma praxis que constitui, num domínio estritamente especializado, a verificação de uma hipótese ou de um programa de trabalho. E, como diz Selvaggi, em ciência não se busca em primeiro lugar saber se a hipótese é verdadeira ou falsa, mas apenas se é fecunda.
"Verificar uma teoria não é provar que é verdadeira, é determinar se é utilizável". A teoria científica (escreve ainda a autora dessas linhas) "é um meio cômodo de exprimir de maneira coerente as relações encontradas entre um certo número de fenômenos, num campo limitado..." Sua finalidade principal portanto é "não propriamente explicar, mas prever, e levar a um progresso do conhecimento". ("Por exemplo, as descobertas de Jacob e Monod eram menos uma explicação da síntese das proteínas do que a descrição de um objeto inventado e um programa de experiências").
To Know more and more about less and less é portanto uma conseqüência inevitável dessa opção. E acaba sendo um vezo do pensamento. Para a inteligência moderna, escreve Maritain, toda espécie de saber universal e unificante é letra morta" (Ibid.).
Mas que acontecerá se se pretender substituir em filosofia a noção de verdade pela de verificação, e se uma falsa filosfia, não contente de deturpar o método científico, tomando-o como um tipo de explicação das coisas, ainda por cima generalizar essa noção, estendendo-a a uma pretensa explicação do universo?
Nesse caso "o ideal do engenheiro que age sobre as coisas substituirá o do sábio que as contempla". Não só a técnica, ou melhor a perspectiva técnica, se isolará da vida, mas inevitavelmente pretenderá sobrepor-se e regê-la, "condicionando o conjunto da visualização do mundo e do homem" (Cottier).
O resultado é a barbárie tecnológica. Contra essa desgraça é que, com incomparável vivacidade e um precioso senso dramático das idéias, nos adverte Marcel de Corte no seu recente estudo "L'Intelligence en Péril" de que damos abaixo, em tradução, os trechos mais importantes.
A INTELIGÊNCIA EM PERIGO
Foi no século XVIII que se romperam de todo as relações entre a inteligência e o real e entre o homem e o universo. Neste ponto todos os historiadores estão de acordo. Mas por que se consumou nessa época a tal ruptura? Porque se esboroa no século XVIII a concepção tradicional e realista do mundo que, de Atenas a Roma e de Jerusalém a Roma, ainda, fora a da Europa pensante e atuante?
A razão é simples. Uma concepção do mundo não paira desencarnada num inacessível éter. Ela se incorpora à vida dos homens, e como é partilhada por eles, encarna-se também nas instituições criadas pelas comunidades humanas. Por pouco que as elites portadoras dessa concepção dela se desapeguem, renunciem a vivê-la, substituam-na por outra menos austera, mais brilhante e mais acariciante para seu orgulho, eis que a concepção oficial do mundo começa a vacilar, abalada. Bastam algumas frestas nos pontos críticos para que o edifício venha abaixo, corpo e alma. Quando o alto clero se diverte renegando Deus e exaltando o homem nas lojas maçônicas, quando a aristocracia faz-se discípula de retóricos e rabiscadores de papel, por talentosos que sejam, pode-se dizer brutalmente que estamos “no fim da picada”. Pequenas causas, grandes efeitos, diz o provérbio. Como assegura Augusto Comte, com admirável acuidade, “nessa matéria — essa é uma regra universal — nunca há proporção entre o efeito e a causa”. Uma mulher atravessa a vida de um chefe de empresa e eis que uma usina periclita. O nariz de Cleópatra é eterno.
É desnecessário refazer aqui as análises de Tocqueville, de Taine, de Augustin Cochin, e recordar a fascinação exercida pelos literatos sobre a aristocracia e o clero do século XVIII, sua crítica da civilização tradicional, sua deificação da razão, a vontade de destruir uma sociedade que não lhes concedia o lugar a que se julgavam com direito; os pruridos de igualdade, a denúncia dos privilégios e sobretudo a prodigiosa habilidade com que esses intelectuais transformavam as próprias paixões em princípios imutáveis de direito e resolviam todos os problemas humanos apelando para o discurso, o escrito, a discussão, a conversação mundana, os colóquios de salão, de capela, de clube, de cenáculo, os debates de assembléias, as palrices de sociedade, enfim o “diálogo” universal, como hoje diríamos.
Mas essa inopinada e espetacular ascensão dos especialistas do verbo, da pena, do manejo de idéias e representações mentais (e das palavras que as exprimem), não passa do aspecto sociológico de uma mudança muito mais profunda. Assistimos no século XVIII — e a aventura não terminou ainda — a uma mutação do espírito humano. Chegada esta mutação agora a seu apogeu, e talvez a seu termo, podemos descrevê-la com precisão.
Com efeito, até o século XVIII os acontecimentos com que costumamos demarcar a história humana: guerras, invenções técnicas, descobertas geográficas, migrações, fundações de Estados, reinos, impérios, o advento de gênios, de santos e de heróis, as transformações sofridas pelas idéias religiosas etc., os acontecimentos que serviram para assinalar as etapas da História, repito, afetaram sem exceção o ser humano na sua própria vida. Nenhum deles foi originalmente um evento puramente intelectual, nem mesmo a invenção da lógica por Aristóteles (da qual o menos que podemos dizer é que conferiu ao espírito humano o seu definitivo estatuto), pois a arte do raciocínio é obra menos da razão do que do próprio homem, do homem de carne e osso que utiliza a sua razão. Conforme o dito profundo do Estagirita, não é o pensamento que pensa, é o homem que pensa por meio do pensamento. Nenhum desses eventos jamais afetou a inteligência em si mesma. Sejam quais forem os efeitos e defeitos que provocaram, nunca a inteligência deixou por causa deles de ser a faculdade que conhece o real, a ele se conformando. Em nenhum caso foi contestada a primazia da atividade própria da inteligência, que é contemplar a verdade. A função primordial do espírito humano jamais deixou de ser a função de conhecer, a “theoria”. O mais elevado tipo de vida, a vida contemplativa, de que Virgílio nos transmitiu o segredo:
Felix qui Potuiu Rerum Cognoscere Causas
foi sempre considerada o cume da sabedoria e da felicidade. Por mais que se diga, essa absoluta prioridade da inteligência submetida ao seu objeto não foi contestada pelo Cristianismo. O amor não suplantou a inteligência, pois, se Deus é Amor, foi necessário que ele se fizesse conhecer como tal aos homens e lhes ensinasse a Boa Nova.
