◆ São Domingos ◆
O dom de apóstolo não se confunde com o dom de doutor.
O doutor ensina e estuda uma ciência impessoal. Seu fim é a verdade pela verdade. Ele busca na fonte mais alta a razão de ser das coisas; e se, nesses cumes, reencontra Deus, deve-se ao fato de que Deus é a causa das causas, a razão última da graça e da natureza. O Espírito Santo, ao se transformar pelos dons na regra imediata da inteligência do doutor, não modifica o que pertence à natureza das coisas. Pelo Dom de Sabedoria, aumenta o alcance da razão, ilumina a fé e ajuda os doutores a cumprirem sua tarefa sublime, com uma segurança e uma elevação participadas diretamente da inteligência divina. A esse dom Santo Tomás de Aquino deve o entendimento íntegro e atilado, graças ao influxo divino, que o acompanha de uma ponta a outra de sua obra, e irradia no conjunto e no pormenor de todas as verdades, naturais ou sobrenaturais, a Verdade primeira, Deus, a Santíssima Trindade.
A ciência do apóstolo, ao contrário, não seria capaz de fazer abstração das almas que busca converter. Nem sempre são as verdades mais elevadas que melhor alcançam o objetivo proposto. E que me importa a tua metafísica ou as razões últimas das coisas se não te compreendo? Que proveito tiveste, se a expressão provocadora e inoportuna de uma verdade, pregada talvez com muita aspereza, sublevou minha fraqueza e debilidade? As almas a que o apóstolo se dirige estão mergulhadas na vida prática, em seus erros intelectuais e morais. Não estão habituadas a julgar as coisas pelas razões superiores. É preciso convertê-las onde estão. Se quisermos que se elevem até Deus, comecemos por ter um conhecimento exato do que lhes preocupa, dos males e erros em que se debatem. Quando se recebe o chamado para o ministério do apostolado, já não é preciso considerar as verdades divinas em si mesmas, mas antes conhecer como elas repercutem nas criaturas e afeiçoar-se às razões que, de ordinário, convencem as almas a que nos dirigimos, ainda que não sejam as mais profundas. Diz Santo Ambrósio: “Considera com atenção como Cristo sobe com os apóstolos e desce em direção à multidão. Como a multidão poderia vê-lo se não descesse? Ela não pode segui-lo nos cumes, nem subir até os topos”. Ora, segundo a doutrina de Santo Tomás, cabe ao Dom de Ciência comunicar às almas justas esse conhecimento divino das coisas humanas, e das razões e motivos hauridos das criaturas, que servem de esteio necessário ao apóstolo. Ele difere do Dom da Sabedoria pois, em vez de nos fazer julgar as coisas a partir do ponto de vista de Deus, em toda a sua inacessível profundidade, apresenta-nos a luz desse ponto de vista refletida nas criaturas, obscurecida, por assim dizer, e acomodada à nossa debilidade, para proveito de todas as almas de boa vontade1.
O apostólico São Domingos de Gusmão estava destinado a representar de modo particular esse dom característico dos apóstolos. Quer consideremos sua vocação, quer os livros onde bebeu sua ciência, quer ainda o instrumento do seu apostolado, sempre veremos com clareza que o seu ministério e sua vida inteira estão marcados com o timbre do Dom de Ciência.