Reconhecer-se dependente em face da realidade e do seu Princípio transcendente, confessar ao mesmo implicitamente o laço nupcial que une o ser do homem ao ser universal e à sua Causa, eis a condição essencial imposta ao exercício da inteligência; condição que, através dos mais diversos acontecimentos, sempre ela observou. Mas se no seu ato primeiro, ao invés de voltar-se para a realidade extra-mental, a inteligência se redobra sobre si mesma e ai deita um olhar noturno de comprazimento, por outras palavras, se essa faculdade (conforme a fórmula antiga) se recusa a ser medida pelas coisas para apresentar-se como sua medida, então, tendo repudiado a sua função própria e rejeitado a lei dessa função, o intelecto deixa de conhecer as coisas. Antes do século XVIII via-se o conhecimento ligado ao poder intelectivo de comunicação, logo de consentimento, de aceitação e de docilidade para com o universo e sua Causa. Depois do século XVIII, o pacto original foi rompido: a inteligência assume o papel de uma soberana que governa, rege, domina e tiraniza a realidade. Do alto de sua transcendência, projeta leis exclusivas sobre o mundo, ordena-o de conformidade com os seus imperativos. A razão considera-se a força criadora que se desenvolve e progride na humanidade, que se desdobra através de todo o universo a fim de dar realidade a esse universo e de converter a humanidade numa “verdadeira” humanidade. A inteligência não mais recebe do real a sua lei, mas impõe suas normas à realidade.
Os filósofos do século XVIII perceberam a reviravolta, (de que tinham, aliás, a iniciativa) na atividade da inteligência. Confessadamente, a Enciclopédia foi criada “para mudar a maneira comum de pensar”. Com efeito, trata-se de inverter, senão de subverter completamente o ato do conhecimento. A inteligência deixa de ser feita para contemplar a ordem do universo, e para compreendê-lo; deve agora constituí-lo a partir das regras que descobriu conhecendo-se primeiramente a si mesma e que depois impõe à realidade. Doravante compreender é dominar. Descartes formulou, de uma vez por todas (no seu modo de ver) a nova carta da razão: o conhecimento que a razão tem de si mesma e do seu método cognitivo torna o homem “maitre et possesseur de la nature”.
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Esse império da razão e das luzes se exerce de duas maneiras, tão discricionárias uma como a outra, e anodinamente denominadas análise e síntese. A primeira decompõe o real em elementos simples; a segunda o reconstrói a partir desses mesmos elementos. Em ambas essas fases, a razão manifesta sua onipotência por meio de um trabalho de dissolução e de reconstituição conforme normas por ela mesma promulgadas. Daí por diante conhece o real não porque dele receba uma impressão mas, ao contrário, porque nele imprime a sua marca de fábrica. Para conhecê-lo realmente, conforme o espírito do século XVIII, é mister, pois, refazer o objeto, produzi-lo por composição e, por assim dizer, construí-lo. Só nesse caso perde o conhecer o seu mistério: uma realidade que não pode ser inteiramente recriada pelo espírito permanece obscura para o espírito, ao passo que um ser construído por ele é-lhe inteiramente transparente, de parte a parte transluminoso. Só conhecemos realmente as coisas feitas por nós. Saber é fazer. Toda atividade cognitiva é atividade construtiva. A atividade poética suplanta completamente a atividade especulativa. Esta foi hoje completamente eliminada pela práxis. O Kantismo sistematizou essa nova atitude do pensamento humano. Podemos reduzi-lo a três proposições: a inteligência é incapaz de apreender o inteligível presente no sensível e a ordem “numenal” inteiramente lhe escapa; a função da inteligência é organizar num todo coerente a multiplicidade das sensações e das imagens que lhe aparecem, e em vez de ser fecundada pelo mundo real, ela é que fecunda o mundo dos fenômenos e lhe confere um sentido; o homem não mais é um ser fundamentalmente relacionado com a plenitude do ser; é uma Razão identicamente presente em todos os seres humanos, a qual de si mesma fabrica um sistema de relações cuja trama projeta na diversidade do mundo sensível; dessa trama a razão é o vínculo inteligível.
Adriano Tilgher, historiador do trabalho na civilização ocidental, formulou de maneira notável essa inversão da atividade intelectual do homem moderno: “Kant foi o primeiro a conceber o conhecimento como um dinamismo sintetizador e unificador que, do caos dos dados sensíveis, e por meio de procedimentos fundados nas leis imutáveis do espírito, extrai o cosmos, isto é, o mundo ordenado da natureza. O espírito aparece assim como atividade que tira de si mesma a ordem e a harmonia. Conhecer é fazer, é produzir: produzir unidade e harmonia. A idéia de ação produtiva fica implantada de vez no cerne da especulação filosófica. Desde o criticismo de Kant até as formas últimas do pragmatismo, toda a história da filosofia moderna, nas suas correntes significativas, é a história do aprofundamento dessa concepção do espírito como atividade sintética, como faculdade produtiva, como criação demiúrgica... Só conhecemos de fato o objeto que produzimos. Mas que produz o homem realmente? Certamente não produz os dados últimos das sensações; estas lhe são impostas de fora; estão nele mas não são dele. O que lhe é facultado, graças à sua atividade, é combinar de diversas maneiras esses dados últimos, de modo a torná-los obedientes as suas necessidades, à sua vontade, ao seu capricho; assim substitui pouco a pouco a natureza real, natureza-naturada, por uma natureza de laboratório, de usina, que conhece porque a fez, que é clara a seus olhos porque é obra sua. O problema do conhecimento recebe uma solução prática. A técnica resolve praticamente o problema do conhecimento.”
Indubitavelmente, estamos diante de uma real mutação da inteligência humana, e portanto do homem. O próprio Kant sabia-o claramente. Estava convencido de que procedera em filosofia a uma revolução coperniciana. Em vez de gravitar em torno das coisas, o espírito é o centro em derredor do qual as coisas gravitam, como os planetas em volta do sol. Só restará a Marx estipular as conseqüências dessa subversão: “A crítica da religião remove as ilusões infantis, faz que o homem se ponha a pensar, agir, a modelar a sua realidade como um homem sóbrio chegado à idade da Razão, e assim comece a girar em torno de si mesmo, seu verdadeiro sol. A religião não passo do sol ilusório que se move em volta do homem, enquanto o homem não se mover em torno de si mesmo.”
Mas antes já de Marx, Feuerbach definira essa mutação e essa subversão da inteligência, a provocar desastres que ainda ressoam na alma dos homens de hoje: “O objeto a que se destina essencialmente e necessariamente o sujeito não é senão o ser próprio do sujeito”; em outras palavras, o objeto da inteligência humana é a própria inteligência, que a si mesma se apreende no seu élan criador, e que consigo coincide enquanto princípio de si mesma e do mundo. A inteligência é um Narciso, não imobilizado em autocontemplação, mas que, diante do espelho, cria-se a si mesmo, criando o mundo, e que progride sem esmorecer para a sua própria apoteose. “O ser absoluto, o Deus do homem, prossegue Feuerbach, é o ser próprio do homem.”
Tal é a infalível conseqüência da mutação da inteligência acuada à deificação. Com efeito, se o espírito é uma faculdade produtora, e o conhecimento é um trabalho de produção, conhecer será não mais (conforme o brocardo famoso) “tornar-se o outro enquanto outro”; será agir sobre os seres e as coisas a fim de torná-las inteligíveis, substituindo a idéia que delas temos por outra idéia e transformando-as conforme essa nova representação. Doravante, só conhecemos o que fazemos. O mundo só é mundo na medida em que a inteligência do homem o constrói. Está visto, o homem não cria as próprias sensações. Recebe-as ainda do exterior. Mas esse mundo exterior, de que parece tributário, a falar propriamente não é conhecido, não é mais que uma espécie de matéria plástica em que a inteligência humana imprime a sua efígie. Graças a esse trabalho da inteligência aplicada sobre os dados sensíveis, pode o homem transformar portanto o mundo exterior de maneira a torná-lo obediente aos seus desejos, dócil ao que estima útil ou necessário, enfim plasmável a todas as exigências de sua vida individual e social. O exterior não mais resiste ao homem. Graças à fissão do átomo, seu último reduto foi forçado. O mundo é pois transformável à vontade. Nada tem mais de misterioso e de sagrado. Caeli et terra non enarrant gloriam Dei. O mundo torna-se o que o homem discricionariamente determina. Reina sobre ele o homem como um deus ou um demiurgo. E quanto mais acentua seu império sobre o mundo, tanto mais o homem se erige em absoluto, e tanto mais se substitui ao Criador, propondo-se como um ser que prescinde de Deus, que se basta a si mesmo e que por si só se constrói com total independência e liberdade.
Essa imensa aspiração para a asseidade e a divindade, essa prodigiosa auto-suficiência e idolatria de si mesmo inaugurada pelo Cogito cartesiano, entronizada pela Razão Kantiana, levada ao apogeu pelo Espírito hegeliano, magnificada no homem por Feuerbach e encarnada por Marx no comunismo (em que o homem faz uma volta completa sobre si mesmo e se reconhece “como a mais alta divindade”, que “não tolera rivais”) não é apenas apanágio dos filósofos. Essa aspiração propagou-se na humanidade inteira, com fulminante rapidez, graças à difusão das “Luzes”, isto é, a expansão universal da instrução pública e a proliferação da classe dos intelectuais. E isto é bem compreensível.
Nada é mais difícil do que compreender a realidade dos seres em toda a sua profundeza: em face do menor grão de areia, a inteligência é remetida à totalidade do universo e a Deus. O real resiste ao espírito; apreender a sua natureza íntima é obra de largo fôlego; a experiência desempenha nisto um papel imenso, que é preciso incessantemente reativar. Não acontece o mesmo com as idéias e as representações mentais, filhas do pensamento, dóceis servas que sem rebeldia se submete aos desígnios, desejos e projetos do seu amo. O intelectual reina discricionariamente sobre o seu mundo interior. Nada é mais inebriante do que esse jogo de idéias em que o jogador triunfa infalivelmente, contanto que a idéia distenda ao extremo ou rompa as comunicações com a realidade e que, no interior do cérebro ou na linguagem, seja abolida a dura lei de confrontação com a experiência, a submeter as representações a um implacável controle! Essa fraude é de incrível freqüência no intelectual. Para ele, quase sempre, os conceitos e as palavras, sinais que deviam traduzir o real, substituem-no, fazem as vezes do mundo tal como ele se revela à observação e à inteligência objetiva. O hábito que há tanto tempo adquiriu de manipular com a maior facilidade esses signos ideais ou verbais comunica ao intelectual a impressão e logo a convicção de que ao manejar fórmulas, agarra a própria realidade (...)
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Não espanta pois que a nova concepção do homem e do mundo chamada idealismo granjeasse tão vivo e tão pronto sucesso, particularmente entre a gente ensinante onde, sob nomes diversos, que vão do existencialismo ao marxismo e ao estruturalismo, o idealismo conserva posições sólidas e, se levarmos em conta as condições de recrutamento do corpo docente, posições até inexpugnáveis. O idealismo atrai os espíritos que se arrepiam diante do esforço exigido para desposar o real e que, a despeito de sua alienação ou por causa dela, pretendem oferecer uma solução para todos os problemas humanos, mesmo ao preço da supressão desses problemas e do seu caráter humano. ... Onde — perguntamos — se encontra a verdadeira capacidade criadora: nos artifícios do discurso, falado ou escrito, ou no labor da inteligência graças ao qual o germe inteligível contido no sensível floresce e produz o seu fruto? Que é mais difícil: descobrir a ordem natural do universo ou encerrar os seres e as coisas no quadro de fórmulas, mesmo matemáticas?
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O caráter distintivo de uma inteligência que se redobra sobre si mesma e proclama o seu poder demiúrgico é destruir o mundo que o senso comum considera como real e substituir-lhe um mundo artificial, construído no cérebro dos filósofos, dos sábios, dos juristas, dos homens de Estado, construído em parlamentos, centros de administração, “thinking departments”, laboratórios ou até em células de conventos e em palácios episcopais. Ninguém vive sem mundo em torno de si. Se o mundo que o homem não fez vai desaparecendo, será preciso inventar outro. Uma inteligência desse tipo gera necessariamente uma civilização de estilo técnico, como a presente, da qual a sabedoria, tanto no sentido metafísico como no sentido moral, é eliminada em proveito dos métodos diretivos de operações que tornam as atividades humanas capazes de construir um mundo e uma humanidade novas, a que o homem estará perfeitamente adaptado. As técnicas da inteligência formal permitem ajustar cada vez mais adequadamente o homem, nas suas atividades psicológicas, econômicas e sociais, senão na sua consciência pessoal, ao mundo exterior tecnificado. Do mesmo modo, aproximadamente, uma máquina é ajustada a outra máquina. Nessa concepção do mundo e do homem, os sábios (sages) que conhecem a natureza e o sentido do universo e do homem na sua relação com Deus e que, de maneira eminente, realizam na sua vida o tipo moral do homem que possui um juízo seguro nessa matéria, os sábios-sages, repito, são substituídos pelos experts, pelos técnicos dos mecanismos individuais ou sociais, os sábios-savants, competentes, capazes de dar uma solução prática ao entrelaçamento dos complexos problemas que os defrontam, enfim os engenheiros de almas, como dizia Stalin, que em face do mundo e do homem se comportam exatamente como o engenheiro diante da matéria a que o seu gênio inventivo imprime uma forma artificial...