A vocação deixa-se já pressentir neste longínquo episódio de sua vida de estudante. Uma fome cruel assolava Palência. Domingos vendeu seus livros, que eram seu tesouro, exclamando: “Como hei de estudar em peles mortas quando há homens que morrem de fome?”. Um dia, um flagelo mais temível, o flagelo do erro que envenena as almas, revelou-se a seu coração de tal sorte disposto pelo Altíssimo, que toda a ciência adquirida nos vinte anos de silenciosa preparação adaptou-se como que por encanto para a cura daquela enfermidade. Imagina-o naquela noite, em que, discutindo com seu anfitrião de Toulouse, a quem procurava converter, interveio o apelo divino. O mesmo Espírito que lhe arrancara do coração penalizado o grito de misericórdia pelos famintos, anima-o agora a “dar ao seu povo a ciência da salvação”. Embriagado com esse pensamento, busca com afã as razões que aquele homem poderia compreender; informa-se do seu estado intelectual e moral; quer avistar a idéia comum, a verdade que ambos admitiriam, o vestígio da luz divina conservado entre as sombras daquele espírito desviado, e que lhe serviria de auxílio para reconduzi-lo à luz. Naquela instante, com certeza venderia toda a ciência acumulada ao longo de vinte anos de trabalho e meditação como se não passasse de “peles mortas”, em troca da palavra justa, da palavra decisiva que libertaria e saciaria a alma daquele homem.
Contudo, a ciência não prescinde de livros, que servem para mostrar que o estudo não é estéril e oferecem matéria abundante para as inspirações do Dom de Ciência. Quais eram, portanto, os livros de São Domingos? Seus historiadores nomeiam três.
O primeiro são as Epístolas de São Paulo, o apóstolo por antonomásia. Ora, não é esse um dos livros em que mais brilha o Dom de Ciência? Onde encontrar um conhecimento mais profundo, um sentimento mais vivo das misérias do homem afastado de Deus e das causas que o impedem de chegar até Ele? Se o Apóstolo por vezes “fala sabedoria para os perfeitos”, não é verdade que, com freqüência maior, muda o tom e “diminui sua voz”, para não assustar os humildes? E que arroubos admiráveis quando, de costas encurvadas sob o peso das almas cujas misérias e penas carregou sobre si, ergue-se com elas rumo a Deus, pretendendo retirar da miséria mesma de que gemem o motivo da libertação. Quantas vezes São Domingos deve ter relido estas palavras: “Renunciei a todas as coisas e as considero como esterco, para ganhar a Cristo”. Com que ênfase não deveria repetir o brado do seu mestre preferido: “Porque eu estou certo que nem a morte, nem a vida… nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo Nosso Senhor”. Que luz para suas vidas! Que luz para as almas que escutavam palavras tão penetrantes sobre o conhecimento da vaidade das coisas que aprisionam os homens nos vícios da carne ou nos erros do espírito!
O segundo livro era o Evangelho segundo São Mateus, ou seja, o Evangelho da humanidade de Nosso Senhor, em que o divino Mestre mais desceu ao nosso alcance. Aí encontramos a pregação das comiserações divinas, das curas inumeráveis e da sua imensa misericórdia. “Lerás os ensinamentos da lei como uma bandeirola nas vossas mãos: eles se agitarão sem cessar diante dos teus olhos”. Santo Tomás relaciona esse preceito, que se lê no Deuterônimo, ao Dom de Ciência2. São Domingos o cumpria à risca nas estradas, caminhando sozinho com seu São Mateus às mãos; os companheiros o viam fazer gestos frequentes, como se quisesse afastar obstáculos que o distraiam das meditações: “Eles atribuíam a essa meditação contínua dos textos santos a inteligência maravilhosa que deles adquirira”.
O terceiro livro de São Domingos era muito diferente dos outros dois. Certo dia, um irmão lhe perguntou onde aprendera tudo o que sabia: “Meu filho", respondeu, "meu único livro é a caridade divina”. Com efeito, precisamos voltar-nos a ela se quisermos descobrir o segredo de uma ciência divinamente cordial, como a que palpitava em todos instantes de sua vida. Para adquiri-la, é preciso que nossa ciência se alimente de uma vivíssima aspiração a Deus e viva do zelo, que o Espírito Santo infunde em nós, pela salvação das almas; é necessário que nossas palavras e idéias se impregnem de ânsia pelo Bem divino, e que a sintamos e vivamos não apenas por nós, mas por todos os que nos escutam. Então, é o próprio Espírito Santo, escondido nessa aspiração, que fala pelo apóstolo. Eis o segredo da ciência de nosso santo pai.