Importa dizê-lo e redizê-lo, a tal ponto esse fato, de uma solar evidência, é desatendido: dos três gêneros de atividade que caracterizam a inteligência humana, a saber, contemplar, agir e fazer (theorein, prattein e poiein) apenas o terceiro subsiste. A vida contemplativa cedeu o lugar à vida ativa. Mas se, com toda a tradição filosófica do Ocidente e com a própria linguagem, distinguimos entre o domínio do agir, que é o da vida moral, e o domínio do fazer, ou atividade fabricadora do espírito, cuja amplitude abrange desde os ofícios mais diversos até as belas artes, e de modo geral refere-se às modificações causadas no mundo exterior pelo gênio humano, é preciso constatar, a menos de estar afetado de cegueira, que as esferas até aqui reservadas à atividade teorética e à atividade prática são agora invadidas pela atividade “poética” do espírito: nada — nem o próprio homem — escapa à transformação universal empreendida a partir do século XVIII.
Encontramo-nos na era do pragmatismo anglo-saxão e da práxis revolucionária, russa ou chinesa, inaugurada pelo cartesianismo (“por sabedoria entendemos... um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem é capaz de saber... a fim de manter-se saudável e inventar todas as técnicas”), instaurada pela burguesia triunfante e coroada pelo comunismo. A inteligência e os costumes vêem-se ameaçados até as suas obras vivas.
Com efeito, se a inteligência não mais é medida pelo que é, pelo que dela não depende, como os princípios imutáveis e as naturezas que permanecem, não há mais verdade. Condenar ao ostracismo a sabedoria especulativa equivale rigorosamente a banir toda certeza objetiva. Ora, se não há mais verdade, tampouco há moralidade, pois a ação moral pressupõe que conheçamos a natureza do homem e do fim a que ele se deve orientar. Nihil volitum nisi praecognitum. Sem uma prévia sabedoria especulativa, ao menos implícita, é impossível distinguir entre o bem verdadeiro, o bem aparente e o mal. Todas as condutas se relativizam: o que ontem era bom torna-se hoje mau e vice-versa. Imerso num mundo onde nada mais é, onde tudo vem-a-ser, o homem carece de um ponto fixo a fim de orientar-se. Todas as direções se equivalem. Sem estrela e sem bússola, vê-se ele obrigado a navegar ao acaso. Como não mais obedece a nenhuma indicação, resta-lhe apenas a sua subjetividade projetada ad-extra, e cujas representações exterioriza na matéria que transforma. O mundo resulta da objetivação da subjetividade. É obra de uma inteligência que nenhuma necessidade mais determina, cuja independência é total, que a nenhuma lei, a nenhuma necessidade se submete, que age a seu talante, e outra qualquer linha de conduta desconhece a não ser o puro e simples arbítrio da subjetividade. “Sera-t-il dieu, table ou curvette?” pergunta o Fabulista. No caso, não é a inteligência que decide: ela fornece apenas o repertório das representações que se podem imprimir na matéria. Uma decisão arbitrária emana da vontade isolada, da vontade polarizada e orientada por seu próprio élan, pelo seu mero empuxo, por sua potência irresistível e cega, a menos que encontre um obstáculo a suas forças. Sit pro ratione voluntas. Em toda forma de atividade poética ou técnica a proscrever e suplantar a contemplação e a ação moral, a inteligência tomada como faculdade do real vê-se eliminada em favor da irracional vontade de poder.
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Num tal universo não só a inteligência é despojada de seu objeto próprio: o ser, e de todas essas realidades que nos são superiores e de que dependemos, mas as substitui pelo imaginário ao qual a vontade de poder se esforça por conferir um estatuto de realidade e uma feição racional.
Isso é compreensível. A atividade intelectual não dispensa um objeto. Sem objeto não pode exercer-se. Exige, pois, um sucedâneo, e o único que encontra para sair de si mesma e deixar o recinto murado da subjetividade, são as suas próprias representações, que converte em realidades. Servindo-se dessas representações, terá que fazer alguma coisa que lhe seja exterior; o que exige um prévio esquema, uma maqueta, um plano, em suma, uma imagem material qualquer da coisa a ser feita. Para exercer uma atividade fabricadora é preciso recorrer à imaginação. Assim, a recusa de submeter-se à realidade leva a inteligência a renunciar a direitos, pretensões e prerrogativas em favor da faculdade imaginativa. Mesclam-se, confudem-se, até o cerne, o objeto da inteligência e o objeto da imaginação. Mais ainda, o primeiro se subordina ao segundo: a realidade desmantelada pela análise intelectual é recomposta e re-articulada segundo novos padrões. Configura-se assim uma representação imaginária de que a vontade de poder se apodera a fim de construir um mundo que será por ela dominado. E não é só isso: toda a atividade intelectual propriamente dita: a intuição, o juízo, o raciocínio, a interrogação, a pesquisa, o cálculo, a medição, a suputação, a heurística, a invenção etc., toda a atividade intelectual, repito, é ordenada à produção de modelos que a imaginação propõe à vontade de poder e que esta tentará converter em realidade.
Vivemos assim, ou melhor, fazemos de conta que vivemos e existimos num mundo de aparências, um mundo que se faz e desfaz perpetuamente, pois o próprio do feito é ser desfeito; o que caracteriza o artifício é gastar-se e ser substituído por outros artifícios, sujeitos por sua vez à mesma sorte. Por isso a tentativa de substituir o mundo das naturezas e das essências por um mundo criado pelo homem está fadada a um perpétuo recomeçar. Tão logo é realizado, despedaça-se o imaginário no rude embate com as realidade permanentes, que o homem em vão se gaba de alterar. A imaginação repõe-se logo ao trabalho. A exclamação do Fabulista:
“Il Nous Faut du Nouveau, N’em Fût-il Plus au Monde”
torna-se a divisa e a palavra de ordem do homem contemporâneo. O culto da novidade, da mudança, do progresso, da revolução, esse culto que há dois séculos nos oprime, outra origem não tem a não ser essa escravização da inteligência à imaginação e à vontade de poder.
... A “difusão das luzes” termina num crepúsculo da civilização em que não só a vontade de potência do homem se desdobra em todos os azimutes, mas onde a inteligência declina. Prova-o a progressiva cegueira que a aflige. Contudo, por pouco que abramos os olhos, é manifesto que não mais nos encontramos num mundo real, mas num mundo de aparências, em que a única verdade apreendida pelo homem é por ele fabricada e lançada para fora como o ectoplasma que se projeta da boca de um medium em transe. O trabalho humano não mais se acrescenta à natureza para levá-la a uma maior perfeição, mas para recondicioná-la e recriá-la de alto a baixo. A grande conformidade e amizade do homem com a natureza, de que falava Montaigne, está prestes a desaparecer. Ou mais exatamente: não há mais natureza. Foi substituída pelas criações da técnica. Mas essas criações são imagens da subjetividade. Secretamo-las por assim dizer do nosso organismo. Ejetamo-las ad-extra e nelas sempre de novo nos reconhecemos, de sorte que não mais saímos da subjetividade. Vê-se o homem neste mundo como diante de um espelho onde divisa a sua imagem, nada mais que a sua imagem.
Diz Marx, com toda a razão, que pelo trabalho, pela técnica e pela atividade poética, o homem se contempla num mundo não de seres e coisas independentes do pensamento e da consciência, mas num mundo de sua invenção. O mundo moderno, regido pelo primado da atividade fabricadora do espírito, é um mundo de ficção, na plena significação do termo. Mundus est fabula, dizia já Descartes. Contudo, o homem nem sequer o percebe, tão incapaz se tornou de sair da própria subjetividade e de tomar a necessária distância em face dela e de suas produções. O mundo da imaginação, graças às técnicas que lhe conferem uma existência efêmera, parece-lhe mais real do que o mundo real. Narciso vê só Narciso, mas não vê que essa imagem não tem outra realidade a não ser a que o próprio Narciso lhe empresta. O homem é o alter-ego do homem. É a representação do homem, é a semelhança, a efígie, o simulacro, o reflexo, a reprodução, o duplo, a cópia, o fac-simile de si mesmo. É o imenso espelho, continuamente aumentado, que lhe duplica a desmedida imagem.
Por isso, sem levar na mais mínima conta os protestos que uma tal afirmação pode suscitar, é preciso dizer que o mundo conhecido pelas ciências modernas e especialmente pela ciência físico-matemática, modelo e ideal das outras, é um mundo imaginário. Disto não duvidam os melhores físicos. Ao refletir sobre o seu saber, logo percebem que aí o pensamento não versa um objeto real. O conhecimento do objeto é uma construção do espírito, mas tão intimamente entrelaçada com os dados da experiência, que doravante torna-se impossível distinguir a ficção da realidade. “Não há experiência objetiva, escreve André Regnier. Os dados experimentais não são dados, são adquiridos por nossa atividade, e trazem a sua marca. São abstrações que fabricamos. O experimentador cria a experiência, assim como o químico cria o corpo puro”. As leis naturais formuladas matematicamente na teoria dos quanta, escreve Heisenberg, não mais concernem às partículas elementares propriamente ditas, mas ao conhecimento que delas temos”. A teoria física contemporânea atinge não o mundo dos fenômenos físicos tais como se dão, mas só como aparecem nas construções matemáticas que lhe tomam o lugar. Para o físico, não há natureza. Todo conhecimento físico é metafórico.
Por isto, não há mais verdade física no sentido próprio da palavra. O “princípio de incerteza” triunfa em toda a linha. Nunca a realidade como tal é apreendida pela inteligência ou pelos instrumentos de medida por ela utilizados. A realidade é conhecida como desconhecida ou como uma incógnita de que formamos uma representação, cuja coerência lógica importa infinitamente mais do que a concordância com a realidade. Como poderia então a física ser ainda uma ciência teórica? A inteligência, ávida de verdade, dela recebe apenas lições decepcionantes.
Segue-se que a distinção entre ciência especulativa e ciência prática tende cada vez mais a apagar-se. A teoria remete à explicação e a aplicação à teoria. Esses dois aspectos da pesquisa, outrora ainda rigorosamente distintos, tendem a confundir-se, formando um círculo perfeito: a ciência pura é inseparável da técnica que lhe apura os meios de investigação e a técnica o é por sua vez da ciência pura que a delimita e calcula com precisão sempre crescente. É manifesto que as ciências e as técnicas contemporâneas renunciaram à contemplação do mundo. Doravante visam à sua transformação. A noção de verdade é substituída pela de ação eficaz. Tudo se passa como se a segunda tese de Marx sobre Feuerbach se verificasse na metamorfose do mundo operada pela ciência moderna. “A questão de saber se o pensamento humano é objetivamente verdadeiro é uma questão prática e não teórica. É na praxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é a realidade, o poder, a justeza do seu pensamento.” Para as ciências e as técnicas contemporâneas, desligadas de toda metafísica, desenraizadas de uma concepção especulativa do universo, que as submetia à realidade, a verdade torna-se mudança, inovação, reforma, reviravolta e, de qualquer sorte, a história é revolução permanente. Ainda uma vez, é impossível que assim não seja. Sísifo, o mais astuto e o menos escrupuloso dos mortais, segundo a Fábula, está definitivamente atado a seu rochedo. Para tomar pé novamente no real, de que se separou, a inteligência não tem outro remédio senão fabricá-lo e, assim fazendo, submeter-se à imaginação, que materializará na realidade exterior o mundo interior de que se tornou senhora absoluta, e que fará da inteligência, sob a direção da imagem dominante ou do mito prevalecente, a serva-padrona do mundo.
Estamos agora neste ponto. O naufrágio da inteligência passa-se à nossa vista, no momento em que supúnhamos vê-la entrar triunfalmente no porto. Como diz o provérbio português, a nau que não obedece ao leme, obedece ao rochedo. A inteligência doravante é a presa das imagens e da matéria, que a acuam ao repetido fracasso, à falência chamada Evolução, Dialética, História. É oferecida em holocausto ao mito da matéria. Por querer “faire l’ange” faz “la bête”. O idealismo, doença da inteligência moderna, passa por seu último avatar: o materialismo. O idealismo torna-se, ou antes é o materialismo. Não há nem sombra de diferença entre eles. Por ter recusado o princípio de identidade: o ser é o que é (e não o que nos aparece) a inteligência é crucificada na contradição.