A marca do Dom de Ciência encontra-se também no grande instrumento de apostolado de São Domingos: o Rosário. O que faz do Rosário uma alavanca tão poderosa é o ponto de apoio, escolhido em razão de um maravilhoso conhecimento da organização de nossa natureza humana. O Rosário se acomoda a todas as circunstâncias da vida, pega-nos como que pela mão para nos tirar de qualquer abismo onde nos encontremos, seja nas alegrias mundanas, por vezes perigosas; seja nas tristezas, muitas vezes irrazoáveis, exaustivas até, e quase sempre mal suportadas; seja nas esperanças terrestres de toda natureza. Alegria, tristeza e esperança, aí estão os três mares por onde navega nossa alma, sofrendo as investidas de suas ondas. São Domingos compreendeu que toda a vida humana está encerrada nesses três sentimentos e, assim, com doçura, elevou nossas pobres vidas a um mundo de alegrias, tristezas e esperanças melhores, iluminado pelos esplendores do Sinai ou do Tabor. Ele nos atrai apresentando alegrias santas, tristezas divinamente suportadas e esperanças verdadeiras. Sem negar as inquietações da alma, ele as apazigua, transforma e, pouco a pouco, as eleva. As suaves orações do Pai Nosso e da Ave Maria sobem ao céu como um hino de amor que, a cada repetição, torna-se mais insistente. Quanta ciência das coisas divinas, do coração humano e das harmonias secretas que guardam entre si, foi preciso para compor o Rosário! Quem, pois, soube proporcionar às necessidades mais humanas remédios tão divinos, e reunir a ambos pelo elo eficaz e consolador de uma oração tão elevada? Quem, senão o discípulo inspirado daquele que, sendo Deus e tendo criado o homem, conhece tudo o que Deus pode ser para o homem e tudo o que o homem necessita de Deus? Por isso, na vida de nosso santo Pai encontramos o caráter distinto do Dom de Ciência, a saber: “Essa espécie de gosto e experiência que se têm das criaturas, que obriga a julgá-las com retidão; para desprezá-las se querem nos seduzir, ou para amá-las com moderação e encaminhá-las a Deus”3. Mas, para verificarmos o quanto convém propriamente ao nosso amantíssimo Pai o Dom de Ciência, há um sinal ainda mais marcante e, se ousamos dizer, definitivo: refiro-me ao dom das lágrimas.
Santo Tomás associa ao Dom de Ciência a bem-aventurança das lágrimas: Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. A razão que ele apresenta é admirável. A diferença entre a ciência e a sabedoria consiste em que, para julgar as coisas, aquela se funda em razões que estão ao alcance de todos, enquanto a sabedoria remonta sempre até as razões últimas das coisas. Ora, quando compreende a razão última das coisas, que é na realidade a vontade, a providência, a sabedoria e a bondade de Deus, a alma se apazigua, e se torna serena e pacífica. É por isso que a bem-aventurança dos pacíficos está relacionada ao Dom de Sabedoria. Mas, quando tomamos por ponto de partida a ciência das coisas criadas, ainda que o seu conhecimento revele um longínquo resplendor do rosto de Deus, são tão numerosas as suas imperfeições, e com tamanha freqüência o mal predomina sobre o bem, que não podemos contemplar sem lágrimas nos olhos a triste situação em que estamos nós e em que estão nossos companheiros de desterro. A ciência das coisas humanas é mãe de todas as tristezas: quanto mais profunda for essa ciência, mais abundantes serão as lágrimas que derramaremos, pois essa é a ciência de nossas misérias4. São tantos os males que afligem nossa vida que o Eclesiastes, compreendendo-as com clareza, chorava amargamente. O Apóstolo, inspirado pelo Dom de Deus, chorava por sua vez vendo a miséria em que estavam as almas que buscava salvar.