Independentemente das rivais de inferior situação hierárquica e de menor virtuosismo na camuflagem, duas filosofias (eu quase diria duas teologias antropocêntricas, se fora possível falar assim sem que as próprias palavras se levantem e protestem) duas filosofias — repito — se dedicaram, com crescente sucesso, a travestir essa degradação do espírito e a acelerar a sua queda: o marxismo e o teilhardismo. Representam na ordem do espírito o papel que na ordem fisiológica desepenham certos produtos da farmacopéia contemporânea, que combinam uma ação tranqüilizante com um efeito estimulante. São com efeito o exemplo perfeito da mistificação que, juntamente com as vítimas, mistifica o próprio mistificador. Comunicam ao impostor a inabalável tranqüilidade de consciência que o faz acreditar na excelência de sua causa, e a inflexível convicção de estar libertando as suas vítimas, no instante em que as escraviza.
A proliferação dos sectários e militantes de tais doutrinas, a extraordinária voga dessas mitologias, o crédito de confiança que conservam no seio da opinião pública, a despeito dos severíssimos desmentidos infligidos pelos fatos, nada tem isto tudo de misterioso. Basta refletir um instante sobre um fato de capital importância que, há perto de dois séculos, domina a história da humanidade e cujas conseqüências chegam agora ao seu termo: a dissolução das comunidades naturais. A natureza do animal racional só desabrocha e chega à maturidade no seio dos ambientes naturais que lhe correspondem, e aos quais o intelecto prático acrescenta os prolongamentos institucionais que amparam e dinamizam a sua vitalidade. Tomada enquanto faculdade capaz de adaptar-se ao real, especialmente às realidades que a ultrapassam, a inteligência carece de um ambiente apropriado onde revigore o seu surto para os seres e as coisas. Nesse ambiente, a descoberta do mundo exterior não é abandonada às meras impulsões instintivas, mas se realiza graças à educação recebida nesse ambiente social original, de que os outros não são mais do que prolongamentos, e cujo nome — a família — aos poucos é esquecido e substituído por uma expressão carente de toda significação: “família espiritual”. As disciplinas que aí se transmitem não são apenas morais, são também intelectuais. Nunca é bastante salientar que no seio do ambiente familiar torna-se impraticável o abandono aos caprichos da imaginação fabuladora ou às imposturas do ilusionismo. Tudo que é mentira, falácia, fanfarronice, vaidade, “bourrage de crâne”, fingimento, aberração, desregramento imaginativo, sofisma e erro, tudo isso é imediatamente denunciado. Um comportamento que em face de uma coisa não se paute pelas exigências impostas pela natureza mesma dessa coisa, manifesta de plano a sua extravagância. A família é o meio em que se forma a inteligência, faculdade do real. Os demais ambientes, conexos com este, e que se retemperam na mesma fonte natural, desempenham análogo papel: sustêm a inteligência na sua conatural inclinação para adequar-se sem desfalecimento à realidade.
Vê-se então porque todos os desenraizados são utopistas. A inteligência vagueia sem lugar certo: seu ato não mais se exerce com a assistência dos meios adequados ao ser humano. Desgarrado nas nuvens do imaginário, o intelecto fabrica um universo de quimera, de que a vontade de potência se apodera a fim de dominar o mundo e a humanidade. A propósito, o padre que a sua vocação superior priva de raízes, e que na humildade da alma não refaz e transpõe esses laços para a ordem do sobrenatural, torna-se o agente por excelência de dissolução e destruição do mundo e do homem. Como utopista varrido, consumado revolucionário, agitador de massas e condutor de turvas, não tem rival.
A tal ponto nossa compreensão da realidade está obnubilada pelas quimeras da imaginação, que se nos afigura indubitável que a maior inovação social e política dos tempos modernos, a democracia, em favor da qual milhões de seres humanos derramaram o seu sangue, é uma coisa dotada de existência real, quando na realidade não passa de uma ficção cuja existência não vai além dos limites do crânio ou das constituições, discursos e papeladas que lhe difundem o nome nos quatro cantos da terra. O governo pelo povo só existe quando o povo governa. É claro como água: o povo só pode exercer essa capacidade nos limites bastante estreitos e nos territórios relativamente reduzidos em que o cidadão conhece por experiência os problemas que surgem e as soluções cabíveis. Fora dos limites de uma área geográfica restrita, a democracia não passa de um nome. Conforme a fórmula sarcástica de Valery, é o regime em que o cidadão é intimado a opinar sobre questões para as quais não tem a menor competência, e impedido de responder às questões que são da sua alçada. As estruturas democráticas subsistem, mas não passam de um invólucro que recobre um sistema diverso, cuja denominação cada vez mais prestigiosa, é tecnocracia. A despeito das cataratas de saliva e de tinta diariamente vertidas sobre as nossas cabeças, quem quer que guarde a objetividade do juízo não pode deixar de ver que a sociedade evolui para uma divisão em dois grupos: “os que sabem e comandam”; “os que não sabem” e obedecem.
Esta casta tecnocrática, por sua vez, compõe-se de dois tipos de técnicos, cujas funções são complementares, com subordinação dos primeiros aos segundos: os técnicos do condicionamento dos espíritos e os técnicos do condicionamento das coisas...
O papel do técnico do condicionamento dos espíritos é substituir pelo reino da opinião chamada soberana o exercício social da inteligência que, por falta da experiência que a poria em marcha, de modo algum pode subsistir sob regimes democráticos de grande raio de ação, como são os Estados modernos. O próprio da opinião é ser essencialmente maleável. A exigüidade dos laços que mantém com a realidade tornam-na uma entidade dúctil, fluída, moldável ao extremo, a que a vontade de poder mais imperiosa imprime e impõe a sua forma. No sentido mais rigoroso do termo, nós formamos uma opinião e formamos a opinião. A opinião é o produto de uma atividade “poiética” ou fabricadora. Com os meios matérias acessíveis hoje em dia aos técnicos: a imprensa, o rádio, a televisão etc., não é exagerado dizer que, nas oficinas de informação que abundam no planeta, a opinião é fabricada em série, com uma consumada arte da manipulação sensível, da violação subconsciente e da trucagem visual. Estamos no século da informação deformante. É muitíssimo provável que o historiador do futuro se veja ante a impossibilidade de conhecer a verdade histórica dos eventos que se desdobram de meio século para cá sob os nossos olhos.
Mas não é apenas o conhecimento dos fatos: a mesma concepção que os contemporâneos se formam do homem e do mundo acha-se profundamente alterada. Rompeu-se a relação da inteligência com a realidade; ou melhor, romperam-na, e em vários pontos, os profissionais do pensamento: cientistas, filósofos, teólogos, sem falar nos inumeráveis acólitos, maiores e menores, que vogam nas suas águas. A moldagem e afeiçoamento da opinião é acompanhada de operações paralelas em todos os domínios do espírito. Para “formar” a opinião, é mister que estejam de todo rompidos os laços que unem a inteligência ao ser. Reduzido à subjetividade, amputado das raízes, despojado das amarras, o homem não passa de um títere largado à inteira discrição de seus manipuladores. Sua mutação em autômato é tanto mais fácil porquanto só lhe resta o impulso informe da inteligência e da vontade para os respectivos objetos desaparecidos. É o que os técnicos da opinião chamam com orgulho “as exigências do pensamento moderno” ou “as reivindicações da consciência contemporânea”, ou ainda “as aspirações da humanidade”, etc. Apoderam-se desse magma amorfo e imprimem-lhe do exterior, mediante as técnicas da persuasão aberta ou clandestina, uma imagem do homem futuro e de um mundo futuro, a mais fascinante que consigam elaborar, tendo como coroamento a promessa: haec omnia tibi dabo. O bom êxito de seu empreendimento está assegurado no domínio social. A tal ponto é verdade que o homem é animal político, que a privação das comunidades naturais incita-o de pronto a edificar comunidades artificiais e castelos em Espanha.
É na malaxagem de opinião política e social que triunfa o técnico do condicionamento dos espíritos, como bem o demonstra a experiência.
Manter o homem contemporâneo continuamente em suspense, projetando no écran da sua imaginação uma sociedade futura, cujo advento é a toda hora descrito, e na qual ele se contempla convertido em super-homem, semi-deus ou deus, é a infância da arte. O mito de uma sociedade em que o homem terá todos os direitos e nenhuma obrigação, plena liberdade e total irresponsabilidade, em que o eu coincidirá com o gênero humano, conforme a promessa de Marx, onde o mesmo homem descobre que simultaneamente é “personalista” e “comunitário” (tal é a transcrição de Marx por Mounier) tem boa probabilidade de realizar-se um regime em que deixou de haver sociedade, em que o Estado, que não mais é limitado por comunidade naturais subjacentes, detém um poder ilimitado e se vê encarregado pela opinião devidamente condicionada da apavorante missão de criar um novo homem e um novo mundo.
A tecnocracia, seja a do espírito ou a do espírito convertido em coisa, inclui manifestamente a socialização integral da vida. O pensamento torna-se coletivo, pois todos os pensamentos são idênticos, sendo prensados no mesmo molde, e propagados na mesma inenarrável “noosfera” inventada por Teilhard para assegurar o nosso condicionamento. Todas as atividades do espírito coletivizado tornam-se desde logo coletivas: a atitude contemplativa, ou o que dela resta, reduz-se à visão narcísica da Razão comum a todos os homens, contemplada num espelho que é ainda a mesma Razão; a atividade prática vê o bem substituído pelo útil e a felicidade pela inscrição num Seguro Social ilimitado, que se estende do berço à sepultura; a atividade “poiética” ou fabricadora, esta, celebra o seu próprio triunfo. Os trabalhadores são considerados como um único e gigantesco trabalhador que, trabalhando cada vez mais, acabará por levar uma existência idílica num Paraíso terrestre reconstruído para a eternidade.
Essa socialização dita inevitável só tem um inconveniente: é que não existe; não existe porque não pode existir, a não ser no interior da imaginação, sob a forma de mitologia. O pensamento coletivo que preside à integral socialização da vida humana não pode existir por uma boa e simples razão: é que há só pensamentos individuais, irredutivelmente unidos a um cérebro individual e a um corpo também individual. Por trás desse pretenso pensamento coletivo, subjacente ao assim chamado labor coletivo, o que há simplesmente, torno a dizer, é a vontade de poder de alguns que se associam numa “direção colegial” (como se diz), uma estrutura de poder participado, cuja outorga a um tirano único é a curto prazo previsível. Oulz agathou polykoiranein, heis koiranos estê.
Sob os nossos olhos uma sociedade estruturada em dois compartimentos estanques nasce da decomposição da sociedade do Ancien Régime, derrubada pela Revolução francesa, cujas últimas reservas vitais, outrora ainda esparsas, acham-se hoje quase esgotadas. A sociedade sem classes, com que sonhava a liberal democracia, e de que o Comunismo é a lógica viva, não passa de uma cortina de fumaça por trás da qual se processa a ascensão da casta mais despótica que a História jamais conheceu, casta sem entranhas, sem alma, sem vida espiritual, composta de indivíduos cuja inteligência, limitada à dimensão técnica das coisas, é escrava de uma desmedida vontade de poder.
Essa revolução em curso torna-se cada vez mais evidente: o deputado não mais está a serviço do povo, mas o povo a serviço do deputado; o professor não é feito para o curso, mas o curso para o professor. O ensino não é para os alunos, ou os programas para a vida, mas os alunos é que são para o ensino e a vida para os programas; o padre não existe para os fiéis, os fiéis é que existem para o padre, e assim também a sociedade não de destina à pessoa, mas a pessoa à sociedade (...)
Quando a inteligência inverte seu natural movimento para a realidade, a fim de submeter a realidade a suas representações mentais, é de esperar que a contradição se instale em todos os domínios. O mundo se põe “de pernas para o ar”.
A linha de demarcação entre a casta dirigente e a condição de dirigido, entre os detentores reais e reconhecidos do poder e os que padecem da sua ação, entre a “hierarquia paralela” que exerce o poder real e os que imaginam ainda obedecer voluntariamente a uma autoridade doravante decorativa, é geralmente constituída pela pressuposição de superioridade que o Diploma confere à inteligência formal e técnica. Entre o pergaminho e a inteligência cortada do real, mas desejosa de substituí-lo por suas construções existem hoje evidentes afinidades, se não completa identidade. É natural portanto que a intelligentzia tecnocrática seja recrutada principalmente entre os diplomados. Para ingressar nessa intelligentzia é preciso demonstrar não a capacidade de penetrar no real, mas mecanismos mentais ou materiais. De resto, a “pele de asno” só é conferida graças a uma conversão do qualitativo em quantitativo. Os imponderáveis tais como o caráter, a vocação, o talento, a largueza de espírito, a curiosidade, o bom gosto, a honra, o dever, o senso moral, o senso estético, enfim tudo o que não pode ser expresso em algarismos vê-se relegado a um plano secundário. A falsa gravidade do conhecimento enciclopédico e de sua irmã gêmea afligida de nanismo, a especialização, eliminou a concepção do mundo própria do “homem de bem”. A elite é recrutada e julgada em função de capacidades técnicas: o mundo artificial construído pelo homem moderno não tolera outros critérios.