Ora, São Domingos vivia chorando. Uma das testemunhas citadas no seu processo de canonização declarou: “Ele possuía uma caridade tão grande pelas almas, que ela se estendia não apenas a todos os fiéis, mas aos infiéis e mesmo aos que estão nas masmorras do inferno, e derramava muitas lágrimas por eles”. No púlpito, não raro chorava, “e normalmente estava cheio desta melancolia sobrenatural que o sentimento profundo das coisas invisíveis produz”. Quando percebia ao longe os telhados de uma cidade ou aldeia, bastava o pensamento das misérias e pecados dos habitantes para que mergulhasse em melancólicas reflexões que logo lhe transpareciam no semblante. "Oferecia o Santo Sacrifício do altar com grande abundância de lágrimas… Quando a cerimônia lhe anunciava que se aproximava Aquele que desde os primeiros anos mais amara, notava-se uma emoção profunda dominando o seu ser; já não continha as lágrimas sobre o rosto reluzente”5.
Poderíamos multiplicar os episódios, uma vez que a fisionomia de São Domingos deve a esse dom especial das lágrimas, que é o resultado do Dom de Ciência, o seu caráter particularmente comovente. Este santo é um sábio que chora. Conhecemos as lágrimas do arrependimento e as lágrimas do amor; aqui temos as lágrimas de um homem que, graças a um eminente dom intelectual, penetrou com profundidade a ciência verdadeira do mundo, dos homens e de Deus e, em vista desta miséria e daquela bondade, perpassa pelo mundo um olhar em que a compaixão disputa com a serenidade, e a tristeza da terra com as consolações do céu. Assim o representam os mármores do seu túmulo, as imagens tradicionais e o pincel do Beato Angélico. Mas coube a seus filhos serem cópias vivas da intraduzível expressão do santo patriarca.
Foi o caso de seu discípulo predileto: São Jacinto, o grande apóstolo da Polônia. Ele recebera o hábito da Ordem dos Pregadores das mãos do fundador. Em São Jacinto encontramos o mesmo amor à ciência sagrada, o mesmo culto à Santíssima Virgem, o mesmo zelo pela salvação das almas, o mesmo olhar aos homens, triste e consolado: triste pela compaixão que experimenta pelas abundantes misérias, consolado pelo conhecimento das misericórdias divinas. Parece que nosso Pai amantíssimo, ao lhe dar o hábito sagrado, deu-lhe também algo de seu espírito e de seu ser. E a Mãe do Salvador, a Virgem amada de São Domingos, parece que quis consagrar essa filiação ao receber São Jacinto no céu no dia mesmo em que a Igreja celebra a sua entrada gloriosa no céu, o dia da Assunção.
Porém, São Domingos quer que as características de sua heróica santidade sejam imitadas não apenas pelos santos canonizados, mas pelos simples fiéis. Seja qual for a necessidade que tenhamos da ciência no curso de nossas vidas, e mesmo quando a única ciência que nos caiba seja a do catecismo, e só tenhamos a experiência proporcionada pelo trato com as pessoas em coisas ordinárias – lembremo-nos que uma ciência dessas pode transformar-se em instrumento do Espírito Santo. Há em nós uma corrente íntima, uma tendência profunda que, proveniente de Deus, reconduz-nos a Ele. Tomemos consciência desse movimento, que é a alma de nossa vida, e peçamos a Deus, que reside em nós, para transformá-lo numa consciência cada dia maior do que somos e do que é Deus. Façamos nossa aquela súplica ardente de Santo Agostinho: “Ó Senhor, que eu conheça a mim e conheça a vós; a mim para odiar-me, a vós para bendizer-vos e amar-vos…”
Eis a ciência verdadeira e completa, a ciência dos santos. Em nossa miserável natureza, ela não está isenta de tristezas. Mas a santa figura de nosso bendito Pai nos ensina que também ela traz suas consolações, e nos surge como o cumprimento vivo da palavra do Salvador: Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.