Destarte as Universidades tornam-se escolas profissionais superiores. Se nelas ainda se tolera a filosofia, é na medida em que essa filosofia contribua para a deturpação dos espíritos, e procure justificar por meio de sofismas a tese de que o homem é a medida de todas as coisas. O santo, o gênio, o herói, o sábio ou simplesmente o espírito livre e criador em qualquer domínio gozam de uma influência mínima. A sociedade inteira oscila e pende para o lado do Diploma e do Mandarinato.
Doravante, os títulos escolares são universalmente exigidos e, tanto mais rigorosamente, por quanto os espíritos unicamente formados (ou deformados) por cursos, discursos, lições, “ciclagens” e “reciclagens” etc. vêem-se separados das realidades por um écran de representações mentais, faladas ou impressas, cuja espessura aumenta incessantemente, e que convém particularmente à fabricação de um homem novo e de um mundo novo. O intelectual moderno passa a maior parte do tempo longe das realidades, na leitura de jornais, revistas, livros, ou em reuniões, conversações, colóquios, “diálogos” etc. Para ele a presença do mundo real e do homem real não tem o menor sentido. O intelectual só se sente à vontade num mundo artificial de homens artificiais, onde reencontra a sua própria imagem. A esse propósito, pode-se dizer que a inteligência é a faculdade menos usada pelo intelectual. “Considero o intelectual moderno como o último dos imbecis, até que me prove o contrário”, rugia Bernanos.
Cada vez mais nos esquecemos que as sociedades humanas precisam de uma certa proporção de espontaneidade, de originalidade, de anarquia natural, ingênua, viva, sob pena de degenerar em sociedade animal estereotipada. Sem essas forças criadoras, a sociedade se congela. O mecânico suplanta então o vital e o esteriliza, muitas vezes sob a capa de um não-conformismo cujo caráter artificial e premeditado reforça os automatismos sociais que pretende romper. Essa observação vale para todos os tipos de comunidade; nenhuma há que mais cedo ou mais tarde não deva revigorar-se graças à contribuição de elementos expogenos. São bem conhecidas as conseqüências dos casamentos consangüíneos nas dinastias e aristocracias. As universidades, as administrações, as corporações, as empresas etc. se ancilosam sob o efeito de regras rígidas de admissão. É necessário recorrer a personalidades “fora de série” a fim de restituir-lhes o élan e o vigor. O mundo das técnicas e dos artifícios em que vivemos exclui esse recurso. É obra de especialistas a quem são confiados os planos para a sua elaboração. Para ser admitido entre os seus membros é preciso que cada um por sua vez se especialize. Como as técnicas que o criaram e que continuamente renovam a sua existência cada dia se tornam mais numerosas e mais complexas, exige-se um número cresce de estudos e de diplomas aos que pretendem penetrar no santo dos santos, ou melhor, na casa de máquinas da sociedade contemporânea. Uma vida inteira não basta para se ter acesso à dignidade de tecnocrata superior. A sociedade compõe-se de técnicos escalonados a partir do seu cume. Essa pirâmide assenta com todo o seu peso sobre a base formada pelo comum dos mortais. A sociedade progride rapidamente para o “perfeito e definitivo formigueiro” onde cada um encontrará um lugar e uma função catalogada conforme regras que ninguém pode transgredir.
O Estado, que organiza e dirige esse tipo de sociedade, se arroga o direito de conceder o alvará que permitirá a cada um ocupar o lugar e exercer a função que lhe compete. E mais: não só fiscalizará o exercício dessas funções, mas se atribuirá o controle de toda a evolução da vida profissional, à qual se reduz hoje a vida social. Atualmente o Estado examina, inspeciona, verifica, calcula, prevê, provoca e determina todas as mudanças que se operam no fluido universo submetido ao seu poder. O mundo funcional em que vivemos é um mundo funcionalizado (ou burocratizado) sob a égide e a impulsão do Estado. Os cidadãos tornam-se direta ou indiretamente funcionários do Estado; os patrões são empregados do fisco para os seus clientes; são também empregados dos institutos de seguro social etc. Um economista russo calculou que em 1980 a população inteira do seu país será insuficiente para desincumbir-se das tarefas atribuídas à burocracia estatal. Atingiremos a situação grotesca em que o gracejo de Péguy: “há os que estão diante dos guichets e os que estão atrás deles” não mais se verificará. Todos estarão por trás de algum guichet. Até nos países menos burocratizados verifica-se já plenamente a célebre lei de Parkinson: um mais um é igual a três; e os que se encontram diante do guichet fazem desesperados esforços a fim de passar para o outro lado. A “desnaturação” do mundo que os cerca angustia-os. Precipitam-se para o setor abrigado do funcionalismo estatal. Precisam abandonar-se ao Poder supremo do Estado, para que os mecanismos ou automatismos desatados por eles, e aos quais não querem renunciar, possam ser disciplinados. Nada mais pode torna-los felizes nesse mundo chamado “novo”, que é a sua obra. Ávidos de estabilidade, no seio da perpétua mudança que os arrasta, recorrem ao Estado, poder de estabilização. Assim se ergue o grande deus moderno: o Estado-Providência, que assegura a felicidade dos homens, mas cuja sombra imensa e tutelar esteriliza a inteligência, mecanizando-a, e, como a raiz da liberdade está na inteligência, extingue a liberdade.
Cumpre-se a profecia de Tocqueville: “O Estado trabalha para a felicidade dos homens, mas timbra em ser o único agente e o árbitro supremo. Provê à segurança de todos, calcula as necessidades e assegura a sua satisfação, facilita os prazeres, incumbe-se dos principais negócios, dirige as indústrias, regula as sucessões, reparte as heranças; de bom grado pouparia aos homens o esforço de pensar e a pena de viver. Desse modo, o Estado torna gradualmente mais infreqüente e mais dispensável o uso do livre-arbítrio; cada dia confina o exercício da vontade num espaço que se vai estreitando, e pouco a pouco arrebata aos cidadãos o senhorio que cada um deve exercer sobre a sua própria pessoa.”
(Progresso e Progressismo, Cadernos da Permanência, Agir, 1970) Tradução: Alfredo Lage